Um conto de Jennifer Trajano
Paraibana (natural de João Pessoa), professora de Língua Portuguesa e revisora textual, Jennifer Trajano é autora do livro de poemas Latíbulos (Editora Escaleras, 2019). Acredita ser a literatura um meio para a concretização das nossas utopias diárias. Essas que, como respondeu o cineasta Fernando Birri ao lado de Eduardo Galeano, servem para nos fazer caminhar.
***
A máquina de Borges
Ao “outro” Jorge Luis Borges
a jovem entrou no coletivo e sentou na cadeira com janela. gostava de olhar a paisagem enquanto moía na mente que não deveria chorar por aquele homem porque tudo, inclusive o choro, apesar de recursivo, era efêmero. ouvia cartola, coisa rara para adolescentes de sua idade. 17 anos. mais três minutos depois, entrou uma senhora, também de cabelo no pescoço, porém mais claro, com tinta disfarçando o que na face se notava nitidamente.
essa mulher sentou na cadeira da frente, um lugar no horizonte da moça que andava distraída e se assustou calada com o bicho que a atingiu no decote: um cuspe. nesse momento, a senhora limpava a boca. queria cuspir para fora da janela, porém não teve força o suficiente e acabou por chegar na imagem que estava atrás, sem se dar conta do ato. a moça, com o dedo indicador esquerdo a ponto de limpar uma lágrima, sentiu a baba da velha e, nesse momento, se enojou da própria casa.
quis limpar, mas preferiu esperar bater o vento, não sabia se alguém estava olhando. estava do lado do sol. lembrou da efemeridade das coisas. sabia que chegaria ao seu destino e mataria o animal aquático que a havia atingido. dito e feito. ocorreu. ela chegou. entrou no banheiro e, mesmo lavando com água e sabão, ainda era habitada pelo cuspe. secou o busto, mas sentia que algo futuro escalava seu pescoço.
um bicho aquático, depois de pregado ao corpo – mesmo que se dê a possibilidade de fuga – não sai na água, passa a habitar as partículas da epiderme. aquela senhora, ainda que se negasse a ver quem estava atrás, ainda que tivesse cuspido no passado, não poderia desafogar o que a habitava: a moça, tão antes distraída.