Um conto de Fabi Marciele
Fabi Marciele é mineira, tem vinte e sete anos e é escritora amadora desde os sete, atualmente escreve para as revistas Subjetiva e Fazia Poesia por meio da plataforma Medium, faz ilustração digital e pinta à óleo. Ela é designer por formação e estudante de letras pela Universidade de São Paulo, é por meio das artes que sabe se expressar. Gosta de ver com outros olhos, como diria sua mãe, e mostrar que há beleza em qualquer lugar, basta “firmar” um pouco mais a vista.
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A Divina Tragédia
Um conto nascido em São Paulo
O barulho de trem na República treme a lanchonete, mas ninguém assusta. É progressão aritmética em que, de cinco em cinco minutos, derruba um sachê, balança um banco de ferro, atrapalha uma conversa sigilosa entre duas adolescentes falando baixo no canto esquerdo do salão, mas ninguém assusta.
No lado de fora, é preciso se esforçar para ouvir. O caos dos ambulantes, dos motoristas e dos perdidos abafam um som. Vum, vum, um, m, mais uma vez a repetição. Altos e agudos, as pessoas se misturam, fazem o seu eco ser maior do que o que está no chão.
Do lado de fora não há chão. As cobertas de pano, o lixo de fast food e os panfletos de “compra-se ouro” atrapalham a visão, mas não a audição.
O barulho que era embaixo do pé agora está no pé do ouvido. As adolescentes saem da lanchonete, os ambulantes, os motoristas e os perdidos. Todos correm. O eco nunca foi trem, era manifestação.
Lá do fundo do Ipiranga, gritando sua independência, o povo vem e do outro lado, a cavalaria sai da Consolação. O meio é a colisão.
Ambos atrapalham o cenário rotineiro dos trabalhadores e do sol, mas é a cavalaria de uniforme e munição que ataca. Eles querem abafar, calar, matar…a população sem arma na mão.
O encontro é próximo, e a bomba é jogada. Uma fumaça, pedem socorro, outra fumaça. A praça é da república, mas a lei é monárquica. Os cavalos sem crina derrubam a população sem perguntar. Não há questionamento, não há apoio, é trabalho a ser feito. Silenciar.
Com a colisão o barulho é mais alto. Os poucos que restaram no meio da linha, no pé do metrô, tentam fugir, mas também são apanhados pelas balas de borracha, que marcam ao invés de apagar.
Há uma criança chorando no meio do vão, as polícias desviam, o povo faz proteção. Chora mãe, choram todos, mas ninguém ouve. O povo perde força, perde gente, perde sangue, mas não para. É preciso sobreviver antes de começarem a salvação.
O tempo passa, o sangue espalha, a batalha é um campo de concentração. Visto de longe era barulho de trem. Vum, vum, um, m confundível para todos que não estão prestando atenção. Mais tiro pro alto, borracha estoura no chão.
Meu olho cegou, choro sangue.
O cenário some, porque perco a visão.
Sem narrador não há história.
Deixo que o roteiro se transforme numa tragédia autodidata sem conclusão.