Um conto de Joe Sales
Joe Sales é poeta, contista, professor de Língua Portuguesa e mestre em Estudos de Linguagem. Publicou cinco livros de poemas pela Editora Penalux: Porta Estreita (2014), Ao passo das horas e outros descabimentos (2015), Criticepopular (2015), Largo do Amanhecer (2017) e Pelas luas, a mesma encruza (2019) e Clandestinamente (2021) pela editora Carlini & Caniato.
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Desabafo
Com Gustavo Valin em meu pensamento
Texto lido pelo escritor e youtuber Mateus Elias
Eu quero uma palavra verde. Uma palavra que saiba ficar verde. Nem de vez ou madura. Palavra assim quero vomitar tal qual deus em seu apocalipse. Quero uma palavra capaz de transmutar a tristeza em outra coisa não contaminada de felicidade. Uma proparoxítona para ecoar seu som em movimentos incapazes. A incapacidade é um caminho que se segue sem fraturar. Sem obstinação. Também penso que ser deus é ser sempre obstinado. Veja: as pragas no Egito, o dilúvio, Sodoma e Gomorra e, por fim, o Juízo Final. Quero uma palavra livre disso. Sem precipício. Uma palavra próxima. Dinâmica. Capaz de curar a lepra dos que buscam em tudo sentido.
Veja: estamos mergulhados de trastes e coisas batizadas para nutrir ainda mais nossa solidão. Eu quero dar ao meu peito o direito dalguma revolução, mas meu desejo se torna obsoleto porque não há instrumentos para isso. As palavras estão carregadas de contradição. Há um deus em tudo. E tudo pede socorro e ninguém escuta. Tudo está de vez ou maduro demais. Estamos apodrecendo.
Veja: por que não posso dizer que essas palavras sejam capazes dalgum milagre? Estou ferindo alguém com minha falta de crença. Estou me ferindo porque não estou apto a usar as palavras certas. Também sou obstinado e não sou um deus. Meu fardo não me permite alcançar tamanha posição. Queria escrever uma história capaz de criar outra história: e dessa outra uma outra que outra sendo outra num movimento intermitente ou de caráter intermitente?
Veja: meu peito está vazio. Alguém me diz bom dia e me pergunta se estou bem. Alguém que não tem tempo ou mesmo não está a fim de ouvir realmente o que tenho para dizer. Não estamos prontos para o abismo de cada um. Queremos no agora apenas alguns instantes de consideração: movimentos rasos de piedade e amor: no sentido bem trivial da palavra – uma palavra de vez.
Eu queria contar uma história que começasse com alguém que é repentinamente abatido por uma dor e não deseja de jeito nenhum se livrar dela, pois sem ela não será capaz de se reconhecer, pois a cura aniquilaria sua própria existência. Veja: aí está o sentido de deus. A dor é a própria obstinação. Estou indo a algum lugar sem caminho ou sem sentido: é isso que desejo.
Não que nenhuma luz seja capaz de me guiar. Quero me adentrar no breu e, mesmo tendo muito medo, me entregar a isso. Minhas palavras são falhas e insistem em significar. Eu queria furar minha solidão para ver verter de sua seiva qualquer coisa que não fosse dada por verdadeira. Eu quero a mentira. Quero que sua teia me corrompa até eu não ser capaz de distinguir o real do imaginário. Veja: até aqui eu fracassei com as minhas palavras. Minha intenção inicial foi obliterada por outra coisa e essa coisa já se transformou em algo bem distante do que eu imaginava.
Nesse momento algo me atravessa.
Posso ser capaz de prosseguir dizendo sem dizer nada? Há um caos. Mas um caos premeditado. Minhas palavras estão próximas de um aborto. Abortar o silêncio que me obstina a direção de deus? No final é isso? É apenas isso o que eu consigo dizer? É o que minha voz consegue compor diante da solidão?
Veja: algo parece sincero e se for: fracassei completamente, pois eu queria uma palavra verde que fosse capaz de se apetecer por sua estranheza e solidão.