Um conto de Fábio Mariano
Fábio Mariano nasceu em São Paulo, capital, mas foi criado em Campinas, SP. Tem mestrado em Teoria e História Literária pela UNICAMP. É autor de O Gelo dos Destróieres (Contos – 2018) e Habsburgo (Novela – 2019), ambos pela Patuá. e publicará em 2020 Ruído Branco, coedição entre Patuá e Ofícios Terrestres, com apoio do ProAC 2019.
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Quando os números voltam a subir.
Eu subia as escadas aproveitando, saboreando cada passo.
No caminho para o apartamento, não me importava muito. Primeiro eu ia a pé; depois, com a mudança, passei a descer do ônibus e andar só uns cinco minutos, de modo que chegava muito mais suado, mas sentindo muito menos as pernas. Subir as escadas, então, era uma alegria. Quando entrasse, meu tio me convidaria para tomar chá, me ofereceria a caneca com a matrioshka dourada, me pediria para escolher um vinil. Eu pegaria o disco da segunda prateleira, sentiria o cheiro, e agradeceria aos céus por não existir uma única televisão naquela casa; pela paz do silêncio que era recheada apenas de gritos de crianças distantes, sons do tráfego, palavras e música. Eu tocava com vagar cada coisa – a caneca, o disco, o sofá, com o meu corpo, não porque precisasse ter cuidado, mas porque queria cuidar.
Mas era uma terça-feira. “Márcio”, contorcendo a cara, “Você não deveria estar no trabalho?”
“Não, tio, eu agora posso fazer home office nesse dia – em três dias da semana – e também não estava me sentindo muito bem. Posso entrar?”
“Mas, claro, me desculpa, é só que… eu estou sem aquele seu chá, mas eu tenho outro aqui… acho que você vai gostar. Senta.” E agachado, falando primeiro para dentro, entre os murmúrios que emitimos para nossos objetos domésticos que se escondem, e depois em tom audível, “Ah, pega um disco.”
E eu não sabia como começar.
Nove anos antes, eu havia chegado em casa e, ato contínuo, saído dizendo para minha mãe que já voltava. Tentava correr as sete quadras que me separavam daquele com quem eu sabia que precisava falar. No meio do caminho, meu celular tocava. O tempo inteiro. As mensagens diziam “por favor, não faz isso”, “estou desesperado”, “você tem que pensar em mim também”. Eu olhava o celular e o guardava de novo – tive que me desviar de uma senhora e de seu cachorro e de um poste. Às mensagens, se alternavam ligações, e as quadras eram longas por conta dos semáforos a cada esquina. Quando finalmente cheguei, numa quinta-feira, subi as escadas cansado. Naquele tempo, era fácil passar pela faculdade de cinema e olhar os horários de graduação e pós – e então chutar os horários em que ele estaria lá. Quando entrei, o chá, o disco, pareceu tão natural contar que, finalmente, eu tinha um namorado. “E é ele quem não para de te ligar, Márcio?”, e, vendo meu aceno rápido e o movimento lateral igualmente rápido de minha mão, recomendou-me que atendesse. “Você não quer começar o namoro ignorando as ligações, não é?” “Mas ele só está desesperado porque diz que não devemos contar para ninguém, tio.” Contei-lhe então o tudo o que Daniel me dissera: que isso poderia prejudicar nossa carreira na engenharia, que alguém poderia ficar sabendo, ainda que por engano, que as pessoas não eram de confiança, que a família dele, se soubesse… E então meu tio me interrompeu, dizendo que, em primeiro lugar, era natural que ele tivesse medo. Nem todos têm, na família, um tio que tenha passado por toda a rotina da expulsão de casa, da surra do pai, da execração pública, e que ainda tenha se tornado professor universitário e tido o prazer de ver o pai morrer engasgado no próprio sangue. Corou um pouco ao dizer a última coisa, olhando para mim e levantando a mão, como que pedindo desculpas; mas depois continuou dizendo que, enfim, essa rotina pavorosa não era compartilhada por muita gente, de modo que era natural que Daniel tivesse muito, muito medo, do que todos poderiam pensar. “Mas antes de mais nada, atenda-o, e diga-o que, se quiser, pode vir até minha casa, ou ir até minha sala no Instituto de Cinema e Fotografia. Aliás, você está aqui me contando, mas contou para sua mãe?”. Foi ali que empalideci. “Vê? É isso o que ele sente agora, multiplicado mil vezes pelo fato de que ele não tem alguém que vá ficar feliz por ele de imediato – não sem, primeiro, ficar puto, preocupado ou simplesmente decidir que vai jogá-lo para fora de casa. Todos esses cenários são, na cabeça dele, possíveis, mas os piores são, com certeza, mais possíveis.” Então meu telefone tocou. “Atenda – eu ainda tenho algumas coisinhas para dizer, mas atenda.”
Fui até o quarto de hóspedes do apartamento para conversar com Daniel. Nosso namoro duraria apenas três meses, pela falta de coragem dele, principalmente – mas o que está feito, está feito. Ou estava. De modo que, a partir dali, meu tio se tornou alguém com quem eu gostava de conversar sobre qualquer coisa. Na faculdade, eu não fazia muita distinção entre os sons da sala, e não me relacionava muito com as pessoas. Executava os trabalhos em grupo com primazia, mas me abstinha das festas. Com o tempo, passei a frequentar um ou outro lugar no bairro universitário, mas nunca era assíduo, e como talvez não tivesse um rosto muito marcante, meus interlocutores raramente me olhavam como se já me conhecessem. Foi num desses lugares que o conheci, mas não me lembro se foi no Caim ou no Este lado. Daniel foi muito importante pelo que foi, e não por quem foi. Quando voltei do quarto, meu tio recolhera o chá. Disse-me que eu gostaria muito que eu fosse feliz, mas que eu deveria sempre ter em mente que se deve ser responsável – consigo e com os outros, um conselho que viria a repetir algumas vezes.
O que veio depois da faculdade, na minha vida, foi uma tentativa de me organizar. Meus pais não tiveram problemas com os dois namorados que de fato levei para casa, mas eu sentia que havia um incômodo – talvez as memórias de minha mãe dos surtos de meu avô. Quando os meninos estavam lá, ela esfregava mais freneticamente as coisas que esfregava – o prato lavado, o retrato que mostrava – e também segurava as coisas com mais força. Os meus boletins, que ela sempre mostrava com um sorriso descarado no rosto, pareciam que iam quebrar, não rasgar, a qualquer momento. Meu pai não fumava enquanto eles estavam lá, embora saísse para a sacada em alguns momentos e passasse as mãos com vagar pela barba bem feita. Pablo e Lucas eram os nomes dos dois, e embora tenham durado o suficiente para fazer algumas visitas à casa de meus pais, nenhum dos dois me fez sentir como se fosse a coisa certa a se fazer, estar com eles o tempo inteiro. O trabalho, em compensação, era fantástico – do curso de engenharia de materiais, eu conseguira um estágio, e depois uma efetivação, num departamento de P&D. Foi então que passei a alugar um apartamento. Eu fazia todos os treinamentos de gestão, consegui entrar num programa de trainee, e as coisas só foram acontecendo. Consegui comprar uma unidade dois andares abaixo, e o financiamento podia ser pago bem rapidinho. Até o momento em que, primeiro, as coisas na empresa começaram a piorar. Depois, tivemos que mandar uma boa parte dos nossos empregados (eu tenho asco à palavra colaboradores) embora – e fui em quem tive que fazer isso.
Eu acordava suado, dizendo que não, que podia fazer mais pela empresa. Digitava relatórios e e-mails batendo com força nas teclas – não só com velocidade, mas com força. Meus bolsos passaram a ser habitados por cartelas já usadas de Neosaldina, que cada vez eram menos efetivas. As horas em que eu ficava sentado diante do meu computador no escritório do apartamento que agora era meu foram aumentando, enquanto eu pensava que, a depender daquele e-mail ou daquela decisão, aquele apartamento corria o risco de rapidamente, deixar de ser meu. Eu soube por telefone sobre a separação de meus pais. Não conheci o primeiro namorado de minha mãe – o que achei que era justo, considerando como as coisas eram comigo, mesmo depois de saber que ele era namorado de minha mãe de antes da separação. Mas regularmente, pelo menos uma vez a cada quinze dias, eu ia até o apartamento de meu tio, sempre de ônibus – porque era muito perto e rápido; porque era um inferno conseguir uma vaga para parar naquelas ruas; e porque, enfim, eu me sentia, paradoxalmente, mais seguro do que pegando um táxi ou um uber.
Mas a insegurança passou a habitar também os ônibus. Eu evitava ler as notícias no início, mas num certo momento já não era mais possível. As pessoas, no trabalho, faziam comentários maldosos, misturados com sua alegria falsa pelo fato de que os números – da empresa, do país – voltavam a subir. Nos cafés e nos restaurantes os olhares pareciam vasculhar. Eu me coçava e olhava para os lados devido à maneira dos garçons de perguntar se preferia que passassem a conta no crédito ou no débito. No trânsito, me tornei menos combativo, evitando me colocar em situações nas quais eu fosse fechado ou ultrapassado com raiva – e ainda assim, essas situações ocorriam com mais e mais frequência. Conhecia cada vez mais os azulejos da reforma que fiz em meu apartamento. A ponto de ligar para a arquiteta e pedir a referência do material, convidá-la para um chá na casa. Ela, ríspida, me perguntou o que eu queria reformar, e disse que aquele azulejo não serviria para qualquer outro cômodo que não fosse um dos dois banheiros. Desliguei.
Era só no apartamento de meu tio que eu me sentia confortável.
E por isso era tão difícil falar, naquele momento, que minha cidadania italiana saíra. E que, portanto, eu poderia aguardar, a qualquer momento, o convite de transferência para a Itália. Ele, talvez, riria, dizendo que não era muito melhor do que aqui. Mas qualquer lugar era melhor do que aqui.
Quando ele me trouxe a xícara, agradeci. Tomei-a nas mãos e observei-a: vermelha, com um gato preto desenhado, e Medellín grafado em letras negras. Olhei-o, buscando a compreensão de um riso, que não encontrei. Seus lábios pareciam querer se coçar, e suas mãos não tinham repouso. Perguntei-lhe o que estava acontecendo.
E então ele me perguntou se eu me lembrava de Elton, seu namorado de muito tempo. Era claro que eu lembrava. Foi um pouco depois… Sim, ele confirmou, um pouco depois de você se assumir que eu o apresentei para você. Mas já namorávamos havia algum tempo. “O filho dele vem hoje aqui em casa.”
Engasguei com meu chá.
“O filho dele vem hoje, e eu não sei o que ele quer. Mas preciso te contar. E depois que eu te contar, Márcio, por favor, peço que saia do meu apartamento, porque eu vou precisar ficar sozinho. Eu sei que você deve ter vindo aqui, num dia diferente, falar algo muito importante, porque você é uma pessoa de hábitos, mas hoje não é o melhor dia. Não quero ser mal educado, e você sabe que nunca lhe pedi que fosse embora; mas hoje, preciso ficar sozinho, e preciso antes de ver esse menino.”
Eu já engolia o meu chá, mas sua mão se pousou sobre a minha, e seus olhos se fixaram na caneca que ele tinha na mão esquerda.
“Ele se separou da esposa quando o filho tinha quatro anos. Dois anos depois, começamos a namorar. Você deve se lembrar dele, alto, com aquela cara… quer dizer, você lembra. Quando você o conheceu, estávamos juntos… acho que havia quatro anos. Isso. Nós namoramos um bom tempo, e depois eu terminei com ele. O filho ele via todo santo fim de semana, mas eu nunca via. Não sei se ele mantinha contato com a esposa, e para falar a verdade, eu não ligava muito para isso, não queria saber. O que eu queria era um pouco de paz e, depois de um bom tempo, eu já não tinha mais isso com ele, então eu disse que não queria mais. Ele aceitou numa boa no começo, mas depois me ligou algumas vezes. Eu disse que não queria nada, acho que, na época, eu queria mesmo era ficar sozinho.
“Bom, um mês atrás, o filho me liga. Tinha achado alguns livros meus na casa dele, com umas dedicatórias que achou estranhas. Perguntou à mãe – que sempre soube da minha existência, aparentemente – e me localizou. Ligou para o Instituto com alguma desculpa esfarrapada, fingindo ser aluno, e descobriu o horário em que eu estaria na minha sala de trabalho. Pediu para alguém que passava por ali me deixar uma carta, na qual me contava que o Elton tinha morrido. Eu chorei pouco, mas fiquei mais catatônico, sabe? Não parecia muito possível. Então fui atrás de uns amigos e amigas em comum, com quem eu tinha cortado um pouco a relação. Todos me receberam tão frios… Não sei. Eu não achava que fosse possível, não agora, sabe, morrer assim? Mas ao mesmo tempo, eu leio as notícias, eu sei que os números voltaram a subir… Eu só pensava que eu nunca ia ter que falar sobre isso com você. Não sobre isso – pelo menos não diretamente. E o que me assombra é ele ter me dito que depois de mim era rasga-coração, na última daquelas ligações, sabe. Que não tinha mais como. E agora o filho dele vem para cá. E eu preciso ficar sozinho, Márcio. Obrigado.”
Eu quis abraçá-lo, mas meu tio não era de abraços.