Um conto de Gleycielli Nonato
Gleycielli Nonato é escritora, atriz, poetisa, contadora de causos e produtora cultural, com formação em Artes Cênicas. Indígena da etnia Guató, pantaneira, ribeirinha, natural de Coxim, Mato Grosso Sul. Membro da Academia de Letras do Brasil Seccional Coxim-MS, ocupando a cátedra n° 11. Tem dois livros publicados: Índia do rio (poesias, 2012, obra artesanal e independente) e Vila Pequena causos, contos e lorotas (2017, editora LIFE). Produtora e diretora do Grupo Cênico Musical “ CABOCLAS”, que trabalha com literatura feminista de sua autoria, é uma escritora cênica que mescla a cultura tradicional do índio pantaneiro e suas belezas naturais, com as complexas problemáticas sociais em seu ativismo literário. O conto abaixo faz parte de Vila Pequena causos, contos e lorotas.
***
Olhos tristes
_ “Alma de índio não tem cerca.”
Quando perderam seu território, viram-se obrigados a ceder. Entraram pela primeira vez em uma fazenda, um casal de velhos e seus nove filhos já com idade pra casar. Essa família estava acostumada com a liberdade, a ideia de ter cercas em volta os apavorava, mas como esta era a única saída, mudaram-se. Foram morar em um casebre de taboca nas instalações do local, enquanto a velha e suas meninas trabalhavam na roça e também com pequenos animais, o velho senhor e os rapazes iam para a lida. Não estavam sós, havia paraguaios, bolivianos, índios da mesma e de outras tribos. Carpiam, faziam cerca, tocavam gado, se tornavam peões. Os mais jovens trabalhavam com afinco, a ideia de ganhar uns tostões os animava, enquanto os mais velhos entravam em declínio, a tristeza matou um por um. Não poder caminhar por onde quiser, ser humilhados, explorados, arrebatados… Justo eles, almas livres.
Seu Pió, o senhor desta história, sentava-se toda tarde em um toco e olhava para o horizonte, essas paradas para observar o nada, estavam ficando constantes, via-se uma visível melancolia naqueles olhos tristes. Certo tempo depois, juntaram um dinheirinho, e junto com outra família partiram de caminhão para a cidade mais próxima, foram fazer compras: panelas, galinhas, fumo e tudo o que pudesse trazer e o dinheiro desse para comprar. Enquanto a poeira e o vento batiam em seu rosto Pió observava aquele pantanal imenso, em silêncio, com os olhos entristecidos, mirados para o horizonte, seu olhos pareciam sentir saudades, sentia com o vento uma imensa vontade de voar, e depois, parava acuado, como passarinho na gaiola.
Ao retornar da cidade, já a caminho da fazenda, Pió desceu do caminhão e andou até seu toco, sentou, fumou um cigarro e olhava para o nada. Seus filhos já haviam percebido os seus olhos tristes. Levantou-se e saiu caminhando, fumando seu paieiro, o filho mais velho tentou ir atrás, mas a velha índia não deixou. O tempo foi passando e Pió ficava cada dia mais calado, passava as manhãs olhando o horizonte, e de noite fazia longas caminhadas. Acabou que Firmino, o filho mais velho, tomou conta de tudo, o pai já não trabalhava mais. A tristeza encharcou o coração de Pió, eram tantas mágoas, que podia se ver lágrimas em seus olhos. Todos perceberam algo estranho, e começaram a questionar o porquê não estava trabalhando.
O encarregado da fazenda foi até ele reclamar da falta ao serviço, e Pió não esboçava reação alguma, o encarregado estava perdendo a calma. Gesticulava, falava alto, e o velho Píó nem piscava. De longe o dono da fazenda viu aquela cena e chamou o encarregado para saber o que estava acontecendo. Ao relatar o acontecido, com todo veneno necessário de alguém que é pouca coisa a mais que um peão. Ao ouvir isso o fazendeiro foi até Pió, o filho mais velho largou as ferramentas no chão e quis ir defender o pai, e mais uma vez a velha índia não deixou. Todos ficaram olhando o fazendeiro chegar. Ele parou em frente ao casebre, olhou para o velho índio como se cuspindo em sua cara e falou:
-É isso o que dá Bastião, a gente dá comida, emprego e teto pra esse povo, e esses índios não querem saber de trabalhar.
De repente como em câmara lenta, Pió levantou-se, abriu a camisa, tirou os sapatos, montou em um cavalo em pelo e cavalgou rumo à mata. Passou a Sede, a porteira, a cerca e nunca mais foi visto. Algumas horas depois o cavalo foi encontrado na localidade da fazenda, e sua camisa pendurada na última cerca. O pobre do rapaz Firmino, ainda procura por seu pai, e sua velha mãe responde sempre a mesma coisa:
-Esquece, filho, seu pai foi procurar paz. Alma de índio não tem cerca.