Um conto de alma… Karáguejá I – Coluna “Ecoa”
Quando uma mulher dá a luz, seu corpo se quebra em milhares de pedaços.
Seu coração salta bombardeando sentimentos ainda… Às vezes, talvez, obscuros. Incompreendidos. Bons ou ruins.
O que mais lhe causa medo é a insegurança. A certeza de que a partir daquele dia, está tudo incerto. Poderia dizer que mil e uma coisas passam em nossas mentes. Mas a dor não deixa. Só a dor ocupa o lugar de destaque. Só a dor te faz viver.
E de repente, um alívio. Um choro. A dor se torna poço sem fim. Ela está ali, mas está distante. Não há espaço. Não que ela tenha sumido, ou que tudo tenha clareado, mas a mistura de sentimento faz como as cores quando se juntam, branqueiam…
Deu-se a luz, mas nem tudo está claro.
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Quando estava próximo do parto, as mais velhas me levaram para o rio. De cócoras, com as mãos agarradas à galha de ingazeiro à beira da margem, fiz o canto virar grito. Tudo tão assustador e bonito. Já deitada na rede, dando de mamá, fiquei imaginando como eu estaria agora se escolhesse devolver a criança às águas.
Quando uma mulher é abandonada pelo marido aqui na aldeia, a regra é clara: a mulher, se estiver grávida, tem o direito de escolher se devolve a criança, deixando o rio levar ao nascer, ou se vai assumir o filho sozinha. No primeiro caso, devolvendo a alma da criança ao rio, ela pode se casar de novo e constituir nova família. Se assume o filho, tem que partir sozinha para a mata e ser mãe, caçadora, protetora… fera.
As mulheres da aldeia amparam a irmã, pelo menos até o período que a criança está amamentando. Trazem frutas, mel e caça. Para que ela fique forte e saudável para seguir sozinha. Todas estavam sentindo a mesma dor. A dor de ver a irmã com o filho nos braços, e um caminho incerto.
Dei à luz a uma menina. Uma forte menina de olhos de onça.
Precisava saber exatamente o que fazer com ela, é tudo tão difícil para uma mulher aqui. Se a esposa for abandonada, a culpa é dela. Mas como ser feliz com um filho debaixo da cachoeira? Ou com a incerteza se vai ou não ser abandonada novamente?
As mulheres da tribo têm coração bom. Não gostam da mulher que toma o marido da outra. Mas preciso falar para a minha filha ao longo da sua vida que a culpa não é da outra, a culpa é dele. Talvez tenha colocado mel de jati nas frutas dela, como colocou na minha. Ele adoçou os nossos destinos amargos, mas quem se lambuzou de mel foi só ele.
As irmãs trouxeram uma trouxa de frutas, havia dois pássaros mortos e já depenados pendurados no cipó. Um pouco de farinha de mandioca e ervas para remédio, se precisasse. Ganhamos uma lança bonita enfeitada de penas de periquito. Fiz um arco e várias flechas, amarrei-as nas costas. Coloquei a menina deitada no peito, assim minhas mãos ficariam livres para defesa.
Preferi sair de noite.
A menina já estava forte e eu, preparada para sair da aldeia. Escolhi uma noite de lua alta, lua cheia, quis sair nas bênçãos da Mãe, porque ela sabe clarear o caminho de uma mulher. Naquela noite de lua clara, eu olhava para ela e sentia como se ela me chamasse; não estava triste, não estava só; algo preenchia de coragem meu peito e um pulso assustador. Minhas irmãs cantaram uma cantiga de força, que dizia que o ventre que dá à luz traz também a força da Deusa. Gritavam palavras de encorajamento, mas nos seus olhos desciam lágrimas. Atravessei o rio, minha filha e eu. Era tempo de pouca chuva, a água batia nos joelhos, mas mesmo assim estava forte a corredeira. Muitas pedras nos meus pés, mas aquelas seriam as primeiras pedras do meu caminho. Eu ainda não sabia para que lado estava o meu caminho…
Ouvi os cantos das irmãs mais distantes, elas cantavam para eu me sentisse forte para seguir, só que eu não sentia, mas tinha que ser forte. E tinha que seguir. No meu peito, ainda dormindo, uma menina que podia ter sido devolvida às águas e deixado minha vida mais fácil, mas um dia um pássaro azul de caldas vermelhas disse à minha mãe que nada pra mim seria fácil.
Depois da curva da cachoeira já não podia ouvir as minhas irmãs cantarem. Ouvia o som dos bichos noturnos. A lua estava tão clara que nada parecia assustador. Minha menina acordou para mamá. Então achei uma árvore de galhos confortáveis, parecia até ser rede, com seus troncos deitados. Subi na árvore, achei um canto confortável e me encostei para alimentar minha menina. Pendurei minha comida no galho e por um instante inclinei minha cabeça e fechei os olhos. Não sonhei, eu apaguei. Quando acordei, já estava me despedindo da lua para ver o sol.
Aproveitei os primeiros raios desse sol e caminhei até encontrar uma capoeira. Bem pertinho havia um riacho e, mais à frente, montanhas de pedras altas; parecia seguro.
Quando o sol estava alto, já havia caminhado bastante. No arder do sol, parava na sombra de uma grande arvore, descansava, colocava a menina para dormir, me alimentava um pouco e criava coragem. Todos os dias subia o córrego, sempre no frescor da manhã e no finalizar do dia. Andei subindo o riacho até encontrar outro riacho e assim encontrar outra capoeira.
Um dia resolvi parar, parecia ter encontrado o lugar ideal. Fiz uma morada fixa, mais forte do que as outras que ia deixando para trás; trancei uma rede, fiz fogo, achei cabaça e frutas cheirosas. Fiz, do barro da beira do riacho, potes de vários tamanhos. Plantei mandioca, amendoim e guaraná. Armei arapucas, fiz ceva com a tripa das caças. Dormia em silêncio e acordava em paz. O tempo foi passando, minha menina foi crescendo, e ela ainda não tinha nome. Não quis dar a ela algo que não fosse do seu agrado. É muito difícil tomar uma decisão sem ter uma sábia por perto. Eu tinha que ser a guerreira, a caçadora e a sábia. Eu tinha que ser mãe por inteira, apenas mãe. Essa foi a minha escolha.
Junto com as sementes e raízes que havia ganhado de minhas irmãs quando saí da aldeia, tinha uma erva que servia para tudo. Carregava sempre comigo um punhado daquelas folhas. Demorou fazer brotar, tive que esperar a lua certa, e fiz moita de tanta que nasceu. Essa erva com guaraná em água de chuva abaixava febre de criança e deixava forte para se alimentar; amassada no pote com banha de peixe, tirava coceira do pé e seu sumo cicatrizava ferida. Sempre mostrava para a minha menina como plantar e como colher não só essa erva, mas todos os alimentos. Ela estava tão pequenina nessa mata gigante, mas carregava consigo, dentro de uma cumbuca, um punhado da erva que servia para tudo.
Um dia, lavando os potes na beira do riacho para enchê-los d’água, olhei para o lado e não vi minha menina ali. Ela ficava brincando, jogando pedaços de cascas de mandioca para os peixinhos e conversando com eles. Larguei tudo e olhei para o riacho, fiquei com medo de ter poços, ela podia ter caído em um deles. Por que uma mãe sempre pensa o pior? Meu medo gelou meu peito eu não conseguia pensar direito, só agir.
Corri para o outro lado, andava na margem e não encontrava nada. Até que ouvi um som que sempre temera. Era de onça. E vinha perto da morada. Fui seguindo o som correndo na mata como uma fera corre atrás da presa. Mas corria pela vida, não pela morte. Quando cheguei em uma grande rocha que estava coberta pelas folhagens, o meu medo cresceu em proporções de floresta. Uma onça estava deitada no chão coberta por sangue, uma lança cravada no seu pescoço, ainda amamentando um pequeno filhote, que sugava o resto de vida daquela mãe. Minha filha havia tirado a lança e, com as ervas que sempre carregava, tentava estancar o sangue. Eu cheguei perto, comecei a ajudar a minha menina, que pedia com os olhos para eu salvar aquela fera. Mas não tinha mais jeito. A fera me olhou nos olhos e, em um gesto protetor, empurrou com as patas o seu filhote em direção da minha menina, que o pegou no colo e saiu brincando com ele nos braços. Eu sentei a cabeça da onça em meu colo, e com carícias passava a mão entre suas orelhas, dizia a ela que poderia ir em paz, pois cuidaria da sua cria com o mesmo zelo que cuido da minha. Cantei uma cantiga da Grande Mãe, me despedi dos seus olhos, até que ela parou de respirar. Com muito custo, arrastei o seu corpo até o riacho, na parte mais funda e cheia de corredeiras. Deixei-a descer o rio, devolvi sua alma às águas.
Continua…
Gleycielli Nonato é Indígena da etnia Guató do Pantanal de Mato Grosso do Sul; acadêmica de Letras e Literatura na UFMS Campus Coxim; escritora, radialista, ativista social e cultural; Membro da Academia de Letras do Brasil seccional Coxim, cátedra 11.