Um conto de Carolina Mary Medeiros
Carolina Mary Medeiros é mestre em Sociologia pela Uerj e graduada em História pela UFRJ. É professora de História efetiva titular do Colégio Pedro II, há dois anos assumiu o cargo de Diretora Geral do Campus Engenho Novo II. É esposa da Andreia e mãe da Luiza.
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Efeito colateral
Lavar as compras do dia havia, por fim, se tornado um momento especialmente diferente na rotina. Talvez um dos poucos momentos solitários da casa. Uma espécie de isolamento dentro do isolamento. Mais um vazio inútil de existência junto às tantas tarefas que se criava para preencher o dia.
– Se afasta que eu tô lavando as compras!
Era também salvo conduto para alguns minutos sem o chamado insistente de filha entoando eternos “MÃE!” junto com o latido do cachorro. O único que não me abandonava em mim mesma era o implicante piar do Júlio César, a calopsita insuportável que minha esposa herdou da vizinha. Júlio havia nascido preso, informou o veterinário. Não aprendendo a ser o que era, tratou de ser o que lhe restara. Morreria se fosse livre para ser o que nasceu para ser. Tentei explicar ao veterinário o quanto aquilo parecia cruelmente contraditório à existência de Júlio. Cheguei a esboçar uma possibilidade poética de existência, ainda que por pouco tempo de vida, mas o “ele fica!” da esposa após a morte da vizinha tornou inútil qualquer argumento mais filosófico. Que dirá poético. Júlio, único macho da casa, amado por esposa e filha, nutria comigo um sentimento de ódio mútuo forte. Talvez porque eu tenha sido a única que ameaçou soltá-lo à liberdade. Liberdade é fardo cruel até para os pássaros. O fato é que com ele, foi ódio à primeira vista. Daqueles que unem os que se odeiam em laços fortes de desafeto para eternidade.
Depois de reclamar do barulho do Júlio, lembrei com sorriso irônico da desculpa que dei a todos no mercado por minha tosse seca constante. “Não é covid não. É naprix.” Ri alto de lembrar da cara das pessoas depois da desculpa aparentemente sem sentido. O remédio de pressão aliviava as dores de cabeça, mas deixava essa tosse seca irritante de efeito colateral. Era dor de cabeça ou tosse. Mesclava essa escolha ora preferindo a tosse, ora encarando a dor de cabeça e a subida de pressão. Brincar assim com a vida tinha lá sua graça.
Controlo bem minhas angústia. Mas depois de meses, o isolamento social deixava suas marcas. No início, embora o barulho ensurdecedor do silêncio de casa, quando comparado às conversas e gritos do trabalho, incomodasse, desinchei. Até emagreci um pouco enquanto diminuía do tamanho que o cargo do trabalho exigia. Entendi, por fim, que o ritmo de mais de 10 horas de trabalho todo dia não podia mesmo fazer bem ao corpo, embora preenchesse a alma.
– Cof…cof…cof
– Tudo bem? Quer ajuda com as compras?
– Tudo bem. É o naprix.
– Vou ligar pro seu cardiologista pra mudar esse remédio.
Lembrei da saudade dos seus pais. Não os via com frequência antes da peste que assolou o mundo, mas quando os via era bom poder abraça-los. O calor do corpo unido, braços com as mãos espalmadas alisando as costas, o nariz respirando cheiro de mãe e pai no pescoço e a voz dizendo um “Eu te amo” que saia baixo da garganta direto do peito, sem passar pela razão. Não durava muito, mas bastava por semanas de trabalho incessante. Às vezes entendia a vida assim. Em pequenos momentos de pertencimento pleno em que o constante sentimento de ser estrangeiro no mundo dava tréguas. O abraço dos pais, o olhar da filha, o amor com a esposa. Instantes de pertencimento. Trégua da lida do dia. Do ser estrangeiro num mundo sem muito sentido.
Saudade é negócio estranho, pensava enquanto a água escorria tirando o detergente do frasco de sabão em pó. Saudade parece rio quando nasce. Aquele filete de água que se esvai pequeno no início e deságua em volumes e afluentes largos. A gente sabe onde começa, mas não sabe onde vai parar pensamento de saudade. Melhor não começar.
Lembrei de sonhos antigos. De quando pegava o metrô pra faculdade e ficava brincando de adivinhar a vida das pessoas no vagão. “Essa deve ser casada indo pro trabalho. O sorriso de lado diz que teve uma noite boa de amor. Casada recente, então. Sem filhos. Ah, certamente sem filhos.” Brincava de adivinhar e com isso me distraía de ser diferente do que era. Brincava de ser um pouco de cada coisa que ia adivinhando quando ainda era possível brincar de ser. Porque ainda não se era nada. Outro dia, enquanto fingia ler, tentei fazer isso com as pessoas da varanda do prédio ao lado, mas não consegui. Depois que a gente vira um monte de coisas, a gente esquece como brinca. Senti saudade de quando conseguia brincar de ser, por ainda não ser nada. Senti saudade de não ser nada.
Reparei ali, compra após compra, que o isolamento dá um efeito diferente no tempo. De tanto viver de futuro, a gente se esquece de ser presente. O isolamento avoluma o presente de um jeito que agrada, mas sufoca. Almoçar em casa com a família à mesa depois da oração de minha filha, agradecendo pelo alimento e desejando saúde a todas as crianças, é mesmo um presente. Uma dádiva desse presente que não passa. Mas a rotina dos que não mais vivem de futuro parece um enorme círculo de fazer coisas do dia que desemboca incessantemente no outro dia. Vai ver sempre foi assim. Eu que não reparei porque me iludia com as projeções de perspectiva de futuro. Deve ser o efeito colateral do futuro. Iludir o presente e abrandar a dor das memórias do passado.
- Acabei com as compras. Vamos almoçar o que?
- Tem jardineira?
- Não, mas faço fresquinha, filha.
- Te amo, mamãe.
- Coff… Coff…cof…
- Tudo bem, mãe?
- Tudo. Não é nada. É só o efeito do naprix.