Um conto de Elizza Barreto
Elizza Barreto tem 24 anos, é baiana, psicóloga, escritora e autora de Cappuccino de Chocolate com Creme. Curadora do projeto Mulheres e Literatura, acredita que os livros são vozes transformadoras. Atualmente vive boas histórias em São Paulo e anota cada detalhe, para contar quando for para casa, no natal.
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NÃO ESQUEÇA A NANQUIM VERMELHA
Giulia não entende nada. Nem mesmo como consegue carregar tanto peso nas costas em todas as suas viagens. Principalmente as inesperadas. Há quatro dias, ela tinha certeza de que passaria o natal em alguma rede de fast food, sozinha, se protegendo do frio nova-iorquino que cortava a sua garganta.
Pedro, sua única família no Brasil havia recebido alta de uma longa internação em um hospital psiquiátrico, em Salvador, sua cidade natal. Era hora de voltar para casa, ainda que por alguns dias.
O som das rodinhas gastas da sua mala a lembrava que não viajava há muito tempo. E ela sempre foi de viajar muito, sem sair do lugar. Hoje, sua vida se resume a escrever matérias, em uma coluna literária de um jornal com baixa repercussão, e receber um salário que permite um bom jantar no fim de semana. Ou passagens aéreas de última hora para o Brasil.
– Um café, por favor! – Ela retira algumas moedas de sua carteira e sorri para um jovem mal-humorado que a atende, às quatro da manhã, no aeroporto.
– Deseja acrescentar chantilly por mais cinquenta centavos? – Ele pergunta, esperando a sua resposta negativa.
– Sim, é claro! – Giulia não entendeu nada. O chantilly não tornaria o café aguado em uma bebida mais agradável.
“Tem gosto de ontem!”, ela pensa, enquanto se arrepende da compra. Senta-se em uma das mesas da cafeteria, retira o seu laptop da mochila e abre uma página em branco no Word.
– Com licença! – Um rapaz do tamanho dela se aproxima, coloca a mão em seu ombro e sorri com timidez. – Sabe como posso chegar ao meu portão? – Seu inglês é péssimo. Disso Giulia entendia, um pouco. Quando chegou aos Estados Unidos, há um ano, não sabia falar quase nada.
– Olá, bom dia! Posso ver o seu cartão de embarque? – Ela tenta ser gentil quase sempre, ainda que isso a custasse o seu próprio tempo. O rapaz não compreende o que ela diz, no entanto, e repete a pergunta.
Ela sorri e tenta ajuda-lo com gestos e mímica.
– Você é brasileira, caraca, meu! – Desta vez, ele a surpreende, apontando para um bottom em sua mochila. Giulia coloca a mão na boca e fica sem reação. Ele fala português! E tem sotaque paulistano.
– Sim, aparentemente somos! – Ela estende a mão e o convida para sentar-se à sua frente, onde há uma cadeira vaga.
– Desculpe, eu não sei falar quase nada em inglês, vim a trabalho e precisei adiantar o voo, acredita que os meus colegas vão preferir passar o natal em uma sala de reuniões? Mano, eu juro que gostaria de saber o que se passa na cabeça desses caras. – Ele revira os olhos, se senta, retira um caderno da mochila e uma caneta nanquim. Sorri o tempo todo. Giulia tem a sensação de que ele também não entende nada.
– Uma pena que não conseguiu ver a neve, estamos todos ansiosos. Gosto de dormir com frio na barriga, na esperança de que ela caia no começo da manhã.
Ele sorri. Sem timidez, mas com admiração. Acorda do transe de alguns segundos e a estende o cartão de embarque.
– Desculpe, eu queria muito saber onde fica o meu portão, acha que consegue me ajudar? – Seu olhar é de esperança. A caneta aguarda ansiosamente pela informação, que ficará registrada no papel em branco.
Portão 122. Giulia olha duas vezes para garantir.
– Fica para o mesmo lado que o meu, Portão 152. O seu voo é às 06:45, o meu às 06:25, podemos ir juntos para a área de embarque, daqui a alguns minutos. O JKF é imenso, você pode se perder com muita facilidade. – Ela olha para a mochila do rapaz e se pergunta se é realmente só isso que trouxe, ou se já despachou a bagagem. Giulia sempre carrega muito peso nos ombros. – Está em Nova York há quanto tempo?
– Dez dias, tempo suficiente para querer voltar para casa.
Ela engole em seco.
– Não gostou do clima?
– Mano, para falar a verdade, sinto que preciso voltar. E preciso tomar umas brejas no bar da esquina do prédio onde moro. Tenho alguém me esperando e essa sensação me deixa enfurecido.
Ele tem um grande amor à sua espera.
– Qual o nome desse alguém? – Giulia beberica seu café ruim e sorri para se enganar.
– Bruno.
Ele tem um grande amor à sua espera, Bruno.
– Para falar a verdade, tenho duas pessoas me esperando.
A vida do rapaz à sua frente parece mais interessante do que qualquer outra que fosse escrever no documento em branco, ainda aberto. Ela abre um sorriso maior.
– O Bruno não é o meu namorado, pelo menos não oficialmente. Temos algo. E uma Maria.
– Relacionamento aberto? – Giulia se interessa.
– Ele é o marido da minha melhor amiga, a Maria. – Ele responde.
O café ruim escorre pela boca de Giulia. Ela tosse, como se precisasse tirar um nó da garganta.
– E ela sabe de tudo. – Ele a observa com atenção, como se buscasse aprovação para o que acabou de dizer. – Temos algo, se é que me entende.
– Interessante.
– A Maria é a minha melhor amiga de infância, e sempre fomos muito próximos. Apaixonados. O casal do colégio. Os que nunca iam às festas da faculdade, mas fugiam juntos para uma praia no litoral. Temos um lugar secreto no Guarujá, que ainda é só nosso.
Giulia prestava atenção em cada vírgula.
– Deve estar se perguntando em qual momento o Bruno entrou na história. Eu me apaixonei por ele primeiro, há dois anos. A Maria não ficou chateada, o conheceu e foi ficando íntima, dormia na casa dele em alguns fins de semana. Há oito meses, fui ao casamento dos dois, que também têm uma filha, a Victória, de um ano.
Uma filha.
– Temos boas histórias juntos, sabe? – Ele olha para seus próprios pés, como se estivesse em transe, voltando no tempo. – Uma vez a Maria bebeu demais, saiu da festa em que estávamos sem nos avisar, foi até a estação de metrô, há uns 750 metros, e mandou uma mensagem no grupo do WhatsApp do trabalho.
– Espera. – Giulia estava concentrada. – Vocês trabalham juntos?
– Ah, sim, nos formamos juntos, em cinema, na Faculdade Belas Artes.
Cinema.
– Está produzindo um filme? Aqui em Nova York? – Ela pergunta animada.
– Ah, não. Infelizmente o cinema ficou para trás. Cursei publicidade também, estou aqui para fechar uma campanha de creme dental.
Giulia engole em seco. Quando algo tão grandioso perdeu o sentido na vida dele?
– E a Maria também desistiu?
– Ela faz alguns bicos como roteirista, mas foi contratada primeiro na empresa em que trabalhamos, me indicou seis meses depois.
– Vocês não desgrudam mesmo, hein? Sabe, eu tive uma história bonita também! – Giulia abre a bolsa e pega um pedaço de chocolate meio amargo, para tirar o gosto ruim do café ruim. Ela esquece que o gosto do chocolate meio amargo pode ser pior que o gosto do café ruim. Ou da história que estava prestes a contar.
Ele sorri timidamente, esperando.
– Eu namorei por alguns anos com um rapaz, bonito e alto, que me abraçava apertado todas as vezes que me via. Acho que foi aí que as coisas começaram a desandar.
Ele enruga a testa.
– Estávamos apertados. Um no outro. – Ela fala enquanto mastiga o chocolate e se recorda do gosto ruim e amargo da sua escolha. – Acho que cuidei tanto dele que esqueci de nós dois. Acho que nós dois esquecemos de nós dois quando decidimos prestar atenção nas coisas ruins que ficavam entre a gente. – Ela faz uma pausa para tomar fôlego. – Só que eu tentei, rezava todos os dias, para no fim do dia, ter coisas boas. E tinham, até. Eu adorava quando a luz do sol entrava pela janela do quarto dele e me lembrava o quanto eu estava em paz, ali.
– Nossa, que intenso.
– Não… não éramos intensos. A gente sempre foi calmaria.
– Vocês fizeram faculdade juntos? – Ele se mostra interessado.
– Eu sou jornalista. Ele, publicitário!
– Entendi agora como essa história veio parar na nossa conversa! – Ele sorri.
– É, isso realmente me fez lembrar dele. – Giulia morde o lábio inferior.
– Enfim… – Ele ri, sem graça. – Eu fui salvar a Maria!
Maria. A história dele. Eu o interrompi. Maldita ansiedade, impulsividade, palavras coçando o meu couro cabeludo! Quando eu parei de ouvir o outro para me ouvir?
– Ah, claro, Maria! Me perdoe, tirei o foco da sua história. Continue! – Ela sorri.
– Pedi para o Bruno subir a rua comigo, para tirarmos a Maria dessa situação. Corremos o máximo que conseguimos, o álcool nos fez rir durante todo o trajeto. A encontramos rindo também, sentada na escadaria da estação, comendo esfihas. A beijamos ao mesmo tempo, e sentimos naquele momento o sentido do que estávamos tentando. Precisávamos continuar tentando.
– E a filha deles?
– Ela veio um pouco depois. Eles viajaram para fora do país, sozinhos. Fiquei dezessete dias imaginando o que poderia sair da boca deles, ao retornarem. Não fui incluso no pacote.
– Você não sofreu com a descoberta dela?
– Eu me apaixonei primeiro. Eles tiveram um filho primeiro. Na vida, tudo tem uma primeira vez.
– Eu nunca conheci um sobrevivente do poliamor. – Giulia ri, aliviada. A história não era nada como ela imaginou.
– Nem eu, tenho tropeçado mais do que me divertido, mas não escolhemos as pessoas pelas quais vamos amar. Simplesmente amamos, não é mesmo?
– Eu acho que já amei alguém. Desse jeito. – Ela diz, com uma expressão séria, repentina.
– O rapaz da história?
A história. Giulia não havia finalizado.
– Sim. Ele. Na verdade, eu tenho certeza. Eu o amei muito.
– Como a gente tem certeza que amou alguém? – Ele olha para longe, como se estivesse se conectando com algo distante.
– O jeito que a gente fica mordido. A sensação de que, não importa o quê, as coisas terminarão bem.
– E terminaram? – Agora ele a observa.
Giulia não responde de imediato. Procura na bolsa algo para colocar na boca. Se ela estiver de barriga cheia, não precisará preencher sua mente com respostas.
– É tudo o que temos, no fim das coisas. – Ela tenta o consolar com um carinho em seu braço. – Lembranças de dias ensolarados, risadas de perder o fôlego, abraços apertados, um picles roubado do sanduíche do outro.
– Você ainda o ama? – Ele pergunta incisivamente.
– Amo. Nova York não foi capaz de remendar o meu coração, mas o congelou, confesso. – O olhar dela é distante.
– Está mesmo muito frio. – Ele ri e aperta os braços contra o corpo, demonstrando incômodo com a temperatura. – Ele mora em Salvador?
A pergunta repentina embrulha o estômago de Giulia.
– Mora. – Ela olha diretamente para o rapaz, agora.
– E as coisas terminaram bem?
– Não. Sigo de coração partido, na esperança de que um alguém qualquer tape todos os buracos do vidro estraçalhado.
– Você foi embora! – Ele começa a entender.
– Fui. Sem olhar para trás. – Uma lágrima escorre do seu rosto.
– E ele não veio?
O silêncio toma conta da pergunta por alguns minutos.
– Nem passou pela sua cabeça, eu acho. – Giulia cochicha, mas ele consegue escutar.
– Ainda mantém contato?
Ela balança a cabeça negativamente.
– Vai surgir alguém, quando você estiver distraída, sem pensar muito.
– Eu preciso me curar primeiro, eu acho.
Pedro sorri. E depois entristece novamente. Pega o celular e digita algo em uma conversa do WhatsApp.
– Eu preciso tomar algumas decisões. – Ele olha para os próprios pés.
– Pede um café. Geralmente eu peço cappuccinos, sempre me ajudam.
– É, pode ser. – Ele dá um meio sorriso.
– Tem alguém te esperando do outro lado? No aeroporto. – Ele pergunta, quando retorna.
– Sim! – Ela diz em um impulso. – Tenho!
Peter sorri admirado, sente o quanto ela está feliz ao se dar conta de várias coisas. Talvez, apenas talvez, Giulia entenda algumas coisas. Ele finalmente abre o seu caderno e começa a rabiscar alguma coisa.
– Não se veem há muito tempo? – Ele a instiga.
– Ah, não tem tanto tempo assim, sabe? Acho que nos perdemos no meio do caminho, depois que mudei.
– Ainda mantém contato? – Ele sente o gosto aguado do café, mas não expressa arrependimento. Peter quer permanecer acordado. Essa história é melhor do que todas que compartilharam nos últimos minutos.
– Sim, todos os dias. Por muitos e muitos anos. – Giulia não mente, nem para Peter, nem para si mesma. É uma grande vitória.
– Amigos de infância?
Ela balança a cabeça negativamente.
– Não… Eu não a conhecia tão bem assim durante a infância. O final da adolescência foi o nosso melhor momento.
– Pode me contar algo sobre ela? Uma característica marcante? – Ele tenta pensar rápido em uma forma de justificar a sua pergunta. – Apenas para eu visualizá-la em minha cabeça. Estou curioso.
– Ruiva. Alta, um metro e sessenta e seis. Gosta de correr. Vive correndo, na verdade. Fugindo. Há um ano, resolveu parar, estava exausta. E então, se mudou para um lugar incrível, porém frio e nada acolhedor.
– Ela é corredora?
– Não, tem problema na coluna e no joelho, não consegue ir muito longe. Ela corre de outras formas. Nos últimos meses, na esteira da academia. – Giulia ri e bebe o último gole do seu café ruim.
– Entendi. – Peter arranca uma folha do seu caderno e quase a entrega. Em um segundo, abre a sua mochila, com pressa e um tom de desespero, retira uma caneta nanquim vermelha de dentro de um estojo abarrotado de outras canetas, de variadas cores. Rabisca algo no papel solto e sorri. – Desculpe, este detalhe era mesmo importante.
Giulia olha a si mesma no papel. Uma mulher, de cabelos vermelhos, correndo e sorrindo.
– Você é muito bom nisso. Um verdadeiro artista, Peter.
Ele sorri, com gratidão.
– Cuida bem dela… – ele faz uma pausa, enquanto procura no copo de papel dela, o seu nome – Giulia! Que nome bonito. Você tem mesmo cara de Giulia.
Os dois olham para o relógio ao mesmo tempo. Peter guarda o seu caderno e as canetas. Giulia salva o documento em branco, desliga o laptop e guarda o seu desenho no bolso da frente de sua mochila pesada, para deixar seus ombros mais tranquilos. É hora de embarcar, e voar.
– Vamos? – Peter pergunta.
Giulia sorri e aponta para frente. É por ali. Não faziam ideia do que os esperava do outro lado, nos aeroportos de suas cidades natal, mas não se importaram. Sentiam algo esquisito no estômago, ao mesmo tempo. Estavam prontos para recomeçar. Em casa.
Até hoje, ninguém sabe se essa conversa foi escrita ou contada.