Um conto de Ismar Tirelli Neto
Ismar Tirelli Neto nasceu em 1985 no Rio de Janeiro. É poeta, ficcionista, roteirista e tradutor, autor de synchronoscopio (2008), Ramerrão (2011), Os ilhados (2015), do megamíni Alguns dias violentos (2014), todos publicados pela 7Letras, Duas ou três coisas airadas, em parceria com Horácio Costa (Luna Parque, 2016). Seu livro mais recente é Os postais catastróficos (2018). Ministra oficinas de escrita em São Paulo.
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Pedregulhos
Há manhãs, no entanto, inversamente, há manhãs em que os enxergo como que sobre pedregulhos. Descansam. Alto-mar. Descansam sobre a costumeira esteira de ossos. Não devo incomodá-los. Devo costear, leve, atentar para os borrifos.
Falo da minha voz. Não devo borrifar com a voz. Devo fazer minha parte na mantença deste sono.
Quando muito, permito-me embalar os rochedos.
Niná-los.
Quando muito, colocar qualquer coisa dentro de seu sono, deixar qualquer coisa lá dentro, uma prenda, e depois sair, pé ante pé.
Fechar a porta silenciosamente atrás de mim. Sorrir. Descer a rampa. Parece-me que é isto que os pais fazem.
Eles entram e saem do meu sono quando bem entendem. E deixam em seu interior os mais surpreendentes artefatos. De preservativos usados a imensas escadarias em espiral. Vulcões inativos e guias para exames médicos. Nestas manhãs, inversamente, gostaria que o sono deles fosse tão violável quanto o meu.
Gostaria de retribuir.
Eu não sei o que torna o sono deles menos violável que o meu. Já passei algumas noites em claro pensando neste assunto.
Chegam as manhãs de inverno. Os picos nevados ao longe. Alpes. Não pode haver nada mais belo, penso. Não pode haver nada mais belo que estes meninos adormecidos.
Faço da minha voz uma espécie de marulho, longínquo mesmo em relação a mim. Penso: se eu, que estou tão perto de mim, tão exasperantemente perto de mim, mal me ouço, para eles devo ser quase inaudível.
Devo ser um sussurro.
Agora estou me dando uma ordem: seja um sussurro.
A mais pálida ideia.
Silencie. Silencie todo cansaço, toda finitude. Silencie a certeza de que vai morrer, a certeza que principia nas costas, sobe até a nuca, brasa móvel, a certeza de que não tarda, de que estamos todos aqui para morrer, mas que alguns irão antes, sem ter nunca deixado um presente no sono de ninguém. Silencie. Recoste a cabeça sobre a mesa. Feche os olhos. Continue falando.
Vento sobre um pico nevado, carregado de um que outro pássaro, uma que outra ovelha, um que outro olímpico.
Um que outro está desperto, naturalmente. Há sempre um que outro bastante desperto, fazendo toda espécie de pequeno barulho, ofegando, fazendo-me sinais, querendo comunicar o quanto está desperto. Querendo transmitir o quanto está presente, querendo me impressionar com sua vontade de participação.
Nestes momentos, meu maior medo é que peçam a palavra.
Modulo a voz, cada vez mais baixa, modulo também a palestra. Clareza, precisão, objetividade. Tudo isto ajuda porque é uma cerca em torno. Mas trata-se sobretudo de alcançar um certo ritmo. Um certo ritmo que não permite objeções de qualquer espécie. Um galope medido, épico. Um contínuo falante. Fazer com que no falar não se abram brechas.
Tornar-se, pelo ritmo, impenetrável.
Assim os poucos despertos não encontram abertura para dizer o que quer que seja. Permanecem à margem do que estou dizendo – que diferença pode fazer o que estou dizendo? –, permanecem à margem, agitam-se por vezes em suas carteiras, por vezes produzem estalos, rangidos. Cravo-lhes então uns olhares de extrema hostilidade. E com isto estou dizendo: não digam nada. Deixem os meninos quietos. Deixem os meninos jiboiando.
Sobretudo, deixe-me embalá-los. Deixe-me embalá-los.
Mas não tenho controle sobre o que se passa fora da sala de aula. Este silêncio, esta harmonia, breve será comprometida por uma porta fechada com estrondo em algum lugar do corredor, um berro subido da rua, um toque de celular.
Uma boa bofetada de mão aberta.
Hilda das Graças de Oliveira Curcio
Este conto de Ismar tirelli neto é absurdamente lindo, prenhe. imagens belíssimas. Ele e seu conto conseguiram “deixar um presente no meu sono”, certamente. Adorei.
fernanda andreotti Romeu
Profundo em sua mensagem, leve na imagem.
Lindo