Um conto de Felipe Holloway
Felipe Holloway nasceu em 1989 na cidade de Canindé, no Ceará, mas é radicado em Cuiabá, Mato Grosso, onde formou-se em Letras pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e atualmente faz mestrado em Estudos de Linguagem pela mesma instituição. Atua como professor de Língua Portuguesa da rede pública de ensino desde 2018. Foi vencedor do Prêmio Sesc de Literatura na categoria romance, em 2019, com seu primeiro livro, O legado de nossa miséria, a ser lançado em breve pela editora Record.
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Arquipélago
“Pai nunca leu Joyce
nem Flannery O’Connor,
pai nunca leu Carver.
Pai trabalhava de sol a sol
como uma besta de carga.”
– Jorge Espina
O carro morre logo que o sinal abre. Em um segundo, ela gira a chave, dá a partida, deixa para trás as pessoas paradas no ponto de ônibus ao lado do semáforo. Dois meses antes, a situação a teria aterrorizado: a solidão ao volante, o mar de carros formado atrás de si, a chegada de todo mundo a seu destino dependendo de ela conseguir coordenar as ações que moveriam aquela carcaça de metal em linha reta. É injusto que o instrutor da autoescola nunca vá testemunhar sua evolução, sua independência, depois de vinte e duas aulas de uma coisa que ela ainda não entende por que não denunciou como assédio moral. Ou talvez entenda, e apenas se recuse a relembrar como foi condescendente com o discurso da mãe, das amigas, do namorado, todo mundo passa por isso, não adianta reclamar que eles falam ao telefone durante as aulas, que perdem a paciência com facilidade, precisamos passar por eles para conseguir a carteira. E a isso não adiantava se contrapor, dizer que com ela seria diferente, que ninguém é obrigado a ser maltratado, ainda mais por alguém por cujos serviços se está pagando, embora no dia seguinte fosse dominada pelo nervosismo do trânsito, intimidada pelo tom de voz impositivo daquele desgraçado, e no fim dos cinquenta minutos estivesse menos feliz por suas pequenas evoluções do que atormentada pela memória recorrente de sua covardia.
A sequência de viadutos produz oásis momentâneos de frescor no interior do automóvel, cujo ar-condicionado ela só pretende ligar quando estiver a uns cem metros de casa, de modo a sugerir que os alardeados aumentos no preço da gasolina não a afetaram a ponto de se privar daquilo que, em sua cidade, nem deveria ser visto como luxo.
Como deve ser para Deus ter de lidar com o sucesso profissional de alguém que nunca acreditou nele?
Passa em frente ao galpão abandonado de um supermercado que havia falido seis anos antes, quando ela ainda iniciava a faculdade. Lembra-se do que tinha dito uma amiga recém-feita entre os colegas do curso naquela época, algo sobre ser possível antecipar a quebra de um estabelecimento como aquele só pelas marcas que se ausentam primeiro das prateleiras. Por um tempo, continuariam descendo a avenida principal para comprar itens que eram mais baratos no supermercado do que na cantina da faculdade. Como a amiga havia desistido das aulas algumas semanas depois, e nunca mais dado notícias, a visão do prédio descascado, cuja fachada ainda guarda resquícios da antiga logomarca, faz supor que o único motivo de ele ainda não ter sido incorporado ao conjunto de lojas de outra rede de supermercados é que precisa estar ali para comprovar a tese das marcas, quando a amiga voltar do exílio.
Não, eu prefiro não me misturar. A verdade é que nunca me senti bem em igrejas. Sabe, a gente vê direto na TV as coisas que esses caras fazem. Se aproveitando da falta de escolaridade, da ignorância das pessoas. Prometendo prosperidade quando é evidente que eles estão se referindo a si mesmos. Sem falar que sou totalmente contra a isenção de impostos de que as igrejas desfrutam, no Brasil. Estaria sendo conivente com um crime, se voltasse a entrar em uma.
Há um desvio por uma rua de chão devido a uma obra que ela não consegue ver em meio à poeira. Já contou duas novas agências do Banco do Brasil no caminho até ali, e pelo menos três Subways. Quando o trecho não pavimentado termina, as pedras que se alojaram nas ranhuras dos pneus produzem um plic-plic contínuo, hipnótico, no asfalto que aos poucos se esvai em ondas como lava seca.
Ah, eu não posso generalizar? Acho que posso, sim. Acho que tenho um pouco de direito de dizer que todas as igrejas, que todos os líderes religiosos são iguais. Da mesma forma que o senhor sempre agia como se todo mundo que usasse tatuagem tivesse uma tendência natural à“bandidagem”. Que um homem ser veado ou ter cabelos longos era falta de caráter. Que o senhor disse que arrancaria a orelha de qualquer um dos meus irmãos no facão, caso eles aparecessem aqui com um furo no lóbulo. Não era assim? Então. Ser religioso ou ouvir um religioso, pra mim, é tendência à bandidagem. Não quero me misturar.
Parte das ruas do bairro ainda se esconde sob o mar de santinhos da eleição realizada dois dias atrás. O muro em frente à escola na qual estudou até o penúltimo ano do ensino médio jaz recoberto pelos nomes de dois candidatos a vereador e seus slogans, um dos quais com um tosco erro de concordância. O quarteirão ocupado pelo colégio parece menor, assim como o campo de futebol de areia cinquenta metros à frente, que nem areia tem mais. O salão em que a mãe costumava levá-la ainda existe, com uma modelo diferente no anúncio de entrada e o valor do corte quase triplicado.
A mãe a recebe no quintal fazendo gestos para que ela tome cuidado com Thor, que está deitado sob o pé de ipê, no local onde ela costuma estacionar. A preocupação é vagamente justificada: o pelo rajado do cachorro o camufla em meio ao lodo formado no cimento por causa das chuvas recentes. Desliga o carro, calça as sandálias, abre a porta.
O que foi com ele?
Não sei. Tá sem se levantar desde ontem. Teu pai acha que é verme.
Sabe o nome do Thor? Que eu falei pro senhor que significava “valente” em latim? Pois é, na verdade é o nome de um deus pagão. O sujeito que os nórdicos acreditavam que era o responsável pelos trovões. O senhor vem idolatrando uma divindade anticristã dentro de casa há anos e nem se deu conta.
Já tomou café?
Não, mas ainda nem tô com fome.
Tem bolacha dentro daquele pote. Eu só ainda não fiz café.
Não faz mal, eu tô tentando parar…
Com o café?
Sim. E com a carne vermelha, também. Andei vendo uns documentários que deus me livre…
É aquele do abatedouro em Natal?
Esse é um. A senhora viu?
Não, mas a Marília tava me contando. Disse que eles aproveitam tudo do boi, né? Que os bichinhos até fazem cocô quando metem aquela pistola na testa deles.
Marília. A vizinha que achava normal apanhar do marido, e incompreensível que ela, com quase 30, ainda não tivesse casado.
A casa recende a massa corrida. A temporada de mosquitos coincidiu com as férias do pai, que se inquieta com a tranquilidade, acostumado que está a associá-la ao desvirtuamento da moral, e se põe a fazer alguma coisa, rebocar parte do muro, trocar duas telhas, eliminar as marcas de sangue das paredes internas com outra demão daquela coisa branca cujos cheiro e textura a agradavam desde pequena.
Eu podia vir aqui e ficar horas falando pro senhor sobre coisas que não te interessam. Podia dizer o que realmente acho desses trechos da bíblia que o senhor insiste em ler pra mim toda vez que venho, ou desses testemunhos que tanto emocionam o pessoal da igreja de vocês. Podia contar que as mesmíssimas histórias são repetidas em cada uma das outras igrejas, só alterando os papéis de quem é a igreja do bem e quem é a do mal. Podia citar trechos dos autores que li, falar sobre o modo como nasceram expressões e anedotas religiosas que o senhor adora usar para justificar sua superioridade como cristão.Mas eu nunca faço isso, e não faço justamente por achar que não devo impor minha visão, a visão da minha área, a ninguém, e muito menos ao senhor e à mãe.
O Miguel tem aparecido?
Nada. Seu irmão anda tão enrolado com aqueles cartões que mal tem dinheiro pra gasolina.
Leva dois segundos para entender a referência. Miguel. Os cartões. Dívidas. O único dos filhos que tinha se batizado na nova igreja sendo o que mais sofria com problemas financeiros. À espreita de quem apontasse a ironia, o paralelo com Jó. Sempre tinha um paralelo.
Não pergunta pelo pai. Sabe que ele dorme, pela moto a um canto do quintal e por causa das férias. A única concessão a uma vida de encostado, ficar na cama até as nove em dezembro.
O lodo também aumentou nas extremidades do muro que limita o quintal pelos fundos, em parte rebaixado devido à erosão promovida pelas águas do córrego atrás de casa, quando chove. Pensa que, em quatro ou cinco anos, só metade do chão ainda estará ali. Se oferece para apanhar as fezes das duas cadelas no terreno inclinado. Princesa faz um esforço para cheirar-lhe a mão, mas Cacau se limita a balançar o rabo algumas vezes. Estão mais velhas, mais gordas e lentas. As folhas dos pés de mamona se projetam sobre o muro,lançam densas sombras em forma de pentagrama no chão de cimento, polvilhado aqui e ali com marcas de patas da geração anterior de cachorros. Quando era pequena, costumava temer o momento em que as fezes atiradas por cima da parede todos os dias pela mãe transbordariam, caindo de volta no quintal. Os pés de mamona crescidos do adubo não deixam de ser a concretização desse cenário.
E como tão as coisas? – a mãe pergunta.
Bem, bem. O Rafael passou no concurso do Estado.
Passou?! Que maravilha! Eu sabia que ele ia conseguir. Tava todo mundo lá da igreja orando por ele.
Sim. Da próxima vez vocês avisem, que já digo pra ele nem estudar.
A senhora vai precisar de ajuda com o almoço?
Não, não. Tem só que comprar o alho, mas depois eu peço pro teu pai ir lá.
Não quer ir agora?
Só se for a pé.
Pode ser.
Espera que eu vou me trocar.
A mãe usa um vestido florido até o meio da canela, exagerado para uma ida a um mercado tão próximo. Também troca as sandálias, passa um perfume enjoativo e, nos braços, uma camada generosa de filtro solar, que oferece à filha. Saem de casa sob a redundância do guarda-chuva, o sol a pino.
No mercado, a mãe encontra duas colegas da igreja. Simula uma ligação de Rafael e caminha depressa à cata dos temperos. Antes que seja vista, apresentada, convidada – antes que tenha de ser rude, que vire “a filha antipática da irmã fulana”, se é que já não é. Por uma fresta entre as prateleiras de utensílios domésticos, observa o sorriso da mãe, o entusiasmo com que fala de compromissos e horários e eventos. A mãe arrumada para sair.A mãe encontrando amigas num mercado cheirando a carne crua e a leite de rosas.
A Mariana falou contigo esses dias?
Não. Por quê?
Ela disse que queria falar com você.
Ah, é? Sobre o quê?
Isso ela não falou.
Mãe…
É verdade. Ela só disse que queria falar contigo.
E a senhora nem imagina sobre o que seja?
Bom, o Miguel disse que ela convidou ele pra ir no retiro da igreja dela, esses dias…
A visão chega em flashes. Mariana chamando os primos para a casa dela quando os pais viajavam. Algumas amigas. A música alta. O comentário de um dos garotos com Miguel, dias depois. Orgia com os primos. Festinhas para as quais nunca tinha sido convidada – nem ela nem os irmãos. Claro, uma nerd espinhenta, e ainda por cima virgem. Oito anos e quatro filhos mais tarde, a possibilidade de um convite para a igreja. Com uma sugestão de reprimenda moral, em caso de recusa.
E o Miguel aceitou?
Claro que não. Ele tá firme na nossa.
E eu. A senhora acha que devo aceitar?
Bom, como você não está indo em nenhuma, talvez fosse bom.
Demora um pouco para responder. Respira alto.
O problema é que eu não acho que eu devo ir a alguma.
A Sofia disse que tem uma biblioteca lá na casa do retiro.
Sim, porque é a isso que se resumem os meus interesses, para vocês. Um amontoado aleatório de livros. Qualquer coisa encadernada serve, até a bíblia.
Eu acho engraçado uma coisa. Antes de ir pra essa igreja, a família inteira falava da Mariana. Das mil coisas que ela aprontava. Até dar sonífero pro pai dela — pro irmão da senhora! —, pra ir em festa escondida ela já deu. E enquanto isso eu tava lá, estudando, lendo meus livros, não incomodando ninguém – não dando sonífero nem pra senhora nem pro pai. Sendo a melhor aluna da sala. E agora ela tá lá, enfurnada na casa dos pais com quatro filhos, mesmo sem ter condição de criar decentemente nem um, e porque entrou pra igreja, de repente a errada sou eu. Por ter dado continuidade aos meus estudos. Por ter saído de casa pra cuidar da minha vida. Por não querer filhos. Por ter cometido a atrocidade de morar com alguém sem estar casada na igreja, mesmo que nenhum de nós seja religioso, e que a gente não dependa de ninguém pra nada. Não, mãe, eu não vou aceitar o convite da Mariana. Sabe por quê? Porque a Mariana, pra mim, é uma vagabunda, nunca deixou de ser uma vagabunda. E eu não devo nada pra ela e praquele imbecil do marido dela.
Não há resposta. A mãe balança a cabeça numa ratificação tímida. Temendo ao mesmo tempo ser a favor demais e contra demais. Entre a cruz e a espada, como se dizia na Idade Média.
Há uma leveza em seus ombros quando chegam em casa. Não houve a gagueira de costume, a voz tremida de costume. Talvez esteja preparada, afinal. Quase duas décadas de respostas sufocadas pelo temor, pelo senso de obediência, é ele quem põe a comida na mesa, um teto sobre as nossas cabeças – quase duas décadas a espreitam por cima do ombro, incrédulas, ansiosas. A explosão com a mãe como um treino. Mas a moto não está mais ali, e a coragem arrefece. A mãe lembra, depois de também estranhar a ausência, que ele tinha ficado de ajudar um irmão da igreja a trocar o madeiramento do telhado de uma casa num bairro distante. Há uma pausa hesitante antes de ela pronunciar a palavra “igreja”.
Almoçam sozinhas, os gatos em expectativa ao redor da mesa. A mãe explica a magreza e a dificuldade de respiração do Alface com uma possível bola de pelos que ele não consegue digerir. Toma só meio copo do refrigerante agridoce que não distribuem mais no bairro onde mora. Quase 13:30h. As sombras das mamonas desaparecem dos fundos. Nada do pai. Terminada a refeição, se oferece para levar os restos para Thor, ainda deitado em frente de casa. Diz à mãe que vai dormir. Do quarto, a escuta censurando a naturalidade com que o apresentador do programa policial justifica o linchamento de algum ladrão de mercado.
O quarto está mais arrumado do que ela se lembra de ter visto nos 21 anos em que viveu ali. As paredes pintadas de azul ocultam as marcas de fita com que pregava pôsteres de bandas que hoje a envergonham. A estante outrora usada para guardar os poucos livros que tinha conseguido, entre comprados e não devolvidos, é uma mistura de caixas de remédio, artigos decorativos e lições da igreja empilhadas. Só a porta não mudou de todo, a maçaneta em L contrapondo-se à madeira na qual ainda há o seu nome, escrito a lápis e seguido de um autoelogio infantil.
O quarto arrumado. Imagina a mãe recebendo o aviso da vinda no dia anterior. Levantando à noite, espanando a poeira de tudo, matando baratas, trocando roupas de cama. Tudo para ela, a filha do meio, a primeira a sair de casa. Senta-se na beira do colchão, que também é novo. O lençol sem vincos. Ali, rodeada pela organização falsamente acolhedora do cômodo. Sente vontade de chorar.
Uma rua de chão a perder de vista. Dos dois lados, um tipo de mata fechada. Árvores baixas, de galhos retorcidos, similares às que costumava ver nas partes dos livros de geografia que tratavam do cerrado, ou num documentário recente do Eduardo Coutinho. Está trancada no próprio carro, estacionado ao lado de um afluente da estrada principal que se perde mata adentro. O ar-condicionado ligado, nenhuma chave na ignição. O carro destoa de tudo, uma obturação prateada em meio à amplidão verde. Na entrada da vereda, presa pelo centro a uma estaca semi-carbonizada, uma tabuleta em cuja superfície não se lê palavra alguma. Ela parada, como perdida. Nenhuma nuvem.
Um homem vem vindo na distância, a cavalo. Um cachorro o segue. Ela reconhece Bobby, envenenado com bola há dez anos, muito antes de reconhecer o pai. Não entende. O pai nunca teve cavalo. Quando chega mais perto, bate no vidro, pede-lhe a benção. Ele não escuta. Faz contas, cabeça longe. Tenta chamar sua atenção,saber o que acontece, embora não lhe ocorra buzinar. Ele longe. Põe-se a chamar Bobby, que também não a olha. O trote calmo. Ela vê o pai sumir. Atrás do carro, a estaca carbonizada, a tabuleta que nada informa. Uma cruz.
O pai longe.
Acorda com o barulho de vozes. Um hino entoado a poucos metros do quarto. É sábado, na concepção da igreja dos pais. O pôr-do-sol põe fim também à sexta. Levanta, desfaz os vincos do sono. A voz grossa e desafinada do pai se destaca – a surdez pelas pancadas do martelo a espreitá-lo. Ao rearrumar a cama com pressa, como se por pouco não tivesse sido pega traindo alguém, ela vê um papel caído do bolso. Um dos modelos de convite que tinha buscado na gráfica, a caminho dali. “O Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Mato Grosso tem a honra de convidá-lo para a defesa pública da dissertação de mestrado ‘Sincretismo e sociedade: impactos históricos da adaptação do arquétipo do messias nos evangelhos canônicos’…”
Tira o segundo convite da calça. 27 quilômetros sem ar-condicionado até ali. Os pais na sala de conferências do Instituto. O orgulho virando confusão. Tudo o que mais prezavam. Ela com oito anos sob a imensa figura do Cristo agonizante. Ela confusa. Tentando entender, não entendendo. Ela fingindo. 21 anos.
Abre a porta do quarto com cuidado, os convites nas mãos. As vozes sobem de tom. No corredor até a sala, a porta semiaberta do banheiro, onde há um cesto de lixo.
Ela deixa o quarto e avança pelo corredor.