Um conto de Caio Augusto Leite
Caio Augusto Leite é um contista, poeta e romancista brasileiro. Nascido em São Paulo, publica em 2012 seu primeiro livro, Samba no Escuro (2013, Editora Scortecci), de prosa poética. Em 2016 iniciou seu mestrado em Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP), uma pesquisa voltada para a análise do romance A paixão segundo G.H. de Clarice Lispector a partir de conceitos extraídos da obra do filósofo francês Gilles Deleuze. Publica em 2017 o livro de contos A repetição dos pães (Editora 7Letras), livro que, antes de ser publicado, recebera menção honrosa no prêmio Projeto Nascente. Teve textos publicados em diversas plataformas virtuais, entre elas a Revista Escriva da PUC-RS (Porto Alegre – Brasil). Em sua gaveta há ainda um romance e um volume de contos esperando publicação.
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Sem tabuleiro
A partida de xadrez não terminava nunca. Assim pensava Gonçalo abrindo a carta e marcando o próximo movimento. Não perdera nenhuma peça, mas também – agora – não conseguira abater nem mesmo um mísero peão de André. Selava o envelope enquanto o menino de recados aguardava para correr com a carta até o outro lado do bairro mais uma vez.
Gonçalo e André travavam uma batalha que aos poucos ia ganhando contornos épicos. Os dois maiores enxadristas da atualidade num duelo mortal. Talvez moral, uma vez que não haveria sangue. A Guerra Fria dos tabuleiros. Nem mesmo tabuleiro. Apenas um punhado de folhas de caderno arrancadas com os movimentos assinalados pelos códigos que cartesianamente tornavam as peças localizáveis.
Mas sem tabuleiros? Perguntavam-se as pessoas, admiradas quando se tornou público o embate. Não precisavam. Gonçalo e André não eram à toa os maiores do mundo. Há muito haviam abandonado os cavalos e rainhas de madeira e os campos em preto-e-branco. Sabiam de cor e sem cor as coordenadas, os movimentos, os lances, as jogadas combinadas, podiam vencer um adversário menos bem dotado antes mesmo de ele mexer a primeira peça.
O curioso da coisa é que a partida já durava semanas. Alargando as possibilidades de movimentos a infinitos como uma espiral dentro de um quadrado, os dois continuavam a batalha jurando que esta ainda não terminara e o que era mais incrível: nenhuma peça fora tirada de campo. Muitos não acreditavam, mas ninguém tinha cabeça pra entender os esquemas lógicos que estavam inscritos no calhamaço que todo dia ia e vinha pelo bairro pelas mãos pequenas do meninote: apenas um peão entre dois reis infatigáveis.
Gonçalo e André regulavam em idade, não sabemos quanto, sabemos que iguais. Ambos nasceram na mesma cidade, no mesmo bairro, de fato, na mesma casa. Não no mesmo dia. Gonçalo e André eram gêmeos. Sim. Gêmeos. O momento do acaso fez com que Gonçalo – o mais velho – saísse do ventre às onze horas e cinquenta e oito minutos da noite, porém o irmão, por imprudente acaso e pela demora de três minutos, acabou vindo à luz meia-noite e um minuto do dia seguinte. Separados pela inércia de um. Ou pela falta de força do primeiro para se arrastar até o dia seguinte, como que parando no meio do caminho e recuando e nascendo na praia, como diz um ditado muito parecido. Gonçalo nascera no Dia de Finados, naquele tempo marcado com tinta preta no calendário, e André no próximo dia, que era branco como os demais. Desde então estava assinalada certa ambiguidade que seria levada ao extremo quanto mais ambos fugissem dela.
Nenhum se tornou enxadrista por desejo. André casou-se com uma pintora que era fascinada pelo jogo, e se o amor é também um jogo, aprendeu a jogar para mais amar a amada. Tanto amou que amou mais o amor que o que devia amar. André era um jogador apaixonado e por instinto trançava as peças pelo tabuleiro vencendo qualquer um que o desafiasse.
Já Gonçalo viajou para longe e formou-se arquiteto. O gosto pelos números e pelos diversos tipos de moradia fez com que se tornasse um aficionado pelas sessenta e quatro casas do desporto. Pela medição exata das probabilidades também ele vencia aqueles que se dispunham a tomar-lhe uma partida.
Sem que planejassem, apesar dos afetos afastados (tão amigos na infância, brigavam muito na adolescência, não mais se falavam, o que reservava a velhice?) acabaram retornando quase ao mesmo tempo ao mesmo lugar de partida. Quase, pois Gonçalo viera primeiro, como sempre viera, e então André como sempre seria. Gonçalo jogando de peças brancas era o inaugurador, André o continuador. Pois sem que o segundo esperasse, chegou-lhe a carta – pelo mesmo menino do início – a folha em branco assinalando o primeiro movimento em traço duro e decidido de grafite escuro com a letra G na frente entre parênteses, logo abaixo o mesmo só que com uma letra A – assim: (A), como se Gonçalo soubesse que era inevitável o convite e de fato o era.
A regra era simples, cada um tinha um dia para fazer seu movimento e enquanto não o faziam, o menino esperaria. Às vezes era rápido, como mostrado agora há pouco, por vezes demorava uma tarde, quase a noite inteira e no breu o menino ia antes que o prazo findasse e o remetente perdesse a contenda.
Mudos, ambos se comunicavam de novo. A dança de cavalos, reis, rainhas, bispos, torres e peões parecia eterna como a dança de astros que se movimentam em harmonia celeste sem nunca colidirem. Mas até astros se afastam e se desviam da rota, milésimos de centímetros por milênio, o tempo que olha apenas o atual não sabe prever a catástrofe.
Como escorpiões acuados, o tabuleiro ia criando, movimento por movimento, um enredo que se tornava mais e mais intrincado. De modo que a qualquer momento os dois exércitos, à força de tanto preservarem-se, acabariam criando para si próprios ciladas que não poderiam desarmar.
Gonçalo, enquanto esperava resposta, já o sabia – pois calculara. Também André, pois intuíra.
Primeiro foi um cavalo branco, depois um bispo preto, depois um peão de que já não sabem de que cor, pois logo em seguida foi outro peão da cor oposta do primeiro o que nos faz saber que ambos perderam peões, apesar da ordem que já não altera os produtos.
As regras mudaram: tinham agora meio dia para a resposta. Depois algumas horas. Depois menos de hora. Menos de meia hora. Menos de menos. E o menino corria de um lado para outro, suando, cansado, sem comer, sem beber. Peãozinho que era.
Numa dessas idas e vindas o garoto se atrapalhou, zonzeou e acabou dando meia-volta sem se aperceber e indo em direção ao irmão que mandara a carta. O outro esperava sentado sabendo do que não sabíamos nós. Sentado esperava a demora. O irmão que mandara a carta sabia também que a resposta viria depressa, pois não havia mais movimentos a se fazer. Da soleira da porta podia ver a poeira se elevando, o menino correndo, porém muito antes do que calculara, muito antes.
O garoto sem saber do erro, entregou a carta ao irmão mais velho. Gonçalo pegou a carta e assustou-se tão bem assustado com o que lera que foi ficando rosa, de rosa roxo, e de roxo preto de tão roxo; até que caiu duro no chão sem perceber que fora ele mesmo quem escrevera “Xeque-mate” no papel amassado.
Como o menino demorava, André levantou-se conformado e foi em direção ao quarto.
Assustado com o corpo pesado do morto no assoalho, o peãozinho correu de volta para dar a mensagem certa na hora errada. De longe via a casa de André, mas ele não o aguardava.
Chegou. Empurrou a porta. Dois, quatro, seis degraus. A porta do quarto. Comprimidos no chão. Pálido de tão branco. Um homem espumando no assoalho.
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