Um conto de Adriana Mayrinck
Adriana Mayrinck, nasceu em 1970, fundou a IN-FINITA, criada em 2008 para assessoria literária, eventos, projetos e produção cultural. Desde 2010, fomenta e divulga a poesia, literatura e cultura luso-brasileira, morou no Rio de Janeiro e Recife, e em 2017 mudou-se para Lisboa e divulga os autores brasileiros e portugueses, em seus projetos e eventos. Representante em Lisboa do Projeto Solidário Ser Mulher, do Mulherio das Letras – Portugal, da União Brasileira de Escritores (UBE-RECIFE) e do ELOS CLUBE Teresópolis. Faz parte da Academia Virtual da Língua Portuguesa, na cadeira OLGA SAVARY. Tem dois livros publicados (In-Finita – Dowslley Editora e In-Sensatez – Coleção 32 – Sangres Editorial), participou de algumas antologias no Brasil, Portugal e Suíça e das edições do Fanzine Alfarrábios.
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Era apenas um pedaço de chocolate
Estavam mudos naquela manhã, outrora, era tempo de afagos e risadas. Um desencontro de palavras e atitudes silenciou sorrisos. Cada um fechado em seus dissabores, prosseguiam pelas horas. Ela, em cima da escada, pintando detalhes na sala de estar, na ânsia de alterar as cores desbotadas pelo tempo. Sentia falta da voz grave que contava-lhe piadas sem graça, olhava fixamente para os seus próprios movimentos entre a tinta e o pincel, não ousava desviar o olhar e procurar por ele. Faltava-lhe coragem para fugir, tinha medo de falar. Ele a observava de relance, enquanto pintava a porta da entrada. Horas entre idas e vindas, sem aproximarem olhares. Ele ainda na ressaca, lutava com sua própria consciência. Nitidamente demonstrava uma inquietação e talvez, desejo de regressar à noite anterior. A tarde pálida e a mudez no tempo, sufocavam o ar e ouvia-se no vento parado as ameaças, a discussão, a mão que acertara em cheio o lado direito do rosto, deixando-a tonta e perplexa.
A mesma mão que continuou fechada, movimentando-se no ar e ameaçando-lhe por quase uma hora de embriaguez e insanidade regados a uísque, vinho e cerveja.
Depois veio a escuridão, o silêncio, o vazio.
Ele engoliu em seco e pegou um pedaço de chocolate.
Estendeu a mão com amabilidade, e ela, distraída pelas horas no abismo de si mesma, agradeceu, pegou sem o fitar e colocou no bolso. Engolia as lágrimas contidas e permanecia quase imóvel, olhando para a parede, sem querer descer do refúgio que lhe garantia um mínimo de lucidez naquele momento, em que tentava desistir de todos aqueles anos em que ele fora o centro do seu mundo e da sua vida, mas o coração insistia em permanecer na paixão que a levara até ali, confundindo os sentidos. A vida passou pelos minutos, ao entardecer, uma passagem de avião aproximou-os em palavras banais. De repente, perceberam-se estranhos. Os ecos ficaram, daquela noite que nenhum dos dois conseguiu apagar, mesmo com as novas cores na sala de estar.
As malas prontas e um sorriso triste, empurrou-a para o táxi que esperava. Com olhares mergulhados um no outro, desistiram das palavras, e cada um seguiu pela noite escura, caminhos distintos.
Ele, oprimido, procurou o bar mais próximo, consolava-se, imerso no uísque.
Ela, destruída, refugiou-se em um quarto de hotel, insone, deixava-se afogar em água e sal.
Amanheceu em cima da escada.
Com o pensamento em redemoinhos e sentimentos contraditórios ficou olhando para aquele pedaço de chocolate, que guardara como lembrança. Abriu a boca, fechou os olhos e deixou-se absorver por aquele instante, sentindo o chocolate derreter com o calor do beijo que negou, da desculpa que não aceitou, do amor que abandonou, do tapa que não perdoou.
Ele não mais está.
E era apenas um pedaço de chocolate…