Um conto de Eduardo Ferreira
Eduardo Ferreira é artivista multimídia e reside em Cuiabá. Atua na literatura, música, audiovisual, teatro, jornalismo e política cultural. Publicou poemas, crônicas, contos e resenhas em jornais, sites, revistas e livros, entre eles a novela “eunóia” (2007, A Fábrika – resenhada aqui na coluna CATAPLAU). Roteirizou e dirigiu diversos curtas e documentários. Foi diretor de TV, editor de jornal, articulador do site Overmundo em Mato Grosso. Criador do bando musical Caximir, que ocupa os palcos até hoje, desde a década de 1980, além de outros projetos musicais. Atualmente é produtor e apresentador artístico da Rádio Assembléia Mato Grosso (89,5 FM), onde mapeia a música produzida no estado, e foi um dos idealizadores do coletivo cultural Cidadão Cultura, onde publica constantemente artigos, resenhas, crônicas, reportagens e entrevistas.
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Tiro no escuro
“Puta que pariu! Daqui a pouco tenho que trabalhar. Essas noitadas são violentas, muito pó, muita bebida e pronto… o dia seguinte é conta para pagar, trabalho, trabalho e meu corpo quebrado, um caco no quebra-cabeça dos dias que se sucedem de forma tediosa e atarefada. Tarefas que não apresentam nada interessante, nada chegando do misterioso imprevisível, e caímos nessa repetição interminável de fatos banais martelando a vida. A ausência de paixão é uma privação provocada pela história humana em seu processo crescente de desenvolvimento civilizatório. Penso que sem êxtases somos seres humanos mortos. Viva a loucura da liberdade de andar pelas vias vazias da cidade madrugada. Viva a felicidade de um instante liberto e bêbado de êxtase.”
Jorge caminha assim, com um turbilhão de palavras encadeando pensamentos. Amontoados de impressões se deslocando em espantosa velocidade de um lado a outro, a partir de um ponto de delírio, entre fatos e imaginações, eventos transversos, versos, fragmentos desconexos. As luzes piscam ao longo da rua vazia. Vez em quando um sobressalto, luzes tomam outras formas entre sombras.
Susto!
A imaginação levando porrada. Sensibilidade exagerada, mente aguçada, um gato que passa, um rato, pronto, é o suficiente para se ver a um passo do hediondo e poderoso inimigo que espreita! O monstro à espera do momento adequado. Ataque mortífero.
A noite silenciosa é quebrada por um estampido forte, seco, inapelável. Jorge sente o mundo girando para além da própria cabeça. Caleidoscópica sensação. Luzes explodem – cores e formas diversas.
Um calor, como nunca tinha experimentado antes.
O mundo girando.
A cabeça de Jorge tombada no asfalto. Olhos esbugalhados mirando o infinito da noite. Um filete de sangue escorre do canto da boca. Morte instantânea. Calibre 38.
*
“Não acontece nada por aqui… Levo uma vida esquisita, sentado a noite inteira vigiando casa dos outros. Um cafezinho para enganar o estômago, vez em quando um pedaço de pão com manteiga. Acho que amanhã de manhã vou pedir um aumentozinho pro patrão, vê se melhora um pouco a vida, pra dar mais ânimo. Ainda bem que o guarda da empreiteira passa por aqui em suas rondas e podemos prosear um pouquinho, é uma merda ficar aqui a noite inteira sem nada pra fazer. Falando nisso, hoje ele está atrasado uns quinze minutos, será que aconteceu alguma coisa? Pensando bem, a gente tá precisando de uma aventurazinha, tá muito parado por aqui, daqui a pouco acabam com nossa profissão. Sem movimento nada justifica a gente ficar aqui. Acho que o patrão pode me dar um aumento, se alguma coisa acontecer.”
Zé Cara de Tatu, assim chamado pelo tamanho do enorme bico que projeta de sua cara, parece um focinho de tatu, às vezes lembra um rato de perfil. É um guarda noturno que chegou há pouco tempo e que gosta de desfilar histórias e mais histórias de soberba valentia. Conta que certa vez chegou a dominar três “e olha que tinha um armado com um trêsoitão, de marca Taurus”, repetia orgulhosamente. Zé é muito falador. Mal pegou o emprego e já quer receber aumento. Mas é assim que funciona. No início o cara acha que o valor a receber pelo serviço é razoável. Estava desempregado, ferrado. Parece confortável. Depois vai vendo que é pouco e por aí vai.
Ele parece nervoso. Se mexe na cadeira. Remexe. O homi tá inquieto. Parece estar maquinando alguma coisa. Levanta, anda dois passos, para lá e para cá. Ajeita o velho chapéu de feltro escuro. Enfia as mãos nos bolsos. A vizinhança costuma cochichar, quem será esse sujeito? De onde veio?
A noite silenciosa é quebrada por um estampido forte, seco, inapelável. Jorge sente o mundo girando para além da própria cabeça. Caleidoscópica sensação. Luzes explodem – cores e formas diversas. Um calor, como nunca tinha experimentado antes. O mundo girando.
A cabeça de Jorge tombada no asfalto. Olhos esbugalhados mirando o infinito da noite. Um filete de sangue escorre do canto da boca.
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“Sabe como é, né, doutor? Tipo estranho esse que passava por aqui. Parecia nervoso, olhando pra todos os lados. Chegou muito perto. Deslizei nas sombras e fiquei observando o bicho passar. Sou bom de mira, doutor! Comigo é tiro e queda, pá e buf. Deixei caminhar mais um pouquinho e apertei. Caiu durinho, nem mexeu. Sabe como é, né, doutor, a gente se engana às vezes, a noite é enganosa… a gente nunca sabe o que vem de lá. Ainda bem que trago comigo o trovão. Já viu, doutor? O calibre é 38.”
WalterMuller
Uaaauu!
Fluxo de pensamento desencadeado num fôlego. ENERGÉTICO!