Um conto de Jonatan Silva
Jonatan Silva é jornalista, crítico literário e escritor. Passou pelas redações da Tribuna do Paraná e Paraná Online. Foi editor da revista Mediação do Colégio Medianeira e, atualmente, escreve regularmente para o jornal Rascunho e para o portal de cultura Escotilha. Colaborou com diversas publicações, entre elas a revista Flaubert e os jornais Cândido e RelevO. É autor dos livros O Estado das coisas (2015) e Histórias mínimas (2019).
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Arbeit Macht Frei
Para Juan Luis Moraza
Há muito que fazer nessa vida além de trabalhar, mas é o trabalho que me persegue como uma sombra, que me dá e me tira o ar e o dinheiro – que me prende na rala ilusão de um cigarro. O trabalho, a bem da verdade, é exatamente como o cigarro. A cada tragada a vida encurta. A cada hora trabalhada também.
Já não podemos mais fumar no escritório entre as pilhas de documentos e processos que se acumulam com culpas e sentenças – em um escritório de advocacia não existe absolvição, alguém sempre precisa pagar a conta. As mesas nos separam – e protegem – como trincheiras. O chefe, que chega sorrateiro como o inimigo, nos deixa um novo despacho – uma ordem, todos sabem – como se fosse um tiro, uma granada pronta a explodir antes que o expediente acabe.
À medida que o volume de papel aumenta a vontade de fumar cresce também. Poderia correr para o banheiro, abrir a janela de uma das cabines e dar alguns tragos, mas uma letargia toma conta do meu corpo: tenciono a perna, estico tudo o que posso e sinto alguma coisa estralar. É a burocratização da vida mundana, a privatização do cotidiano e dos corpos – quando homens e mulheres não são mais donos de si, mas escravos dos seus pecadilhos diários, em geral, banais e industrializados.
Quando alguém pergunta sobre o feriado no próximo mês, um leve alvoroço se alastra entre as mesas. Uns se levantam para buscar café e combinar uma viagem rápida ao litoral. Fecho com força a pasta de relatórios. Sem ninguém ouvir o estrondo silencioso das páginas que se tocam como os lábios dos amantes que se beijam escondidos. O diretor da firma aparece – com o seu cabelo alinhado, o rosto gordo e as roupas em um estilo cafona e desnecessário – e todos se aquietam como se o andar todo fosse mal assombrado.
Atrás de mim, entre persianas que acumulam o pó como um museu da imundice, a janela me separa da praça onde um pai – que caminha com a filha no colo e uma bolsa colorida no braço – não se dá conta que, metros acima da sua cabeça, todo o dia acontece um chacina sistemática, remunerada e cada vez mais distante de acabar.
O telefone, essa pequena trombeta do apocalipse, convulsiona e me toma a atenção. Quando meu rosto volta à mesa, em um giro rápido e mecânico, o barulho cessa. A sua missão estava cumprida e estou novamente direcionado ao trabalho, sem nenhuma distração. Por pouco tempo, é claro – até porque algumas coisas só fazem sentido quando acabam.
Sem pressa, chego ao banheiro e paro em frente ao espelho, antes de bater o ponto – como um peixe que tenta respirar fora d’água –, as olheiras – que refletem a minha imagem como um farol apagado – mostram que já chegamos ao fim da linha.