Um conto da alma – Apoena Sol – Por Gleycielle Nonato
Eu, apenas uma menina, uma flor de cedro cheirando a fruta madura, com cor de manga no pé e um sabor doce de galho verde. Os olhos pareciam calmas, tão brandos quando vemos o córrego no tempo de seca, rasos, transparente e com a vida lutando para fortalecer lá no fundo.
Caminhava carregando as areias do fundo do rio em meus pés, e sentia o frio que bate mesmo no calor de Coxim após sair de dentro d’água. Havia colocado o meu sol pra brilhar no seu mais alto patamar. Ninguém ama o sol do meio-dia, só se deslumbra com as cores no entardecer.
(…) No fim de outro dia,
Mais um pôr do sol.
Mas não igual ao anterior,
Pois aprendi com você que nenhum pôr do sol
Tem o mesmo formato e a mesmo cor.
E que no fim da tarde
Une-se disforme,
O verde da terra
E um vermelho enorme(…)
Interessante como a florada do ipê vem colorindo o chão seco e avermelhado do cerrado com a vibrante cor de suas flores. Vendo assim, de longe, em meio à sequidão dos matos ralos, uma hora empoeirados, outra queimados por um incêndio corriqueiro, sempre encontrará, lá no meio, esquecido, mas não despercebido, uma árvore de ipê brilhando e encantando os olhos, merecedores ou não.
Eu havia acabado de chegar àquela cidade, estava um calor infernal, daqueles que somente por ali se encontrava. Uma hora achava que desistiria de tudo, outra me encantava pelo florido dos ipês. Eu não sabia mais se queria morar ali, tinha duas filhas e parecia uma cidade tranquila, um rio cortava a lateral, e de trás do rio uma serra dava boas-vindas ao sol. Uma poética incansável de se ver, mas a família morava ali, e a família na qual você nasce nem sempre é aquela que quer te ver viva e feliz. No momento era o que eu podia ter, mas não necessariamente o que eu queria ter.
Minha mãe parecia estar cansada da obrigação de vó, reclamava da falta de comida em casa e dizia a todo momento que eu teria que arrumar um casamento, pois desempregada eu não podia ficar, que ela não dá conta de uma filha barbada e duas netas. Eu ficava pensando como que podia associar casamento a emprego, não havia conexão alguma. Na verdade, minha mãe não me queria ali. Depois de tanto tempo vivendo sozinha, e de repente do nada ver sua rotina sossegada cortada com gritos de criança e uma filha que só chegou com dividas. Sem marido, sem perspectiva, sem dinheiro, sem rumo.
Eu morava na fazenda com o pai das minhas filhas, me sentia bem, apesar da inquietude da vida. Achava sossegada demais, havia em mim uma certa vontade de algo que não sabia exatamente do que se tratava. Ficava horas imaginando, sentada na varanda da casa, olhando para o céu. Via nas estrelas as possibilidades que eu tinha, via um futuro imenso e infinito, um grito acuado parado na garganta. Mas daí meu marido chegava da roda de peões bêbado, fedendo a fumo e cachaça, caia na varanda e ficava como um porco atolado na lama, jogado no chão sem um pingo de dignidade. Eu olhava aquilo do alto, o cheiro da bebida me dava enjoo, e ficava pensando: “o que eu vi nele?”.
E lembrei que simplesmente não via nada e já faz muito tempo. Ele nunca deixou faltar nada para as crianças, nunca faltou o que comer, nunca faltou teto, mas também não tínhamos nada, um terreno sequer para falar que era nosso, e isso me frustrava tanto… Até quando viveria daquela forma? Eu falava para Davi que tínhamos que juntar um dinheiro para comprar uma casa, ele falava que o patrão era bom e nunca nos deixou sem nada, que não tinha coragem de pedir a ele dinheiro para uma casa. Será que só eu entendia que esse era um ciclo vicioso?
Me pego as vezes com dó de Davi, achando que eu jamais poderia fazer aquilo com ele. Abandonar um casamento de quase oito anos assim, do nada. Mas pensando bem, pensando muito bem, eu colocava meu sorriso na frente. Era tudo tão cômodo, não havia vida apesar dos oito anos e duas filhas. Quando me lembro de como eu e Davi resolvemos juntar os trapos, aí eu percebo que não posso ficar com dó dele porque eu preciso ter compaixão de mim primeiro.
Quando tinha quatorze anos, conheci Davi em um baile do assentamento em que morava com meus pais. Minha mãe amargurava nela a essência da mulher abandonada, da mulher que tinha brilho nos olhos, mas perdeu tudo por um destino corrompido pelas circunstâncias certeiras das senhoras do campo. Meu pai chegava bêbado em casa, batia em minha mãe, batia em mim e não encostava um dedo sequer em meus irmãos. Aliás, ele dizia o quanto meus irmãos tinham que serem homens, e que homem era daquele jeito mesmo. Com dezessete anos, engravidei de Davi, minha mãe gritava pelos cantos da casa me amaldiçoando, e falava que meu pai iria virar uma fera assim que descobrisse. Foi por isso que Davi achou melhor casar. Foi até meu pai e pediu minha mão em casamento. Meu pai desconfiou da barriga, eu ainda fazia o ensino médio, e pelo jeito não iria terminar.
Quando Davi foi embora acompanhado de seus pais, meu pai virou-se para mim e disse, com fogo os olhos: “Eu não vou te dar uma surra menina, pois não quero perder um neto, e agora você tem um marido pra te pôr na linha”.
Eu e Davi nunca nos casamos no papel nem na igreja. Simplesmente me mudei com ele para a casa de meus sogros, e quando Helena nasceu, fui morar com ele na fazenda em que trabalhava. Mudamos de lugar quando ainda estava grávida da minha segunda filha. As coisas foram acontecendo no impulso. Eu nem o amava tanto assim, talvez só quisesse sair de casa, me ver livre de ouvir minha mãe gritar todas as vezes que meu pai batia nela.
Quando o pai morreu, eu via nos olhos de minha mãe a satisfação de estar livre de um homem que a surrava todos os dias. Via meus irmãos chorarem o herói morto, e vi no espelho os meus olhos não terem reação alguma. É por isso que entendo a reação de minha mãe quando me mudei para a casa dela sem emprego, sem marido e com duas filhas. Ela finalmente livrou-se do casamento martírio, que a consumiu por anos. Aposentou-se, deixou um de meus irmãos cuidar da chácara e foi morar em uma casinha que o pai havia comprado na cidade. Ela estava livre. Amargurada, ranzinza, mas livre.
Resolvi voltar a estudar, terminar o Ensino Médio, era o mínimo que eu poderia fazer por mim. Consegui um emprego de serviço gerais na universidade pública da cidade. E foi lá que eu percebi que eu despertei pra mim.
O meu canto não é talento e nem sorte;
Foi moldado na lágrima da terra fria.
Pra te fazer lembrar guria…
Que juntas, somos mais fortes!
Todos os dias chegava no mesmo horário, levava as crianças para a escola e corria pedalando para o trabalho. Um balde, vassouras e produtos de limpeza já me aguardavam. De longe eu via rodas de conversa debaixo de árvores no campus, diálogos que me chamavam, apenas pela curiosidade e vontade de fazer parte de um deles. Admirava aquelas conversas, na verdade nem sabia do que se tratava, mas admirava a imponência das palavras ditas. Comecei a tirar meus quinze minutos de descanso em um banco perto de uma das rodas de conversa, fingia mexer no celular apenas para ouvir o que estavam falando. Falavam de liberdade, não uma liberdade física, mas uma liberdade plena. Como achava lindo. Me sentia com vontade de chegar perto, mas eu tinha apenas quinzes minutos para estar ali.
Ser ouvinte daqueles diálogos me satisfazia, de alguma forma fazia eu me sentir plena. Sentia um vazio quando não via estudantes reunidos conversando pelos corredores ou sombras de árvores no campus. Durante duas semanas de março, oito mulheres sentavam-se na sombra de um pequizeiro, falavam sobre feminismo, diziam palavras como sororidade, ressonância e liberdade. Havia algo de encantado naquelas palavras, assim com algo forte em cada frase. Me sentia a cada dia mais atraída por aquele discurso.
Naquela manhã, eu me inclinava de lado para ouvir mais sobre as tais palavras, quando um mão encostou em meus ombros e disse cantante : “Dona Ângela, quer sentar-se ali com a gente?”. Fiquei pensando se me sentia ofendida pelo “dona”, afinal e eu era mais nova que muitas alunas ali, mas minhas roupas e meu comportamento eram de uma mulher presa à distância da juventude, talvez a própria juventude tenha passado correndo por mim e eu nem a vi.
A moça estava parada na minha frente, tinha as mãos estendidas, um cabelo esvoaçante, propositalmente desarrumado, umas roupas coloridas e um olhar pleno por trás daqueles óculos alaranjados. Linda. Eu ergui o tronco e ela me puxou pelas mãos: “mas eu só tenho mais sete minutos de descanso”.
“Então teremos o prazer da sua presença por sete minutos”, disse ela.
Quando me sentei ali, me veio o deja-vu, parecia que era para estar ali, ou talvez já estivera.
“Angela, este é um grupo de estudo sobre o feminismo, luta e impacto sobre as mulheres, temos uns textos que se você quiser ler, estaremos aqui todas as manhãs, às nove, para conversarmos sobre eles, se quiser pode passar seu intervalo conosco”.
Peguei os textos nas mãos e segurei-os com força, acho que até os amassei, tamanha era o meu nervosismo, não por desconforto, mas uma ansiedade estranha de algo que não sabia o que era. Elas foram lendo os textos e conversando, diziam com tanta convicção, falavam tão livres, que às vezes via borboletas voarem das suas bocas. Eu parecia uma boba, mas uma boba feliz.
“O lugar onde toda mulher deveria se sentir bem
É dentro dela…”
Enquanto o tempo passava, me sentia a cada dia mais próxima daquele universo, estava todos os dias às nove nas rodas de conversa, fiquei ali por duas semanas seguidas apenas ouvindo. Tinha vontade de falar, mas não conseguia abrir a boca, as palavras paravam em um nó na garganta, um certo complexo de inferioridade, vergonha de falar besteira e de rirem de mim.
Todos os dias, depois das dez, depois de dar janta para as meninas, depois de ajudar no dever de casa, depois de ouvir minha mãe reclamar de algo, eu sentava na varanda, lia os textos. Precisava ler mais de uma vez alguns parágrafos, não conseguia compreender direito logo de cara, mas também não me contentava em dormir sem entender. Adorava aquele momento.
Minha mãe veio até a varanda, e com as mãos arrumando os grampos do cabelo, disse com um certo deboche: “Você agora achou de estudar, é?”.
“Estou lendo umas coisas aqui”, disse sem mais delongas.
“Acho bom não demorar, a conta de luz está vindo alta demais”.
Terminei a página que lia e me recolhi, não conseguia pensar nos textos, e olha que minhas noites estavam ficando às claras, tentando decifrar o complexo linguajar acadêmico, mas ficava tentando imaginar se houve uma época em que minha mãe tenha sido mais doce. Ela era de um amargo tão cruel que cheguei a pensar várias vezes que ela me odiava.
Na terceira semana de discussão no grupo de conversa, estavam combinando uma social. Engraçado como usam uns termos tão simples, “social”. Já estava fazendo parte do grupo de conversas em um aplicativo, e me vi combinando entre elas. Nunca me manifestei nem no aplicativo nem nas rodas de conversa, aquele complexo de inferioridade ainda atolava a voz na garganta.
“Angela, estamos marcando um vinho e prosa na casa da Mariane, vem participar com a gente. Só precisa levar uma história de uma personagem mulher que você conhece e que fez a diferença na sua vida”.
Fiquei pensando… daria sim para ir. Eu tenho o dinheiro da cota para a compra do vinho e petiscos, e minhas filhas vão passar o feriado na casa da avó paterna. Seria uma das primeiras vezes que eu teria um tempo só pra mim.
“O primeiro passo é a escolha;
O segundo passo é a guerra…
O terceira passo é fazer com que os obstáculos da guerra
Te façam forte o suficiente para não desistir da luta”.
Continua…
Marcos Teodoro
Achei e pensei…Muito bem escrito, numa linguagem simples e composta com detalhes que me fez mergulhar no texto !!!