Um conto de Diego Franco Gonçales
Diego Franco Gonçales, nascido e criado no ABC paulista, hoje mora em Caraguatatuba/SP. Pesquisa e ensina Comunicação em universidades; traduz, prepara originais e revisa para o mercado editorial; e é instrutor de krav-maga, arte marcial israelense para defesa pessoal. Publicou o volume bilíngue Dois contos de Kate Chopin (Edição do autor, 2019) e teve contos selecionados para revistas literárias (Ruído Manifesto; RelevO; Kurumat’á).
Contato: medium.com/@diegofgoncales
***
Máquina fria
Um velho. Por que não arrega?
E não é como se Treze não tivesse acertado direito: foi tudo na cabeça como deve ser, o som tátil e familiar de osso amassado confirmando o encaixe de um soco, de um tapa, de uma paulada. Treze pode ser tudo, menos ruim de briga. Mas o velho, que sabe apanhar, também sabe bater, e devolve uns bons murros.
— Cai, demônio… — Treze almejava um brado, mas aquilo soa como um pedido servil. Dois ou três por ali, vendo a briga e se aquecendo na fogueira, entendem ser hora de intervir e os separar.
O velho vai até um garrafão de vinho e dá um gole altivo e assoa o sangue do nariz. Parece se divertir.
— Ouve, ô retardado. Vou te capotar se te ouvir pagando de bandido de novo. — mais um gole. — Você não é bandido. Você é covarde.
***
A mãe acompanhava um culto na TV quando Treze entrou na casa, começo de madrugada.
Mãe é mãe, então quando vê o filho com o olho direito fechado de soco ela não deixa de dizer algo como “Misericórdia”, mas há um quê de protocolo no seu espanto. Já se iam vinte e tantos anos daquilo se repetindo três, quatro vezes por mês, e o temor de que Treze se perdesse na vida rebaixou-se a uma resignação entediada. Treze era aquilo ali mesmo, muita pose e um pouquinho de bagunça manejável, e não é agora, caminhando para a meia-idade, que iria mudar. Sem surpresas.
Ele vai para a cozinha fumar um cigarro na porta que dá no quintal. A mãe está atrás:
— Olha isso. — e entrega um celular. – Vou te preparar um gelo pra esse olho.
Um vídeo. Excerto do programa televisivo vespertino de crimes populares. Uma tarja informa em vermelho sobre azul: “À luz do dia: homem mata amante da amante”. Imagens de câmera de segurança captaram a ação de dois homens numa calçada: discussão; um deles tenta sacar uma arma, o outro impede; eles se agarram e giram como dançarinos; o que tentou impedir o saque da arma cai no chão; o outro dá um tiro na barriga dele e sai correndo; volta em poucos segundos como quem tivesse esquecido algo e encosta a arma na cabeça do homem do chão. Antes do tiro, um corte para a imagem bem indignada do apresentador no estúdio do programa.
— É o Du. — diz a mãe enquanto põe cubos de gelo numa sacolinha de mercado. — Matou um rapaz que tava saindo com uma namorada dele. Mas falaram que essa namorada é casada com um traficante que tá preso. O Du… sangue de Jesus, um menino tão certinho…
***
Não é o que Treze lembra, na cama, tentando e não conseguindo dormir.
De todos seus conhecidos que flertavam com o crime no fim da adolescência, Du foi o mais decidido. Antes de entrar no desmanche de carros que mais tarde seria seu introito ao tráfico – o dono do desmanche, policial civil, diversificava investimentos – Du arrancara com o truck do skate a mandíbula de um desafeto e sumira meses pelo mundo. Aquilo sim era clareza vocacional, e não as glórias de Treze – passar uma noite na delegacia, aos 18 anos, por brigar com um desconhecido numa saída de escola, e aquela tatuagem de palhaço imerecida desbotando no braço. Amigos sortidos fizeram um furto aqui, uma clonagem de cartão ali, teve Febem e teve cadeia, mas o Du era outra coisa. E deles, Treze sentia ser o único a nada ser. Covarde.
Quanto tempo até não ter tempo para mais nada? A insônia leva Treze ao banheiro, lugar seguro para fumar uma ponta sem incomodar a mãe. Vê-se no espelho: o olho inchado e arroxeando; as carnes da cara já meio caídas; uma verruga intumescendo dia a dia. Quanto tempo resta para fazer algo bom da vida? Acende, traga, expele. Como sempre, o cheiro, lembrando-lhe casca de fruta passada, aguça seu tirocínio. O deboche do velho e o tédio da mãe mostram-se conectados: expressões gêmeas do seu fracasso. Dói-lhe a exposição ao escárnio como dói-lhe sua incapacidade de dar à mãe uma decepção polpuda como a do vídeo. Mais um trago e a ponta minúscula, babada, se apaga.
De volta à cama, enxergando a existência com uma clareza beatífica, ele decide: “amanhã eu vou preso”.
***
Treze sai de casa às duas da tarde, depois do café da manhã.
Zanza de bicicleta pelo bairro e vai encontrando meio mundo. Ouve um pouco as rodas de homens falarem sobre fogueiras de julho, mecânica de motocicletas e ingratidão das mulheres para então criar silêncios estabanados perguntando:
– Tem um canhão? Sabe quem tem?
Ninguém tem, ninguém sabe, e depois de escorraçá-lo, as rodas discutem se há naquilo alguma novidade ou se era mesmo só o Treze e o seu – presumido por muitos – atraso mental.
Cinco horas, e uma nesga de horizonte escurecendo no fim da rua amplia seu senso de urgência: “de hoje não passa.” Treze pedala a esmo impelido pela palavra “assalto”, a ponta do nariz adormecida de frio, procurando alguém ainda não abordado. Encontra: o velho.
Sua casa tem a largura de pouco mais de uma porta, um fiapo de terreno espremido entre dois sobrados, e diz-se em tom de lenda que o velho a construiu sozinho na noite em que chegou sabe-se lá de onde. Treze o encontra acocorado ali pela frente, e o velho entende que Treze vem em paz pela parcimônia com que desce da bicicleta e apoia a pedivela na guia.
– Fala, louco. Tá bonito esse olho.
Oprimido pelo fim do dia, Treze vai direto ao assunto. O velho ouve, pensa, sorri e o leva para dentro da casa. Encosta Treze numa banqueta bamba, some para os fundos e volta empunhando um revólver.
– Essa é a máquina. Tá raspada. – exibe um arranhado na lateral enferrujada – Fria, meu amigo. Melhor coisa pra quem quer… – uma piscada e um cochicho – …ser preso.
Treze estende a mão.
– Aí não, chapa, calma aí. Tem um preço. Me traz o carro da sua mãe.
Apertado pelas paredes, sem espaço para se virar, Treze sai de costas pela porta. Pedalando para casa, sente que repetir baixinho a combinação de palavras “máquina/fria” o faz adulto como nunca antes.
***
É noite inteira quando Treze vira com as pontas dos dedos a maçaneta da porta de sua casa.
Mãe e culto nos lugares exatos. Ele desliza pelo piso da sala com um sentido de missão nos pés. Dele, ao sentar-se ao seu lado no sofá, a mãe ouve o pedido: o carro.
– Agora?
– Pra fazer um bico.
– A essas horas?
A mãe o pegou. Treze percebe ser incapaz de desatar o nó lógico daquela pergunta tão esperta. Sobra-lhe uma resposta, a única que conhece para essas situações: uma cotovelada que desencaixa o pré-molar superior da mãe.
Em outras circunstâncias, ele iria pedir desculpas, de verdade. “Amor só de mãe”, ele ouvia aqui e ali, e lhe parecia muito apropriado, verdadeiro, sábio. Só não pede porque a mãe o comoveu. Com a cabeça no braço do sofá e uma mão na bochecha, ela não consegue disfarçar: por baixo daquele rosto septuagenário cheio de pavor, Treze enxerga orgulho, orgulho, orgulho.
Finalmente. Finalmente.
Então ele bate de novo, e mais, e mais, e mais.