Um conto de Gilvânia Machado
Gilvânia Rodrigues Machado, natural de Natal-RN é mestre em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Professora, poeta, escritora, feminista e ativista cultural, publicou diversos contos, poemas e artigos em coletâneas, revistas e jornais. Organizou três antologias: Aprendizes de Poeta, Fagulhas Poéticas I e II; pela editora Literata – São Paulo. Em 2014, lançou seu livro solo de poetrix Rendas & Fendas, na Bienal Internacional do Livro São Paulo. Atualmente, faz parte da Comissão Editorial da coletânea de crônicas e contos da UBE (RN) a ser lançada em meados de 2019. Engajada no Movimento Mulherio das Letras desde a primeira edição em João Pessoal. Faz parte da Comissão de Articulação do Mulherio das Letras no RN.
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A espera
Casou muito cedo. Tinha só dezoito anos. E, ainda na lua de mel, engravidou. Surpresa e alegria. Uma linda menina nasceu. Deu-lhe o nome de Mel.
Teve de largar os estudos. Precisava cuidar da casa e de Mel. Não sentiu angústia por essa decisão. Gostava de ser dona de casa, de ocupar-se com o marido e a filha.
Nos cinco anos seguintes, teve mais quatro filhos. Resolveu então ligar as trompas, senão não pararia de conceber, tamanha a fertilidade.
Sentia-se feliz, realizada. Nascera para isso: cuidar da casa, do marido e dos filhos.
Não tinha tempo para pensar em si ou em outros assuntos, tanto era seu envolvimento com os afazeres domésticos. Levantava-se cedinho, fazia o café, arrumava os meninos para a escola. Quando ficava sozinha, entre uma tarefa e outra, sonhava com o futuro das suas crianças.
O marido, um perfeito chefe de família. Vivia para trabalhar e colocar comida no lar. Não era lá dado a muito carinho. Isso, só no início do casamento. Agora, as preocupações e prioridades se voltavam para os filhos. Era necessário garantir o futuro deles.
Um dia, o marido resolveu fazer horas extras. Aumentar o salário. Passou então a chegar tarde da noite.
Ela sentia dó do esposo. Pobre coitado! Tão dedicado, tão trabalhador. Fazer o quê? Eram pobres, tinham de sacrificar-se em favor da prole.
Numa ocasião, ele chegou para ela e lhe disse que desejava contar-lhe algo, pois tomara uma decisão.
– Eu e uns colegas do trabalho resolvemos alugar uma casinha pequena, pois haverá noites em que teremos de dormir lá.
A mulher fez uma cara de espanto, sem entender o que estava acontecendo. Percebendo o semblante da esposa, ele tentou explicar melhor.
-Filha, você sabe que trabalho longe de casa. Estou sempre fazendo serão. E chegar muito tarde, sendo obrigado a logo acordar cedo de novo, está sendo muito cansativo. Assim, nas noites em que for indispensável, dormirei por lá.
A princípio, foi doloroso. Quando o marido não dormia em casa, ela sentia insônia. Mas entendia o sacrifício dele. Já as vizinhas, maldosas, insinuavam coisas…
– Tu acredita mesmo que teu marido tá fazendo serão? Abre o olho, o seguro morreu de velho!
Ela contava ao cônjuge as suspeitas da vizinhança.
– E você agora não tem mais o que fazer nesta casa? Me parece que vive na porta, falando com essas desocupadas!
A partir daí, ela deixou de falar com as vizinhas. Um bando de mexeriqueiras, despeitadas. Afinal, o marido da Joana era um beberrão. Já o de Anita a traía, na cara, com a própria sobrinha dela: e ela se fazia de doida. Despeito. Puro despeito. Seu esposo, sim, o homem da casa, trabalhador.
No começo, o marido passava duas noites, dormindo perto do trabalho. Depois, aumentou para três… Até que chegou um tempo em que ficava a semana inteira fora.
Agora não só as vizinhas, mas os próprios filhos insinuavam coisas. Entretanto, ela sempre, sempre, acreditando naquele com quem subiu ao altar.
Até que ele não voltou mais do trabalho. Passou uma semana. Depois: duas, três, e nada de ele retornar.
Ela, para não pensar besteiras, concentrava-se na casa, nos filhos. Às vezes, vinha-lhe um pensamento assombroso: Será que tinha acontecido algo, um acidente? Mandou o filho mais velho ir lá. Não tinha coragem de receber uma notícia ruim.
– E aí, cadê o seu pai?
– Muito trabalho, mãe. Não tem tempo de vir para casa. Mandou essa carta e esse dinheiro.
– Não tem problema, filho, vou arrumar a casa, fazer uma comida bem gostosa. E você vai levar uma mensagem escrita: vou chamar para ele vir no final de semana.
E ele veio. A casa estava impecável. A mesa posta. Os filhos todos de banho tomado e arrumados. O lugar do chefe do lar, sagrado. Só ele sentava ali. Almoçaram. Ela feliz, mal comia, servindo à família.
Terminado o almoço, ele disse que precisava voltar. Ela fechou os olhos e esperou um beijo. Ele lhe deu um, rápido, e se foi.
– Próximo domingo, farei outra comidinha gostosa para você. Estarei esperando.
– Virei, sim, filha.
No domingo seguinte, ela caprichou na refeição. Comprou toalha e louça nova, colocou flores no vaso. Deu banho nos filhos menores. Por fim, todos se sentaram, à espera dele.
– Mãe, a comida tá esfriando… O pai não vem mais… Vamos comer.
– Calma, filho, espera mais um pouquinho.
O caçula começou a chorar.
– Ai meu Deus! Vou dar comida só para o Elias, que é pequeno. Vocês podem esperar…
Aguardaram horas… Até que não aguentaram de tanta fome. Mas ela não comeu. A comida era fel. Puro fel.
Resolveu ir com o filho ao local em que o marido trabalhava. Porém, chegando lá, soube que ele fora transferido para outro município. Não disseram o nome da cidade; só mesmo, que fora transferido. Assim, pegaram o ônibus de volta. Não disseram nada. Um silêncio profundo. O mais velho pegou a mão da mãe e apertou. Ela, inerte.
Em casa, a mulher cumpriu suas tarefas. Deu banho nos menores e arrumou-os para dormir. Quanto a si própria, passou a noite em claro.
No outro dia, o primogênito levantou-se cedo. Estava preocupado com a mãe. Todavia, encontrou-a cantando na cozinha.
– Vamos, acorda tua irmã Mel e me ajuda a arrumar as crianças para a escola.
Todos, banhados e uniformizados, beijaram a mãe e foram estudar.
Ao voltarem, a mesa posta. Sete pratos. O mais velho ameaçou sentar-se na cadeira do pai.
– Não sente aí!
– Mas mãe…
– É a cadeira do seu pai. Vamos esperar por ele.
Concordaram. Até que, não suportando a fome, comeram. Ela, em silêncio. Quando os filhos se levantaram da mesa, a esposa olhava em direção ao lugar do marido ausente e falava:
– Coma, meu amor. Não liga para as crianças. Elas são assim mesmo, impacientes…
Resolveram não tirá-la daquele mundo. E todas as vezes que chegavam da escola, os filhos, por amor, mergulhavam no delírio da mãe.
Mel, escondida, observava a progenitora, que conversava com uma cadeira silenciosa, que se achava em frente a um prato vazio. Com os olhos lacrimejados, prometia a si mesma que não esperaria por homem nenhum.
Tereza custodio
Excelente conto de Gilvânia Machado. Parabéns.