Um conto de Igor Moraes da Silva
Igor Moraes da Silva nasceu em agosto de 1997, na cidade de São Paulo. Técnico em telecomunicações e apaixonado pela literatura, foi bolsista do CNPq e desenvolveu projetos para a coleção O que é ser cientista? da Universidade Federal do ABC. Estudante de Direito, é fundador do site literário Golem.
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A Represa
Resenha do site GolemSP, sobre a #Finalmente (hashtag Finalmente), de 19 de agosto de 2016:
O AVENTUREIRO, O PREDADOR E OS ESPERANÇOSOS
Que o Brasil nunca teve um grande nome das ficções futuristas ou das chamadas sci-fi não é novidade para ninguém. Alguns chegaram realmente perto, arranhando o que se poderia chamar de sucesso, mas nada se compara com o enredo publicado pela Galactus Books. A humanidade finalmente chegou à era das viagens interestelares, e faz coalizões para obter mais plantas, sobretudo Dominó – um planeta estranho que é disputado pela NASA e os BRICS. Enquanto esse conflito se desenvolve, o tenente Axel Castiglione descobre uma armadilha sendo tramada contra a humanidade e um plano para a subjugação e a erradicação de sua espécie inteira. Em uma corrida espacial que remonta um cenário de uma Guerra-Fria futurista, As Sombras de Urano, de Gabriel Diniz, dá impulso à ficção científica nacional, entregando uma aventura fechada e surreal sobre as coisas além do espaço.
Arthur observava a figura magra de Gabriel que estava sentado na sua frente, em seu sofá. Olhando a magreza de sua visita, pensou que sua mão poderia envolver o pescoço dela e estrangulá-la facilmente. E esse pensamento, de apertar e torcer a garganta da visita, seria um prazer indescritível.
A casa era baixa, lembrava um bunker visto de fora, mas era confortável por dentro. O sol e a brisa da represa Billings entravam pela janela, à esquerda. Setembro era um mês interessante para essa parte da cidade, das festas pátrias e o calor que invadia a zona sul de São Paulo nessa época do ano.
A única coisa que estragava tudo era o mal cheiro, que não veio naquele dia.
Mas ainda assim, Arthur se sentia enjoado. Encarar Gabriel na sua frente, com aquele sorriso no rosto…
Cobriu a boca por um momento, tapando o nariz com os dedos e disfarçou. Há quantos anos conhecia o Gabriel? Já fazia uns cinco anos, desde aquele evento no Anhembi sobre literatura fantástica. Ele estava ali para conceder uma entrevista sobre seu recente sucesso com As Sombras de Urano, um livro relativamente bom.
Relativamente…
Durante toda a sua vida Arthur tentou fazer sucesso. O blog, as autopublicações, os concursos que participava, mas nada parecia virar ou mudar. Sempre estava disposto a fazer o que era necessário para ganhar seguidores, curtidas e comentários…
— Você tem cada livro fantástico, Arthur…
Aquela fala esganiçada interrompeu o fluxo de pensamentos.
— Oi?
— Sua prateleira de livros. Gosto do jeito que os arrumou. Fez até um catálogo em ordem alfabética de autores, numerando eles com código e tudo mais.
Arthur balançou a cabeça em conformidade. Sempre foi diferente de Gabriel, mesmo tendo gostos parecidos. Ele não queria amigos, e com certeza não ligava para o que as pessoas pensavam dele, principalmente as pessoas por quem ele tinha desprezo. Quantas vezes, se mexendo na cama, ouvia aquela voz de pato rouco, não conseguindo dormir. E respondia que o odiava, que o culpava pelo seu fracasso, que Gabriel era o responsável por tudo de mal que acontecia com ele.
Fazia exatamente cinco anos que Gabriel se metia constantemente no caminho de Arthur. Chegou até ser o colunista mais acessado de seu blog – superando o dono –, até as histórias publicadas de maneira inédita tinham mais visualizações, compras e comentários nas plataformas de divulgação.
Durante a primeira semana de junho de 2014, saiu a distopia de Arthur, Como éramos antes de Carrie – a distopia que sugou seu sangue nos últimos três anos – e aí, na mesma semana, Gabriel lançou Episódio D, a novela que deu algum prestígio e que iniciou um universo expandido que no final daria em As Sombras de Urano. Tudo isso, embora tudo aquilo não passasse de um amontoado de referências desconexas e um saudosismo barato.
A novela acabou matando a distopia. Um sucesso de crítica em todos os meios de comunicação que ofuscou a verdadeira arte. Aliás, o que era arte para esses grupelhos convencidos, limitados e arrogantes que pensam entender de literatura? Se Episódio D não fosse lançado, seria claro o sucesso de Como éramos antes de Carrie.
Essa foi a primeira de várias ocasiões que a magreza de Gabriel atrapalhava a gorda felicidade de Arthur. Outras ocasiões vieram, umas maiores e outras menores, mas nenhuma tão marcante como se tornar o destaque do canal de terror e mistério ParaOuNormais.
Lembrou-se da época em que o diretor do canal ParaOuNormais o convidou e como ele, cego de vaidade, ficou entusiasmado com o projeto que tinha apresentado, dando parâmetros para o crescimento da página, números e informações de mercado. No dia seguinte, quem ocupou seu lugar como destaque foi Gabriel, que não fez nada disso. A revista sobreviveu por dois anos, tempo suficiente para projetar de vez o nome de Gabriel Diniz e sua obra.
O isolamento na zona sul, sem amigos ou família, vivendo de alguns investimentos e representações trabalhistas naquela região da Billings, o fez remoer esse ódio de ser um fracasso. Ele era um fracasso não por sua culpa. Ele era brilhante demais para que a culpa fosse sua. Era culpa deles. Principalmente dele, de Gabriel. E ficar perto dele era um martírio, olhar as fotos de sua seção de autógrafos, ver os comentários nos grupos literários, no jornal, na rede, tudo, absolutamente tudo trazia dor.
Tudo isso aconteceu, até que recebeu a mensagem pelo celular de Gabriel:
Vai estar em casa terça? Queria ir aí ver seus livros e conversar.
Arthur mal acreditou no que seus olhos estavam lendo. Então, por curiosidade e por cinismo, respondeu: Venha.
E ali estava ele, querendo acertar as pontas, nos seus dizeres. Ficou sabendo pela Ana Caroline do Divididos que, “Arthur está magoado com você, se queixa muito de algo que você fez”.
— Não gostei do que ela falou, então vim saber se isso é verdade e acertar nossas pendências. Foi algum texto que eu não escrevi para seu blog? Faz tempo que não escrevo para ele, aliás.
— Não, não estou magoado. Mas sim, você me deve um texto. Sobre os cento e vinte anos de Drácula.
— Ah, claro! Como pude me esquecer! Vou escrever e te mando amanhã.
— Faz o seguinte. Você ainda está em turnê do livro novo?
— Vou passar a semana inteira na capital, se é isso que você quer saber.
— Vem aqui amanhã e traz o texto. Preciso te levar em um lugar na represa que você vai adorar. Parece o retrato de um de seus cenários no Episódio D.
Gabriel sorriu.
— Sério? Cara, que bacana. Aproveito e te mostro o meu trabalho novo. Roteirizar quadrinhos. Cheguei até terminar alguma coisa.
— Hum… não diga? Ficção científica?
— Na verdade, distopia. Só estou procurando um ilustrador.
— Tem o Leander Moura. Ele tem aquarelas bem bacanas.
— Vou dar uma procurada. Ainda bem que você não está magoado comigo. Amanhã eu volto.
Céus! Como Arthur o odiava.
***
O pendrive abriu na tela do computador. Alguns arquivos eram mostrados em diversos formatos, mas prevaleciam sempre o PDF em detrimento do Word. Em uma passagem de olho rápido, se viu um arquivo.
— Aquele é…
— Sim. Gostei muito da sua distopia. Como éramos antes de Carrie deveria ser lido por todos. Foi no seu livro que eu baseei meu roteiro de quadrinhos. Espero que goste.
— Nossa, obrigado.
— Sua obra deveria ser mais lida e ter feito mais sucesso. Mas uma hora vai, acredite em mim. Trabalho duro sempre separa a pessoa talentosa da bem-sucedida.
— E de onde você tirou essa ideia? Que minha história dava uma boa história em quadrinhos?
— Você sabe que sou de viajar muito, bastante. Enfim, foi em uma das minhas viagens até a Grécia que fiquei encucado com sua distopia. Queria transformar ela em algo. Então, passei pela França, Sicília e foi só chegando em Londres e vendo uma exposição de artes de rua que tive ideia.
Londres. Algo mexeu no peito de Arthur. Ele nunca foi para Londres, nunca tinha saído dali, da Billings. Como desejava, ah, como ele queria ir para Londres e ver o Big Ben, a Rainha. Sempre achou que teria dinheiro para ir, mas sempre ficou contando os centavos de sua conta mísera.
— Gabriel, você já foi a Billings?
— Não, nunca.
— Vou te levar. Deixa suas coisas aí enquanto eu vou pegar meu carro.
Durante o trajeto, Arthur foi contando o que sabia da região.
— A Billings é a maior represa de São Paulo. Pode estar todas as represas secas e com falta de água, menos ela.
— Você está bem longe dos grandes centros de cultura literária, Arthur. Só percebi agora de como você vive isolado. Eu não aguentaria ficar tão longe assim da civilização.
— Eu aguento Gabriel, eu aguento. Venho caminhar aqui todos os dias. Cresci aqui jogando bola e brincando com meus colegas de escola. Esse horário deve estar vazio.
O carro deslizava sobre o asfalto esburacado que a prefeitura vivia falando que ia arrumar. O caos no trânsito vinha das faixas de bicicleta feitas pelo governo, que, detalhe, não tinha nenhum ciclista.
— Sabe, contam histórias de pessoas que morreram afogadas em represas. Eu sempre tive medo de água. Sério, nunca aprendia nadar. Teve uma vez, em uma brincadeira, que me jogaram na água no passeio de formatura. Fiquei me debatendo até que alguém teve o bom senso de me tirar de lá. Ufa!
A imagem veio à cabeça de Arthur, que ficou em estado de contemplação. Aquela coisa magra se debatendo na água…
Respirou fundo.
O carro estava estacionado em uma área vazia, perto de uma garagem verde. Mais à frente, cercada de ferros, um parque deteriorado pelo tempo e a ação de vândalos. Dos roubos de tijolos às traves de ferro.
— Esse silêncio, a luz do sol, as árvores, os pássaros… parece que estamos em outro planeta.
— É isso que eu sempre penso. Me lembro daquela parte de seu livro, que o Odison precisa levar a mensagem para Galága, e ele passa por uma parte assim.
— Sim, é quase esse o cenário que imaginei. Escurecendo de modo desolador, banhado pelas sombras com alguns raios de sol.
— Se você acha isso desolador, é porque você não entrou ali, naquela parte verde.
Caminharam um pouco mais. Gabriel avançou mais que Arthur, que ficou para trás. Aquela parte afundava com o peso: a parte verde criada pela crosta da sujeira da represa.
O pé de Gabriel afundou.
— Arthur, me ajude aqui…
Ele mal se virou e viu o outro saltar em cima dele com um murro. Se debateram, de um lado ao outro, até que Arthur chutou Gabriel, que cambaleou, projetando seu corpo para trás. Em um tchibum, a água ficou agitada de alguma forma, contrastando com a escuridão que adensava rapidamente. Ficou um minuto nesse debater, até que, em seguida, veio o silêncio.
O silêncio foi prolongado. Envolveu a represa, os vizinhos e os ouvidos serenados de Arthur, se fundindo instantaneamente. Gozava no silêncio, apreciando a sua inércia. Olhava a água escura e barrenta da represa, e sentiu todos os seus sentimentos ruins saírem. Todos represados por anos, tinham saído, ido embora. Estava, enfim, aliviado. O seu maior problema tinha acabado.
Gabriel Diniz estava morto. Foi para o além aquela coisa pestilenta, arrogante e prepotente. Pelo menos tinha deixado o último texto do Drácula – algo que não prejudicava sua vida, mas também não ajudava muito. O que se foi, nunca mais ia voltar, e a Billings garantia isso.
Ele olhava há tanto tempo a represa, que sentiu a represa olhar para ele.
Estava ficando tarde, é melhor voltar.
Caia a noite, e com ela o frio. Arthur começou a esfregar os braços, lembrando que esqueceu o agasalho. A calça e os pés ainda estavam úmidos do lodo da represa. Deu as costas e começou a voltar para o carro quando percebeu que não queria deixar o local. Cada passo parecia aumentar sua solidão e melancolia.
De repente, começou a correr. Não sabia o porquê daquele sentimento, só sabia que, se afastar da represa, significaria estar só. Queria passar a noite lá, mas o frio não deixaria ter uma noite tranquila de sono. Queria sua casa, seu quarto seu computador – e o pendrive, claro, com todos os projetos futuros de Gabriel.
Os joelhos doíam, o suor estava carregado em suas costas. O cascalho rangia debaixo de seus pés. E por toda aquela área, a do parque, as margens e as trilhas de corrida, sentia-se observado. Parou, e sentiu que outra pessoa também tinha parado. O coração estava pronto para pular para fora da caixa torácica.
— Quem é que está aí? – berrou, sem obter resposta, apenas o som da brisa batendo nas árvores. Foi quando teve uma ideia louca: parecia que era a represa que o seguia, nos seus pés, na calça, fazendo de tudo para não o deixar sozinho.
Voltou a correr. Abriu o carro, e acelerou. Aquela ideia era loucura, só podia ser loucura. Chegou em casa. Abriu a garagem, deu a ré no carro e estacionou. Ligou o alarme e desceu o portão do bunker. Finalmente estava salvo.
Veio a chuva junto com o jantar seco. Quase não dava para sentir o gosto da comida. A cada garfada, Arthur imaginava a volta de Gabriel, sujo de lama, querendo vingança. Virava a cabeça sempre em direção a porta, mas nada. Tudo estava escuro – houve uma queda de energia no bairro graças às pancadas de chuva. Jantar à luz de velas não era uma escolha.
A janela estava fechada. O vento batia forte, junto com as árvores que murmuravam como em uma sinfonia com o gorgolejar de água corrente que ele nunca ouviu antes. Provavelmente uma infiltração, foi fechar o registro. Bruscamente, como se houvesse um barulho atrás de suas costas, fechou o registro e se virou para a estante de livros com um olhar de que tempos melhores viriam.
Foi ao quarto e tentou dormir.
Tentou.
A primeira coisa que sentiu foi o cheiro. A represa irradiava um fedor original de suas algas. Depois, ouviu alguém chamar seu nome. A janela do quarto ficava fechada para evitar a entrada de insetos indesejáveis. Olhou para ela e teve a impressão de vê-la se mexer. Alguma coisa escura parecia emergir de lá, como se buscasse espaço para entrar. Parecia água corrente…
Água corrente! Em um salto, ele sentou-se na cama, tendo a impressão que fora da janela a represa forçava passagem. E de fato, ele viu que havia água escorrendo pelas frestas da janela.
Tirando as cobertas, colocou os pés descalços no chão e gritou. A água fria já cobria o chão e uma boa parte das pernas da cama. Enquanto isso, a água gorgolejava pelo parapeito da janela, num fluxo contínuo e mudo.
Tenho que alcançar a porta…
Levantou-se e tentou se mexer, mas em vão. Parecia estar preso em alguma coisa, e quanto mais ele fazia força, mais ele ficava preso. Caiu. Sentiu a pressão, que entrou pelos tímpanos. Fria, ela parecia vir acompanhada com um lodo semelhante àquele que tinha nas calças, um tipo de cera arenosa e derretida. Tentou se erguer e gritou. Conseguia ver o nível da água subir e subir, alcançando seu peito. Voltou a gritar, golpeando a água, que respondia se tornando mais barrenta, mais pesada. Aquele lixo grudava na pele, de modo pegajoso.
Arfou. A água já estava no pescoço. Faltava pouco para chegar a porta. Só faltava um pouco quando algo enroscar seus pés. Tinha a textura das algas podres da Billings, mas pareciam tomar forma de uma mão.
— Me larga seu verme maldito. Eu te odeio! Eu te odeio! Eu te od…!
A água cobriu sua boca, entrando pela sua laringe e queimando-a. Teve a impressão de que alguém esmagava seus olhos com os dedos, os pressionando para dentro do crânio. Enquanto seus pulmões eram invadidos por barro, uma mão mais gelada que a água agarrou sua coxa.
E ele gritou.
Entrevista concedida por Leander Moura em junho de 2017, originalmente para a página Thoth-Amon que está como extra de Como erámos antes de Carrie em quadrinhos (pg. 163):
Thoth-Amon: Fale um pouco mais de você, Leander. Onde você nasceu, cresceu, esse tipo de coisa.
Leander Moura: Minha posição geográfica nunca mudou muito. Eu nasci e cresci na mesma cidade, e até hoje não me mudei. O Brasil é extenso demais, prefiro ficar na minha cidade. Fui muito vago?
TA: Não. Como você se tornou um dos quadrinistas mais requisitados do país e ilustrador da Clock Tower?
LM: Sempre gostei de ilustrar coisas oníricas. Iniciei minhas publicações na webcomic K-ótica, mas meu foco agora é para meus projetos de HQs, minhas exposições coletivas e minhas ilustrações. Sempre gostei de Poe, Lovecraft e Stephen King. Por mero acaso, soube que a Editora Draco pretendia fazer uma adaptação em quadrinhos do livro O REI DE AMARELO, enviei portfólio para o e-mail errado, justamente da editora Clock Tower. Daí, gostaram de meu trabalho, acabei fazendo a capa e trabalhos posteriores. A Internet está aí para quebrar as distâncias, mesmo que acidentalmente.
TA: Esses seus projetos são desde E.L.A. até o começo dos esboços da herança de Arthur Dutra e Gabriel Diniz?
LM: É sim, e não só. Eu estou buscando algo muito próximo dos trabalhos que realizei. Algo que possa misturar Maldito Sertão com algo asimoviano, ou até orwelliano.
TA: Você recebeu esse convite dos dois quando ambos estavam vivos?
LM: Pior que não. Foi o criador do livro, o Arthur Dutra que me enviou o roteiro, dizendo que foi escrito por ele juntamente com o Gabriel Diniz e no dia seguinte ele morreu. Infelizmente, essa obra é póstuma. É a junção de dois ícones da literatura de ficção científica e fantástica nacional. A forma que eles morreram também foi chocante o suficiente para chamar a atenção. Um desapareceu, sem deixar rastros, o outro aparece morto, estirado na cama com os olhos arregalados…
TA: A língua para fora, com lodo nos pés e com um copo com água virado no chão.
LM: É. É bem chocante… e bizarro.