Um conto de Jorge Luiz Marques de Moraes
Jorge Luiz Marques de Moraes possui graduação em Letras (Língua Portuguesa – Literaturas de Língua Portuguesa) pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Possui Mestrado em Letras (Letras Vernáculas – Literatura Brasileira) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e Doutorado pelo mesmo programa de pós-graduação, sempre sob a orientação da Professora Doutora Elódia Xavier. É professor efetivo titular do Colégio Pedro II. Sua área de estudo é Letras, com ênfase em Literatura Brasileira. Como crítico literário, é autor de As Lacunas do Amor, Personagens Femininas: confinamentos, deslocamentos e Finas Flores: mulheres letristas na canção brasileira. Também é autor de literatura juvenil e organizou, em parceria com a professora Juliana Berlim, o livro TransLiteraturas, em que é abordada a presença de personagens transexuais em textos literários.
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O OLHO AMARELO DO TUCANO
Lembro ainda daqueles primeiros tempos.
Tínhamos nos mudado há poucas semanas para o apartamento novo quando a quarentena sobreveio. Foi um duplo sofrimento.
Durante todo o Carnaval, juntos, tínhamos ficado na velha casa, empacotando objetos, dando fim a móveis e a roupas que não levaríamos. Mal havíamos conseguido ver os compactos dos desfiles das escolas de samba pela TV e, quando saíamos para almoçar no restaurante a quilo em frente, era com indisfarçável inveja que víamos as pessoas fantasiadas pelas calçadas ou esbarrávamos com a vizinha cheia de purpurina no corpo pelas escadas. Mas nos conformávamos: dali a alguns dias estaríamos no novo lar, o sacrifício valeria a pena.
Finalmente: caixas, espumas, sacos. Caminhão, carregadores. O apartamento novo, a vista para o Cristo. Até o cheiro indisfarçável de tinta não era dos mais desagradáveis.
Entretanto, mal deu tempo de terminarmos a mudança. Na semana seguinte, o isolamento social foi decretado. Por sorte, a TV a cabo tinha sido ligada um dia antes. Os toldos nunca foram colocados, até hoje o sol inclemente da tarde invade a sala, desbotando as cores do estofado. O sinteco foi deixado para nunca mais.
Mas eu não posso deixar de confessar: logo no início, eram leves aqueles dias. Era bom não ter de sair de casa para o trabalho, tudo se resolvia ao alcance do laptop para as reuniões online. Que graça ver o filho da Amanda se dependurando ao seu colo para ver os amigos da mãe do outro lado da tela! Era um festival de “ooohhhhs!” e “aaahhhhs!” que a todos encantavam.
A nova rotina trouxe um novo élan ao casamento. Trepávamos muito, várias vezes ao dia. Entre uma call e outra, entre um chamado do chefe dele ou da minha chefe, estávamos sempre grudados. Algumas vezes tive medo de engravidar, nem sempre nos protegíamos. Era um re-conhecimento. Eram boas aquelas semanas.
Pouco a pouco, me acostumava com a rotina dos prédios vizinhos. O bulldog francês que invariavelmente brincava com a menina do sexto andar; o casal de velhos que, pontualmente, às 8 horas, fazia sua caminhada no terraço; as três velhas (seriam irmãs?) que, todas as tardes, sentavam-se em torno da mesa redonda do sétimo andar para jogar baralho, uma delas sempre soltando baforadas pro lado de fora da janela; o rapaz malhado que, só de sunga, corria em volta da piscina da cobertura do prédio ao lado.
Duas vezes por semana, um de nós ia às compras. Segunda ele ia; quinta era a minha vez: pão, sabonete, açougue, lasanha congelada.
Nunca vou me esquecer daquela quinta-feira: máscara na face, sacolas descartáveis nas mãos, a ridícula face shield me transformando numa astronauta. E um recado escrito à caneta na porta do elevador: use máscaras nesse andar ao sair no corredor ou usar a lixeira!
“Foi a mulher do 802”, disse o porteiro, a voz saindo baixo, seja pela máscara que a abafava, seja pelo medo. “Correram com ela às pressas pro hospital, disseram que está na UTI, o teste confirmou, é COVID sim.” Do 802, só conhecia a samambaia que ficava pendurada perto da porta. Mas ter alguém tão perto contaminado me deixou definitivamente assustada. A peste estava chegando mais e mais perto. O elevador. Como prender a respiração por oito andares? E o ventilador, será que não espalhava mais facilmente o vírus por aquele cubículo?
Voltei para casa abrindo a porta da cozinha, como fazia sempre que voltava das compras. Era a hora de higienizar todos os volumes e pacotes, uma atividade irritante que me fazia perder uns bons 40 minutos. Assim que entrei trazendo os pacotes meio desequilibrados em meus braços, notei que algo diferente havia acontecido: meu marido, descalço, dedo indicador sobre os lábios, pedia que eu não fizesse barulho. Em seguida, apontou para a varanda. Lá, equilibrado sobre a grade, um pequeno tucano imóvel, quase peça de escultura, nos observava. Felizmente, a máscara que eu ainda não havia tirado abafou meu grito de espanto e alegria. Um tucano no meio da cidade! Só a quarentena podia nos propiciar aquilo.
Ficamos ali abraçados um bom tempo, sentindo-nos sortudos por aquela visão. A luz da tarde começava a cair, as janelas dos prédios começavam a se iluminar e, imóvel, o tucano parecia nos observar. Ainda ficou um tempo parado e, repentinamente, voou. Ia procurar outras janelas ou árvores robustas que pudessem acolhê-lo, decerto. Só então fui à cozinha lavar as mãos e dar início ao ritual de higienização das compras.
Não demorou muito para que o tucano voltasse. Três dias depois, também num final de tarde, quando saí do escritório para ir à cozinha pegar algo para comer, lá estava ele, empoleirado sobre a grade da varanda, exatamente na mesma posição. Parado. Resolvi não chamar meu marido. Aos poucos, deslizando meus pés, fui tentando me aproximar da varanda. As meias que eu usava me ajudavam. O bicho pareceu não se assustar. Tentei fazer com que meu rosto exprimisse confiança. Sorri.
E cheguei na beira da varanda.
Agora, vendo-o de mais perto, um detalhe me chamou a atenção: o olho dele era totalmente amarelo. Fiquei assustada com aquilo. Seria um tucano cego? Por isso ele ficava o tempo todo imóvel? Mas como se, mesmo sem íris, parecia observar, curioso, a casa recém-descoberta? Não pude averiguar por muito tempo. Assim como da outra vez, de repente, o tucano empinou o corpo e voou, deixando de rastro uma asa preta brilhosa no chão da varanda. Guardei-a comigo, em segredo. Não valia a pena contar ao meu marido.
A quarentena, aos poucos, parecia deixar de existir. Lá fora, os barulhos dos carros, antes rarefeitos, voltavam aos poucos a subir de volume, dia após dia. A paisagem também mudava aos poucos: numa semana, os velhos subitamente pararam de fazer suas caminhadas; na semana seguinte, o homem malhado também desapareceu. A cena mais dramática, porém, foi quando vi uma das velhas chorando compulsivamente na janela e sendo amparada por outra, a das baforadas. E a terceira, onde estava? O que acontecera?
O tucano do olho amarelo agora vinha quase todos os dias nos visitar. Meu marido comprou alpiste e girassol, deixou num pote sobre um vaso na varanda; em vão. A cegueira realmente parecia toldar-lhe totalmente a visão e, mesmo num dia em que, tomada de coragem, estendi o vasilhame para perto de seu bico, ele continuou impassível para logo depois, como de costume, revoar e se afastar até que sua imagem sumisse de nós.
E foi aí, então, que eles começaram a chegar.
Certa manhã, estava numa daquelas intermináveis reuniões on-line quando meu marido chegou à porta do escritório, fazendo sinais. Desliguei a câmera, fingi que minha internet tinha caído e fui atrás dele. Na varanda, não apenas um, mas dois tucanos parados. Teria o segundo vindo atraído pela comida? “Repara o olho dele”, sussurrou meu marido. Eu já tinha notado: a íris opaca, o amarelo dominando todo o globo ocular. Aproximamos o vasilhame com girassol. Não houve reação, embora soubéssemos, de alguma forma, que eles nos observavam.
“Esses bichos são muito estranhos, vamos arrumar um jeito de espantar eles daqui pra eles pararem de voltar”, disse meu marido depois que os tucanos foram embora. Me agarrei com ele e trepamos ali mesmo, no meio da sala, sem nos preocupar com a varanda que nos devassava para a vizinhança.
Essa foi a última vez que o tive dentro de mim.
Na manhã seguinte, ao acordar, ele já não estava mais na cama. Levantei e fui procurá-lo pela casa. Encontrei-o na cozinha, muito vermelho, os pés descalços, tentando fazer um café.“Alguma coisa aconteceu”, ele disse, “não tô me sentindo bem”. Assustada, corri a passar-lhe a mão sobre o rosto. A testa pelava. O termômetro só fez confirmar minhas suspeitas: quase 41 graus. Puxei-o pra cama e fiz com que ele deitasse. Pediu um cobertor e eu lhe dei. Tínhamos antitérmico em casa, ainda bem. Quando ia voltar à cozinha para apanhar água, a revoada na varanda me chamou a atenção. Não eram mais dois tucanos: quatro agora se empoleiravam nas grades. Fiquei tentada a ir espantá-los, mas a pressa para levar o remédio falou mais alto.
Não disse nada para ele, fiz-lhe tomar um remédio e peguei o telefone para pedir ajuda. No serviço on-line do plano de saúde, a atendente repetiu friamente a recomendação estampada no site: apenas casos de falta de ar deviam se dirigir ao hospital sob a pena de infecção em ambiente contaminado. Era duro não ter familiares na cidade. Liguei para a família, no interior, mesmo sabendo que minha gente pouco podia fazer. Da parte dele, os pais já mortos e a única irmã, distante e fria. Telefonei-lhe, mesmo assim: ela pouco ouviu, disse palavras de praxe, “se acalme, isso passa” e, logo a seguir, “estou num call, preciso desligar”. Do outro lado do fone, o silêncio.
Enquanto isso, a cama ensopava de suor, mas, contraditoriamente, a temperatura não baixava. Coloquei-lhe o termômetro mais uma vez: 41.3 graus.
Quando passei pela sala para interfonar ao porteiro e implorar ajuda para levar meu marido ao carro, a imagem dos tucanos chamava atenção. Eram agora em grande número, quase vinte, a maioria ainda nas grades, mas alguns, por falta de espaço, já no chão da varanda. Os olhos amarelos eram comuns a todos eles.
Estanquei. Aquilo já passava dos limites. Esqueci o interfone. Peguei a vassoura e fui espantá-los, balançando-a acima da minha cabeça e gritando: “Xiiii! Fora!”. Nada aconteceu, nenhum deles pareceu sequer tomar conhecimento de mim. O que eram aqueles bichos? Fiquei com medo de bater-lhes com a vassoura: se me atacassem com aqueles longos bicos certamente poderiam me machucar muito. E além do mais, havia algo mais importante a fazer, buscar ajuda.
Foram quatro ou cinco ligações para a portaria. O maldito porteiro não atendia, onde poderia estar? Desesperada, saí mesmo sem máscara e descalça para o corredor, tocando as campainhas dos vizinhos para implorar ajuda. Cheguei mesmo a esmurrar algumas portas. Ninguém atendeu, o prédio parecia fantasma, em contraste com o barulho dos carros lá embaixo que, naquele dia, estava excepcionalmente estridente.
Não havia muito mais o que fazer. Voltei ao apartamento, evitando olhar para a varanda. Fui direto ao quarto, onde ele estava deitado, dormindo, olhos fechados. Troquei rapidamente de roupa, colocando a primeira calça que encontrei no armário. Busquei alguma peça no armário dele para também vesti-lo. Ia ser necessário acordá-lo.
Assim que lhe toquei o braço, me surpreendi com a temperatura tépida, ao mesmo tempo que notei o enrijecimento do membro. Sacudi-o, desesperada. Nenhuma reação. Verifiquei o pulso, o nariz, tentei verificar alguma respiração. Nada. Estava morto.
De joelho, no chão, ao lado da cama, chorei muito e profundamente, nem sei quanto tempo. Depois fechei os olhos, cansada, e cochilei breve. Acordei assustada. Tinha que descer o prédio, tentar encontrar o porteiro sumido ou mesmo bater à porta do síndico. Não sabia o que fazer exatamente, mas tinha certeza de que precisaria de ajuda para notificar a morte à polícia.
E então vi que o tucano, o primeiro deles, só podia ser ele, aguardava ao pé da porta do quarto. Imóvel. Fiquei em pé, assustada. Me encolhi no canto do quarto. Pareceu ser a senha para que os outros, todos, também aparecessem. Tentei espantar-lhes com os braços, joguei objetos na direção deles, nenhum se moveu. Abri a janela, comecei a gritar por socorro, no entanto minha voz era demasiadamente baixa para competir com o barulho cada vez mais alto dos automóveis lá embaixo. Enquanto isso, vi que eles se aproximaram da cama. Numa revoada breve e eficiente, pousaram sobre o corpo do meu marido e, apavorada, vi qual era o intento: revezavam-se em cima do rosto dele, dando-lhes bicadas que, tais como bisturi, perfuravam-lhe a face. Eram bicadas secas, ritmadas e rápidas, às quais meus gritos agudos não eram capazes de abafar.
Quando tudo pareceu acabar, a mesma revoada levou os tucanos embora do apartamento e eu fiquei ali, trêmula e desnorteada, olhando o corpo ferido do meu marido, machucado por patas e bicos. No lugar do globo ocular, dois buracos davam um aspecto hediondo ao rosto que eu tanto amara. Passei a mão nos meus próprios olhos e me surpreendi ao ver que não havia lágrimas.
Pela janela, vi que, pousado no alto de outro prédio, um tucano me observava. Pousei a mão espalmada sobre minha própria testa. Senti a quentura. E vi que, no chão do quarto, restava, solitária, a pena de um tucano.