Um conto de Carolina A. Ieda
Carolina A. Ieda: atualmente vive e mora em Cuiabá.
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A ansiosa (não) solicitude pela vida
No princípio era o véu da curiosidade e por baixo dele todas as fantasias de sobrevivência, atreladas ao pessimismo, no já imunizado organismo da imaginação.
Foi avisada por e-mail. A coordenação, aterrorizada, liberou todos os funcionários:
– Quando voltaremos a funcionar?
– Sem previsão de retorno. Vamos nos reunir para pensar em um modo de repor as atividades, em algum momento.
Era somente disso que necessitava. Algumas palavras, um atestado de legitimação.
No princípio era a potência. O poder estava com ela, o poder era dela, o próprio poder era ela mesma. Tinha alguma comodidade financeira, foi ao supermercado e adquiriu comida para três meses. Quando os dias foram condenados a se passar naquele lugar, organizou a casa e limpou os cantos abandonados pela rotina. De vez em quando, olhava para os pais, dois idosos. Era filha única, a única filha. Antes, pensava e deveras culpava-se por se imaginar visitando-os em uma casa de repouso luxuosa. Ela chegaria em um carro confortável, daria um abraço na mãe. Depois voltaria para seu apartamento, quer dizer, aos resquícios de trabalho que não puderam ficar em seus locais de origem.
Mas o futuro não havia chegado como ela, anteriormente e há muitos anos, vinha planejando secretamente. Estavam os três confinados. No primeiro dia, o estranhamento das inadiáveis presenças foi aconchegante, bem humorado. No Brasil, poucas mortes e algumas centenas de casos. Olhava para as mãos enrugadas da mãe e sentia um calor, um sentimento forte pela senhora, por ambos. Vociferou contra as pessoas irresponsáveis na rua, imbecis, tolos, pensava ela. Em sua última demonstração pública, acusou toda a população que insistia em circular pela cidade, direta e indiretamente, de tentar assassinar seus pais.
Antes do findar dos primeiros dois dias, estabeleceu metas de estudo, tirou livros esquecidos da estante e encomendou outros mais. Tinha internet, comida, atividades. Inventou trabalhos e ocupações. Junto a ela, a pífia multidão com que intimamente se relacionava fazia o mesmo. O tempo ocioso merecia prestezas, de preferência, intensas.
No terceiro dia, o último pacote de biscoito recheado teve a sua embalagem rompida. Enquanto o plástico colorido, ruidosamente, berrava a violência de sua dilaceração, as mãos da mulher forçavam a entrada como se quisessem estuprar o pacotinho e apanhar tudo de seu interior.
– Vai engordar, viu?
A fala era da mãe que, sentada na varanda, não pôde resistir a repreender a filha.
Vai engordar. As palavras da mãe chacoalharam dentro de sua cabeça. Mas antes, teve um acesso de lucidez:
– Vou sim. Algum problema? Disse, com os dentes cobertos de uma massa preta e doce. Numa mão, o pacote rasgado, pela metade. Na outra, a nota fiscal quilométrica da compra do supermercado.
Voltou ao quarto, orgulhosa. Conseguira afirmar-se, já que era uma mulher dona de seu destino e de seu corpo. Quem é que comprou tudo isso? Quem estava pagando todas as contas? Quem trabalhava como uma louca pelo computador?
A resposta, ela imaginava, seus pais deveriam saber. Além de tudo, tinha proibido a saída e entrada de vizinhas, amigos e qualquer pessoa do mundo externo que pudesse infectá-los. Achava-se a filha mais cuidadosa, a mais consciente e a mais merecedora de algo que não sabia bem o que era. A porta é escancarada e, num acesso de autoridade, o pai toma o seu lugar:
– Você comprou tudo isso porque quis. Ninguém te pediu nada. Agora… não aceito essa falta de respeito com a sua mãe. Ela só quer o seu bem.
Engoliu mais uma bolacha, a seco. Duas semanas atrás ela teria dirigido até um café ou restaurante com os amigos. Sentiria que seu trabalho rendia-lhe algum prazer para ser gasto na vida, compraria uma roupa nova para sentir-se uma pouco mais bela ou um pouco menos feia, decadente, asquerosa. Por incentivo do namorado – não sabia e nem queria saber a real situação do relacionamento, atualmente – investiu suas economias em algumas ações da bolsa que no ano passado renderam-lhe um dinheiro razoável. Duas semanas atrás ela sentia que tudo o que, anteriormente, a vida e os pais haviam negado estava disponível para ela: bastava trabalho, empenho, dedicação e alguns golpes de influência. Maldita doença, vírus demoníaco. Não fosse ele e teria seguido a cartilha da nutricionista, caríssima, diga-se de passagem.
Um pequeno passo atrás no tempo e ela poderia fazer tudo o que quisesse. Ou pelo menos tinha esta ilusão. Seus pequenos investimentos tornaram-se minúsculos, o trabalho virtual não rendia como esperava e o mundo fechou suas portas para qualquer um que se colocasse a conquistá-lo. Pensou em sair, mas não existia ponto de encontro. Enviou mensagens aos amigos, porém, a disponibilidade virtual dava sinais de decadência. Uma tosse seca veio da cozinha, era a mãe.
Idealizou a morte de ambos. Imaginou-se no hospital ao lado deles, usando uma máscara cirúrgica. Eles pegariam em suas mãos, agradeceriam por tudo. No fim, até mesmo confessariam que ela estava certa, que ela só queria o bem. De todos.
Na mesma velocidade que foi capaz de imaginar esta cena, foi também capaz de rechaçá-la do pensamento. Imaginar a morte dos pais? Nunca! No mesmo dia, uma campanha perversa foi lançada por vias duvidosas, as pessoas pediam pela volta da vida comum, anterior. O dinheiro era o problema, pensou. E a ideia de colocar o vovô no cantinho foi fazendo sentido em sua cabeça, paulatinamente. Ela trabalharia como de costume, o comércio voltaria ao normal. Poderia sair, encontrar pessoas, sentir aquilo que chamava-se vida pulsando novamente. Claro, isolando os idosos, aqueles que compõem o grupo de risco.
Ela, como uma boa e dedicada filha, trataria de fazer nada faltar. Isolaria os pais em uma parte da casa, pois, ela mesma, também constituiria um risco a eles. Tudo voltaria ao normal. Seus inimigos e desafetos voltariam a possuir relevância e, após alguma situação, sentaria com seus amigos na mesa de um bar onde discutiriam e na mesma medida, praguejariam toda vida em desconformidade de seus íntimos padrões.
A porta abriu, era sua mãe, vestida com uma roupa cor-de-rosa, munida de vassoura, pá e um grande saco de lixo preto. Esvaziou a lixeira da escrivaninha, sacudiu e arrumou a cama. Pelo quarto, a senhora agachava-se para pegar os pacotes vazios de biscoito recheado, a cada embalagem, uma lágrima caía dos olhos da velhinha. A jovem mulher vociferou contra a cena, sentiu-se desrespeitada, tinha vinte e muitos anos e um trabalho, uma carreira, a vida toda pela frente. Estorvos de minha vida! Bradou. Mal possuem uma aposentadoria razoável! As mãos de sua mãe tremiam, e seu pai, escorado na porta, apenas observava em silêncio. Incrédulo, com a cabeça abaixada e uma das mãos a sustentá-la, o homem alternava o encarceramento das palavras prontas em sua boca e a tentativa de poupar os olhos daquela cena. A filha chorou sonoramente.
Após alguns minutos, as lágrimas tornaram-se mais tímidas e o pai, finalmente, conseguiu ter algo a dizer:
– Sei que somos, eu e sua mãe, os mais vulneráveis nesta casa. Mas essa sua proteção… Eu recuso. Você não percebe? O único mundo que caiu, aqui, foi o seu.
A mulher berrou, queria ficar sozinha. E sozinha, não suportou a verdade deste sentimento. Havia rumores de diminuição de salários, seus investimentos eram inexistentes. Quando tudo voltasse ao “normal”, voltaria ela mesma a ser uma fodida. Talvez não tivesse dinheiro e nem roupas para mostrar, ela, talvez, seria uma piada a mais em outra roda de pessoas. E mesmo no melhor cenário, sua economia acompanharia o ritmo lento do país. Pensou em se desesperar, mas não foi capaz. Quis arrebentar seu corpo, fugir de si mesma, mas não era possível. Num acesso de ódio começou a arrancar os cabelos e, no banheiro, lamentou a distância entre o quarto e o cômodo que agora estava.
O inimigo externo nunca pareceu tão monstruoso. Abriu a porta e observou se os pais esperavam por ela no corredor. Não esperavam. Como um criança travessa, correu diretamente para o quarto pretendendo não ser vista, embora as passadas de adulta sedentária fossem uma denúncia não intencional. Queria, naquele espaço, reaver toda a vida impossível de ser resgatada, chorou, pensou em morrer. Desejou possuir a doença e falecer como uma exceção. Mas Deus não permitiria tamanho sofrimento, ele haveria de intervir, já que era o responsável pela amada ordem mundana das coisas. Na semana que vem, acredite, um remédio aparecerá. Surgirá como uma pílula milagrosa, ou líquido pronto para ser injetado. Depois disso, as luzes coloridas da noite farão composições com as músicas abafadas dos barzinhos. A ciência não deveria se permitir tantos protocolos, pensava ela. Era necessário uma cura urgente para esta maldição que é o não saber.
O travesseiro disposto a deformação recebeu e forneceu aconchego para sua cabeça. Mas sua agitação era de outra ordem, ela sugava a energia de seus pensamentos e colocava a prova todos os objetos de conforto. No auge da madrugada lembrou-se dos dois idosos no quarto ao lado e sentiu pena, afinal, eram eles que pertenciam ao principal grupo de risco.
Apaziguada, bocejou e dormiu até o enfraquecer do sol da tarde do outro dia. Ao acordar, notou que toda sua métrica, planejamento e atividades diárias ficaram condenadas a não realização. Sentiu-se desprezível, não produtiva. Posteriormente pensou em algum modo de relaxamento, meditação, iniciar um atendimento psicológico on-line e etc. Mas nada era eficaz, agora. Na cozinha, abriu o armário a procura de um pacote de biscoito recheado. De soslaio a mãe observava a cena em silêncio, pelo menos até o momento em que decidiu não se ater a ele:
– Olha, você vai engordar desse jeito! Rosnou.
Antes do término da represália, a cabeça da filha viajava entre os cômodos a procura da nota fiscal que, misteriosamente, não se encontrava mais ao alcance das mãos.