Um conto de Clarissa Loureiro
Clarissa Loureiro tem os livros de contos Invertidos e Mau Hábito publicados, além do romance Laurus. É doutora em Literatura e leciona na UPE.
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Lígia
A poeira ainda arde nos meus olhos. Minha respiração se mantém ofegante enquanto caminho e as vozes não param de ecoar na minha mente: “o cheiro vai começar a subir e a gente que vai pagar o pato. Porque não vão mais para longe?”. Gritos vindo de um muro pichado de ausência de compaixão. A pá arranha os calos de minhas mãos, uma ferida vermelha abre-se e arde do lado dos meus dedos das mãos. O sangue desce por dentro de mim, cortando, cortando. Ela sempre gostava de passear por aqui, conversava com todos. Alegre, caminhava como quem ia para uma festa. E, agora, meus passos pesam, tijolos jogados no chão, irremediavelmente inquebráveis. Sou feita da mesma areia que se espalha pelos meus braços, pernas, rosto. E é difícil me afastar de onde tudo terminou. É impossível me afastar dela. Pessoas caminham com suas máscaras de domingo. Umas colocam cadeiras nas calçadas. Outras ouvem música alto. Essa alegria de cidade do interior me incomoda. Ninguém pediu silêncio diante das ameaças. “Eu vou chamar a polícia. Você vai pagar caro. Esse lugar tem dono”. Paro e olho pro céu tão azul de uma serenidade imperdoável. A felicidade dos outros é impermeável à dor alheia. Olho para trás e me vejo sozinha naquele terreno, cercado de gente por todos os lados, mirando o arrepio do meu vestido, voando a cada novo golpe dado naquele chão feito de pedras e rancor, judia diante de leões prestes a me devorarem. É preciso olhar para a frente. Daqui a duas ruas, estarei diante do fatídico terraço. Ele havia dito que era apenas uma infecção bacteriana no dia anterior. “É uma lady essa moça. Vocês foram muito cuidadosas. Trouxeram logo nos primeiros sintomas”. Tínhamos comprado fraldas e uma seringa para alimentá-la melhor. O nosso bebê. Sete meses. Há sete meses ela havia sido deixada naquele outro terreno do lado da minha casa. Rejeitada como tantos outros que não têm a raça que todos apreciam no mundo. Eu não sabia, naquele tempo, que o mundo tem raça e escolhe os seus participantes que devem ser tratados com dignidade. Lígia sabia menos ainda. Amiga de todos da rua que agora me aproximo, inclinava a cabeça para pedir afeto, criança do mal. Vejo a esquina em que me esperava para entrar em casa, tão livre e disposta. Ela não estará mais lá. Estou estagnada diante do inevitável. Entrar em casa é admitir que jamais serei a mesma. Chove no meu vestido rasgado de dor. E a água escorre pelos meus cabelos, seios, coxas. E a terra escorre pelo meu corpo que treme de frio e de calor do sol que queima a mesma ferida do lado dos dedos de minhas mãos. E eu espero, quetinha, como quando era criança e minhas avós jogavam água nos meus cabelos cheios de remédios para piolho. E são minhas avós que me banham agora e me sussurram: “ tudo, um dia, tem que ir embora. Tudo. O veneno vai sair de sua cabeça. Talvez, você vomite, porque é preciso vomitar a vida, às vezes, para continuar existindo. Vomite, milha filha, e olhe para cima”. Um mal-estar sobe pela minha garganta enquanto abro o portão vagarosamente e piso no mesmo chão ensopado de vômitos e diarreia vermelha. Tonta de enjoo, levanto os olhos e é o arco-íris que se forma no céu bem próximo do terreno perto de minha casa. Sorrio porque dentro de meus olhos é Lígia quem vai correndo aos pulinhos por cima dele, depois de seu último vômito, com as patas já paralisadas, enquanto mirava meus olhos com o mesmo semblante de afeto de minhas avós. Envenenada pela fraqueza de amar demais a humanidade.