Um conto de Felipe Holloway
Felipe Holloway tem 28 anos, é formado em Letras – Literatura pela Universidade Federal de Mato Grosso e faz mestrado em Estudos Literários na mesma instituição. Ficou em segundo lugar na edição de 2010 do Prêmio Literário Sérgio Farina, na categoria “crônica”, e entre os dez primeiros, na categoria “conto”. Seu romance “Spoiler” esteve entre os pré-selecionados do Prêmio Sesc de Literatura, na edição de 2015.
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A queda
Ela escuta o baque do quarto, está lendo, ainda há pouco ele abriu a porta e a observou, não precisou tirar os olhos do livro − a trama se aproximava de um ápice que ela imaginava ter adivinhado lá pela página 200 – para saber que era ele, só estavam os dois no apartamento, só havia os dois no apartamento nos últimos oito meses, mas o baque foi impossível de ignorar, um som abafado, meio úmido, como se um saco de cimento tivesse sido atirado do quinto andar em cima de uma poça, ela deixa o livro de lado sem marcar a página, sai do quarto e diz o nome dele com a última sílaba em tom ascendente, a mãe que se certifica de que o grito vindo da rua não tem relação com seu filho, a calma do timbre disfarça a urgência, uma necessidade insidiosa de ir até a janela cujas grades ele tinha insistido em remover há duas semanas (“o rapaz da TV a cabo pediu, senão ele não consegue acertar a posição da antena”), mas ele não responde, vai até o outro quarto, o banheiro, a cozinha, as paredes evitam encará-la, nada, ninguém, nenhum som, e então um barulho humano sobe lá de fora, um barulho que tanto pode ser bom-dia quanto meu Deus!, e que, mesmo em sua indefinição, já funciona como o arremate sonoro de um conjunto de situações intermitentes, desconexas no tempo mas interligadas em significado, sinais encadeados cuja importância ela se esforçou para não reconhecer, ou para fingir que não existia, um pouco como os personagens do livro que terminava de ler ignorando a que final previsível o conjunto de evidências dispostas nas páginas anteriores os estava conduzindo, ela não vai até a janela, em parte por medo do que verá, das mil mortes que morrerá enquanto desce as escadas até o térreo, até chegar à constatação tátil e ampliada da cena que, do quarto andar, lhe chegara visual e reduzida, mas já desumanamente impossível de reverter, em parte porque o trajeto entre o seu andar e o térreo ainda poderá comportar a resolução corriqueira daquele proto-pesadelo, um esbarrão nas escadas com ele, que só tinha descido para pegar a correspondência na caixa, e enquanto abre a porta do apartamento, um papel desponta em sua visão periférica, em cima da mesa, um papel que talvez já estivesse ali mais cedo, já estivesse ali desde sempre, mas cuja evidenciação instintiva, agora, tem uma conotação na qual não quer ou não pode pensar, por sombria demais, de modo que fecha a porta sem encará-lo, 14 horas, o bloco vazio, um cheiro de bife grelhado sobe do poço, o elevador está em manutenção já faz seis meses, se esquece de trancar a porta por fora, é uma queda curta, se diz, e há o cajueiro na calçada que sem dúvida amorteceu o impacto, isto se tiver mesmo havido uma queda, o que ela tenta forçar as circunstâncias a perceberem como evento improvável, em certo sentido absurdo, de que forma poderia um dia comum, desprovido de premonições, até de nuvens, pródigo em trivialidades como um cheiro de bife grelhado que sobe do poço ou a manutenção do não-conserto do elevador ser também o do fim de tudo, mas a verdade é que já começa a se render, a achar menos possível que na curva para o lance seguinte irá encontrá-lo, que todas as vezes em que o viu com o olhar perdido na janela do ônibus, deitado na cama, numa roda de amigos, não fossem um prelúdio para esta tarde, a frouxidão dos eu te amo, a pena de deixá-la como a última coisa que ainda o impedia, a gradativa corrosão desse precário elo final com a realidade, o sexo incomum na noite anterior, a devolução de livros emprestados sem a contraparte da exigência dos que havia emprestado, a serenidade, o esforço para parecer bem, essa brandura tão típica de quem já desistiu, de quem já se desenrodilhou da camada de fios que o prendia a uma necessidade atávica, irracional e compartilhada pela maioria, de manter a consciência perdurando, e ao final do primeiro lance ela está se esforçando para recapitular a última conversa que tiveram, não se lembra com precisão das palavras, mas sabe que foi algo terno, uma cálida rememoração pré-sono dos primeiros tempos, dos grupos de estudo da faculdade, da chuva ao abrigo do toldo de uma loja fechada no centro, e isso de alguma forma a conforta, saber que, se o que encontrará alguns metros abaixo for o que o conjunto de circunstâncias espalhadas nas páginas anteriores fizeram supor, o que ficará em sua mente não será a lembrança de uma briga, palavra mal empregada ou silêncio cheio de rancor por alguma banalidade cotidiana não verbalizada, embora evidente no balé dos movimentos domésticos, mas a docilidade do início, quando a espiral de degradação não existia, ou apenas em estágio embrionário, e isso desperta nela − sem uma ordem consciente, sem nem mesmo se articular de forma discernível, a princípio – uma ansiedade diferente, insidiosa mas irresistível, que aos poucos deságua, cinzenta, na ideia de que, passadas todas as sutis e elaboradas fases de sua dor, passada a onipresença das memórias da existência dividida, passado (durante talvez o dobro ou o triplo do tempo em que estiveram juntos) o vácuo sulcado pelo fim unilateral que ele lhes impusera nesta tarde, passada a incapacidade de deixar sua apatia por qualquer outro estado da alma, poderá voltar a viver, em vez de meramente suportar a realidade ao lado de outra pessoa, ser de novo alguém com um conjunto de possibilidades à disposição − alguém capaz de se alegrar com a perspectiva de que alguma delas conduza a um estado de felicidade permanente ou menos descontínuo, e então, tentando por tudo sufocar essa torrente de sentimentos vis sob o peso do amor ainda não dissipado, e ao mesmo tempo incapaz de saber se tal esforço já faz parte do plano de se entregar com sofreguidão à tristeza profunda dos primeiros tempos, prenúncio necessário da alegria duradoura dos seguintes, ela chega ao térreo e abre a porta.