Um conto de Fernando Ferrone
Fernando Ferrone nasceu em Jardinópolis, SP, em 1981. Em 2003, concluiu a faculdade de Ciências Sociais (Unicamp) e, em 2005, apresentou dissertação de mestrado em História Contemporânea (Université de Bourgogne, França).
Desde 2006, reside em São Paulo, capital. É tradutor e autor do romance à deriva (2017, edição independente). Publicou contos pelo site Ruído Manifesto e Mirada. Atualmente, trabalha em seu segundo romance, provisoriamente intitulado A Longa Noite de B.
Fanpage: escritorfernandoferrone
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Última viagem
A saída para Brotas estava próxima e Natália redobrou a atenção para não perdê-la. Fazia tempo que não ia para a chácara do pai e não se lembrava bem do caminho. O local era tão isolado que nem o Waze era de grande valia. Tinha que se orientar pelas lembranças da adolescência.
– Por que sobrou pra você fazer isso, Nat?
– Como por que, Bia? Pra quem você achou que sobraria isso?
O pai de Natália, em seu testamento, tinha feito um último pedido: que suas cinzas fossem jogadas nas águas do rio que banha seu último refúgio, a casa de campo no interior.
– Sei lá, seu irmão. Eles não eram mais ligados?
– Eram ligados sim, mas o Mateus não se daria a esse trabalho. Ele teve que voltar pra Zurique logo depois da leitura do testamento: tinha “negócios a tratar”.
– E sua mãe?
– Ela que me pediu. Disse que não suportaria voltar ao sítio depois de tudo o que aconteceu.
– Foi a história com a secretária, Nat?
Natália apertou os lábios e fez que sim com a cabeça. Ajeitou novamente os óculos escuros e deu seta. A saída estava logo à frente.
– Eu achei que ela o tinha perdoado.
– Há perdões e perdões, né? Ela não iria ficar pro resto da vida sem falar com o pai dos filhos dela. Mas também não iria ficar feliz de revisitar tudo o que aconteceu.
– Desculpa, sei que é seu pai, mas foi bem canalha da parte dele. Aliás, por que a Roberta não se encarregou, afinal?
Roberta era a última esposa do pai de Natália. Eles se conheceram quando o pai a contratou como secretária da firma de advocacia. Era para ser só um caso entre patrão e empregada e a coisa toda transcorreu sem problemas até que uma pequena extravagância de “aniversário de namoro” pôs tudo a perder. O pai de Natália e Roberta decidiram passar um fim de semana no sítio em Brotas. Para a esposa, ele disse que viajaria a negócios a Buenos Aires, o que era bem comum e não despertaria suspeitas. Porém, Cláudia, a mãe de Natália, acreditou que tivesse esquecido um casaco na chácara e ligou para o caseiro, que confirmou a presença da peça. Prestativamente, perguntou se ela gostaria que o pai a levasse de volta. Num relance, Cláudia entendeu o que se passava e foi fazendo perguntas até obter todas as informações confirmatórias do caseiro, que nem se deu conta da gafe. A mãe confrontou o pai na segunda-feira seguinte, eles discutiram, e no mesmo dia o pai foi para um flat. Seis meses após a assinatura do divórcio, casou-se com a secretária dando uma recepção que foi nota de uma coluna social de um jornal de grande circulação.
– Não sei, Bia. Você faz cada pergunta.
– Desculpa, miga.
O sedã japonês cruzou a área urbana da cidade e logo ganhou uma estrada de terra. Seguiam devagar, e Beatriz acreditava que era porque Natália não se lembrava bem do caminho. Isso até Natália quebrar o silêncio.
– Acho que eu nunca te contei, mas depois daquela vez, eu jurei que nunca te perdoaria.
– Você tá falando de quando a gente foi escondida pra Love Story?
– Sim.
– Nossa, Nat, faz tanto tempo isso. Você tinha me perdoado…
– Sim, Bia, eu te perdoei. Até meu pai, eu perdoei. Eu acho.
Quando ainda mal tinha completado dezoito anos, Natália disse aos pais que passaria a noite na casa de uma amiga. Estudariam juntas para o simulado do dia seguinte e iriam juntas para o colégio. A mãe de Natália, imaginando as intenções, ligou para a mãe da amiga. Foi tranquilizada pela informação de que Beatriz tinha contado a mesma história. De fato, Natália e a amiga estudaram até que a mãe de Beatriz fosse derrubada pelo clonazepam. Esgueiraram-se para fora do apartamento e seguiram para a conhecida boate próxima à Praça Roosevelt.
Natália estava sentada ao balcão, sozinha – a amiga tinha ido ao toalete –, quando um homem de meia-idade se aproximou e lhe ofereceu um drinque. Na penumbra, Natália não reconheceu Osvaldo, sócio do pai na firma de advocacia, até que ele tentasse beijá-la. Assustada, empurrou-o e o derrubou, chamando a atenção dos seguranças da casa. Osvaldo encolerizou-se e chamou a filha do amigo de puta asquerosa. Natália tentou se explicar, tentou dizer que tinha apenas se assustado e não quisera machucar Osvaldo, mas não conseguiu. A amiga a arrastou para fora e retornaram para casa.
Para Natália, aquele episódio desagradável tinha sido encerrado ali, porém, no dia seguinte, ao voltar para casa, foi confrontada pelo pai, que perguntou o que ela estava fazendo numa casa de prostituição de madrugada. Disse que não tinha criado filha para ser puta e deu-lhe um tapa na cara. A mãe tentou intervir, mas em sua fúria, o pai a derrubou contra o aparador e abriu-lhe a nuca. Naquele ano, Natália passaria no vestibular para uma faculdade no Rio e voltaria somente algumas vezes por ano. Voltou somente a falar com o pai quando o câncer foi descoberto.
– Eu nunca tinha visto uma urna antes. Até que é bem bonita, disse a amiga segurando o volume de aço escovado entre as mãos. Mas o que a gente faz com uma delas depois que espalha as cinzas?
– Sei lá, Bia, vende na OLX…
– Nossa, Nat, você tá mesmo de ovo virado hoje.
– Desculpa, Bia. Eu não queria estar fazendo isso. Você não tem culpa, desculpe. E afagou o braço da amiga.
Rodaram mais alguns quilômetros até que Natália fez uma curva e passou por uma velha porteira aberta. Adentrou um bosque de árvores muito altas e logo a sede da chácara se avistou. Era uma grande construção de tijolos à vista com uma piscina ao lado. A piscina estava esvaziada e coberta parcialmente por uma lona. Algumas trepadeiras pendiam sobre as janelas fechadas.
Natália parou o carro sob uma sibipiruna e seguiu até a porta, Beatriz a seguiu, carregando a urna meio desajeitadamente. Natália testou a maçaneta da porta, que girou em falso, tentou ver através da janela ao lado, mas os vidros estavam muito empoeirados. Deu a volta e tentou a maçaneta da cozinha, sem sucesso. Estava se virando quando notou uma figura esguia, alta, de traços chupados usando chapéu de palha.
– Oi, Donizete. Sou a Natália, lembra de mim?
– Claro, menina. Boa tarde, tudo bem? Ah, meus sentimentos pelo seu pai. Todos nós aqui ficamos muito tristes por ele. Era um bom homem.
– Era sim, Donizete. Era sim… essa aqui é a Bia, a gente veio pra, bem, espalhar as cinzas do meu pai no rio.
– Ah…entendi. É isso, digo, esse pote aí? Apontou para o objeto no colo de Beatriz.
– Sim.
– Ah, entendi. Mas vocês não estão cansadas da viagem? Vocês almoçaram? Eu peço pra Leonor colocar a mesa pra vocês.
– Não, tá tudo bem, Donizete, obrigada. Eu só queria dar uma olhada na casa por dentro.
– Claro, claro, espera um minutinho que eu já abro.
Sacou um molho de chaves do bolso, escolheu uma, abriu a porta com certa dificuldade. Fez espaço para Natália e Beatriz, pedindo desculpas pela poeira. Fazia mais de dois anos que o pai emitira ordens para que a casa ficasse fechada e o caseiro cuidasse somente da manutenção emergencial. Natália entrou e começou a caminhar pela casa em silêncio. Beatriz e Donizete a acompanhavam, mas mantinham uma certa distância.
Os tapetes estavam enrolados e encostados nos rodapés. Os móveis cobertos por panos. Os quadros e retratos não tinham sido retirados da lareira. Natália notou que as fotos em que ela e o irmão apareciam com o pai ainda permaneciam à vista. Nos quadros afixados na parede rente à escada, havia fotos de sua infância, da mesma maneira que ela se lembrava. Entre as dezenas de retratos encontrou uma foto emoldurada da mãe, quando jovem. Pensou se havia sido um esquecimento do pai, que nunca se preocupou muito com decoração, ou se ele fez questão de manter aquela relíquia do passado. E se fosse de propósito, que sentimentos evocaria diante da foto da primeira mulher? Subiu para os quartos e notou tudo pouco alterado. O do irmão ainda tinha a velha televisão de tubo onde ele instalara um Atari. E no seu, os pôsteres retirados de revistas ainda estavam nas paredes, embora alguns cantos estivessem pendentes.
Foi tomada por uma sensação estranha, que não reconhecia. Olhou para o corredor através da porta e não viu os dois, que tinham ficado no andar de baixo. Fechou a porta e sentou-se no chão, sob a janela, encostada na parede. Deixou-se ficar calada, de olhos fechados, tentando controlar um embrulho no estômago, um aperto num ponto entre os seios. Soluçou e permitiu-se chorar, em silêncio. Ficou ali alguns minutos até que se acalmou. Foi até o espelho: a maquiagem não se arruinara. Com a manga do chemisier secou as lágrimas restantes e recompôs-se. Testou a descarga do vaso, que estava funcionando. Sentou-se, aliviou-se e, ao acionar novamente o dispositivo, como que sentiu um estalo em sua mente.
A princípio, não acreditou em si mesma, porém refletiu um pouco e achou que era uma maneira válida de resolver o “problema”. Válida e original, acrescentou, permitindo-se um sorriso de canto de boca. Levantou-se, lavou-se as mãos e saiu do banheiro. Ao descer as escadas, encontrou Beatriz e Donizete, em silêncio, sentados num sofá, ainda com o pano banco recobrindo. Os dois se soergueram ao vê-la.
Caminhou até Beatriz e apanhou a urna, abraçando-a contra o peito.
– Donizete, aquela fossa que a prefeitura mandou construir chegou a ser feita?
O caseiro retirou o chapéu, coçou o topo da cabeça e respondeu num tom quase confidente.
– Não, não, senhora.
– Ótimo. Já volto.
Subiu novamente as escadas, foi até o banheiro, levantou a tampa do assento. Abriu a urna, contemplou as cinzas do pai e, num único movimento, virou-as todas na privada. Uma parte do pó se espalhou e pousou em suas mangas, que ela bateu com um movimento delicado. Acionou a descarga e ficou observando o pai seguir seu caminho. Abaixou delicadamente a tampa do assento e seguiu para a sala. Donizete e Beatriz a observavam com curiosidade.
– Toma, Donizete, faz um vaso pra Leonor com isso.
Despediu-se e seguiu até o carro acompanhada pela amiga. Fizeram o caminho de volta para São Paulo em silêncio, mas Beatriz achou que viu Natália sorrir algumas vezes durante o trajeto.