Um conto de José Amancio
José Amancio (pseudônimo de Wellington Amancio da Silva) é nordestino de Karamaron, nasceu em 1979, no sertão de Alagoas (à moda da caatinga). Formou-se em Pedagogia e em Filosofia. Mestre em Ecologia Humana. Atuou como professor universitário. É fotógrafo, artista visual e performático, multi-instrumentista e arranjador schoenbergeriano. Em 1997 iniciou um projeto literário: escrever alguns versos, contos e outros textos; concluiu alguns livros, mas não conseguiu publicá-los e se deteve por quase duas décadas, em revisões. Está sempre preocupado com a escrita na condição de lida que perfaz a si mesmo e ao mundo derredor. A partir de 2014 são publicados alguns dos seus poemas em revistas literárias especializadas: Revell — Revista de Estudos Literários da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Germina — Revista de Literatura e Arte, Revista Educação — Ung-Ser, Revista Literária Sítio (Portugal), Gazeta da Poesia Inédita (Portugal), Tyrannus Melancholicus, Literatura e Fechadura, Medium. Entre 2016 e 2018, a revista italiana Utsanga publicou uma série de poesias visuais, concretas, assêmicas, e ainda desenhos em técnica mista e escriturações diversas. Do autor, publicou-se, Ontologia e Linguagem (filosofia analítica); Pensar a Indigência com Michel Foucault (filosofia); Elegia da Imperfeição (versos. Delmiro Gouveia-AL: Edições Parresia, 2001); Primeiros poemas soturnos (versos. Delmiro Gouveia-AL: Edições Parresia, 2009); Ulisses e o Timoneiro (versos. Delmiro Gouveia-AL: Edições Parresia, 2014.); Diálogos com Sebastos (teatro/ prosa socrática. Delmiro Gouveia-AL: Edições Parresia, 2015); Epifania Amarela (versos. Delmiro Gouveia-AL: Edições Parresia, 2016); O Quasi-Haikai (versos. Delmiro Gouveia-AL: Edições Parresia, 2017); Distímicos e Extrusivos (verso e prosa, 2ª edição. Delmiro Gouveia-AL: Edições Parresia, 2018.); O Catingueiro (romance. Delmiro Gouveia-AL: Edições Parresia, 2019); Narrativas do Abajur (contos. Delmiro Gouveia-AL: Edições Parresia, 2018); O Reneval (versos. Delmiro Gouveia-AL: Edições Parresia, 2018); O Preço do Pai (romance. Delmiro Gouveia-AL: Edições Parresia, 2019); além de dezenas de artigos científicos em revistas especializadas. Fundador da editora Edições Parresia e da revista O Pardal.
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Do Limbo ao Néon
“Quem poderá conter a vontade de escrever? — se perguntou Ballard —. Tinha ela tudo em mãos. A memória em mãos, o papel implacável, tão implacável de branco que retém o silêncio, e a caneta Bic indefectível, de bocal mordiscado. Possuía um broquel e um escudozinho, e tinha dúvidas, muitas dúvidas…” — Tenta organizar seus pensamentos escrevendo e prossegue — “Ela aponta para mim e, tal como num espelho estranho, me reconheço nela, mas não sou completamente dela. Embora não saiba onde pode haver elo, bifurcação ou distanciamento, não me importo, sigo-a tal como alguém que ao exílio vai. Se ela é mais forte do que eu e me transforma — em silêncio e segundo meus caprichos — também vou modificando-a, enxertando coisas que só eu sei e considero, ornamentando seus cabelos com flores rubras de alusões sem tempo e sem lugar; ornamentando seus cabelos em camadas de frases simples e pessoais, palavras as quais me fixei e que me dão sentido, que me satisfazem, e assim, reconstruímos juntos os nossos votos, porque somente com estas frases, com estas palavras, ela comigo dialoga. E quando por um momento a esqueço, vejo-a depois refletida na pressa das pessoas, no desligamento do ambiente que as circunda. Olho para elas! Vejo ainda outras pessoas e outras, agora em silhuetas, por detrás do vidro escuro de uma loja, passando ao largo, e não experimento nada de discreto nisso. Imagino seus interesses durarem até o momento em que estão ali, distraídas e indefensas, e que depois perdem todo interesse, e por qualquer outra coisa! Sem jeito, apresso-me em desviar meu rosto, em direcionar meu foco para outro lugar e observo ainda outras pessoas que, por não terem compromisso algum com as demandas do dia, têm uma leveza enorme no semblante — que denomino ‘ausência de pensamentos’ e as invejo por isso — todavia, no meio destas não encontro Marta. Nesse rito, me sinto culpado pela investida súbita de um pensamento que afirma que há coisas mais sérias do que as pessoas — e nem me acho egoísta, mas simplesmente o aceito pacificamente. E aquela nuvem cinza, as pessoas, repleta de desejos aquosos, nem sabem que existo. Também no meio destas não encontro Marta. E as copas dos Ipês Amarelos pendendo ao vento úmido de março, pendendo de um lado para outro, brincando com aquela potência de quem tem um papel importante no teatro da vida, e os Ipês, a um só tempo, igual à criança pequena, se põem a dançar aos primeiros sons, aos primeiros ventos. No meio destas não encontro Marta. Se há coisas mais sérias do que as pessoas, lembro-me dos pombos. Lembro-me que arrulham nos telhados — e não há nesta vida algo mais sério! Quando exaltam-se em asas claras sobre o tempo e voam contra o tempo, quando em asas que se erguem como um réquiem e voam… Não há nesta vida algo mais sério! Volto ao meu mundo sem Marta e sinto-me impactado pelas coisas enfadonhas que me cercam: noto os transeuntes tais como escravos de um rei antigo e absoluto, de um Cronos em seu monte Pélion — e aí Marta nunca estaria, eu sei. E estes, em passos largos e sincrônicos, num badalar repetitivo de braços e tiques nervosos sutis, desaparecem através da névoa da memória, num vão sem nome, após a esquina. Eu, sem nada a fazer, me detenho em algum bar, olhando impressionado e “distanciado”, a coisa mais peculiar do mundo, que é a normalidade, e que me assusta. E, enquanto passam os transeuntes, me divirto criando histórias banais e inofensivas ao seu respeito, como fazíamos tradicionalmente, eu e Marta, próximos ao chafariz e ao seu anjo barroco — eles, sem saberem, debruçados em seus afazeres, vão enriquecendo meu mundo de personagens passageiros e insignificantes, e escrevo e escrevo. Quanto a mim, tenho trinta e dois anos de idade, e é só o que sei sobre mim, porque a matemática não falha, disso sei. Estou afastado do emprego há oito meses, porque os “especialistas” diagnosticaram-me como “porta-dor”, sim, tal como portador de algum distúrbio mental e assim o disseram antes, quando em nosso meio não encontrávamos a nossa querida Marta. Recomendaram-me paciência. Recomendaram-me prudência e discernimento. Recomendaram-me não escrever mais (e não imagino nada que possa estancar o ímpeto da escrita — a loucura seria uma espécie de inflamável, vai saber…). Por isso mesmo, não me sobra outra opção senão escrever para que exista, de modo que possa entender esta existência; resta-me criar personagens para que fruam uma vida social ao meu gosto, e importa ‘derramar algo do meu sangue’, como disse o poeta, sim, derramar algo de mim sobre eles e por sobre a folha branca, ‘para que me liberte’ e nos liberte. E sei que estas frases são já uns clichés desavergonhados e não me importo — estas frases têm o caráter sedativo, curativo. Os que menos doem são meus clichês, e o que não é um cliché? São nove horas da manhã e sem Marta, e essa ausência se repete e se estampa nas paredes, nas lombadas dos livros, no lustre, no espelho, neste café, na nódoa dos meus olhos, nessa janela que comprime as árvores, e se afigura em cada uma destas letras. Manhã nublada, garoa pequena. Há um burburinho que emana do fundo não sei de onde — talvez dos meus ouvidos. Saio à pracinha arborizadíssima a minha frente. Ali perto, uma senhora me olha momentaneamente, em meio à sua pressa de despachar dois ou três que se atêm às suas frutas. Tira de um dos bolsos do vertido escuro umas moedas e algumas caem no chão, tilintando — todos olham. Alguém ajuda a recolher suas moedas. Antes de receberem o troco em moedas, aqueles se entreolham e vão-se com suas sacolas de plástico, todavia, no meio destas pessoas não encontro Marta. Por que escrevo tais detalhes? Em buscaflita das Epifanias. Eu necessito das Epifanias. É o que me restou? e não me importo com o que me restou. Do outro lado, um esmoler menino me olha com candura e estende as mãos. Tenho algumas cédulas no bolso, mas dou-lhe apenas moedas, as de menor valor. Ele nem agradece dizendo “Deus lhe pague”. E não me importo, porque não lhe dei nada. Acho que ninguém me deve nada nesta vida. Fico pensando no sentido desta pequena frase: Deus lhe pague… É quase uma metáfora da pobreza ou da riqueza (dependendo do ponto de vista). Uma justificação metafísica, como se dissesse para mim: ‘moço, não tenho dinheiro e, se você me der algum, automaticamente não lhe deverei nada, pois, se alguém há de lhe pagar um dia, parará’. Um dia! Mas, tenho pouco a falar sobre essas coisas, porque mesmo que se tenha em cofres, jamais se possui, deveras. Eis mais dos meus clichês prediletos. Um mês trabalhado é o preço que se paga para que ficasse com o logro por um momento no bolso. Um mês trabalhado é o preço de carregá-lo até que se esgote nas mãos dos nossos credores. Eu e Marta trabalhávamos e a casa ia bem. Todavia, estas cifras se enchem de zeros à esquerda: o trabalho, o salário, as compras, as contas, a casa, a ausência de Marta. Não me importo com o dinheiro; meus credores, sim. Mas entre meus credores Marta não estaria. No bar, tomei o café e saí. Não havia muita coisa para se fazer num bar de uma cidade pequena e inútil. Eu também não oferecia qualquer serventia para aquela cidade pequena e inútil, porque também a alma era pequena e inútil sem Marta, eu somente escrevia. Ora, me detinha na escrita das coisas inexistentes, e esse labor possibilitava-me sentir indefinidamente uma gama quase infinita de sensações e essa gama estendia-se do limbo ao neon — reforço! a contemplação me tornava inútil para aquela cidade, mas não para a minha própria inutilidade. Sou um homem mui rico! Sou uma mulher muito rica. Eu sou uma versão de ser nova e muito rica. Por que escrever? Por que escrever? Diz-se que há um tipo de devaneio muito característico (o único sentimento que contém na dor o gozo) inerente somente aos escritores — esses seres perturbados e egoístas, convencidos de que dizem algo importante, mas que suas perturbações não os tornam exclusivos. Todavia sou um caso à parte, pois, eu mesmo sei que nunca soube escrever após um ponto final. E se escrevo agora o faço apenas por Marta, e parassempre! Rasgo meus papeis… apenas me exercito prazerosamente, durante o percurso da escrita. Lembro-me que, num fôlego incrível, disse o grande poeta português Theodoro Armoriano: No auge da produção ficcional de alguns, esta cresce até explodir, mas antes disso, e em uma espécie de esvaziamento estilístico, eles retinham-na até o último momento de um paroxismo que perdurava indefinidamente, até o instante de antes do ponto final, onde ela, a ficcionalidade, às vezes não vale nem um vintém. — disse baixinho, em voz solene, e continuou escrevendo. “Este devaneio pungente, de bico de pena, era uma peça caríssima de ourives, lapidada no âmago do ser e guardada tal como quem guarda uma pérola de grande valor. No entanto, verdadeiramente é ouro de tolo, necessário para escapar de alguma coisa, para alcançar algum fim que desconheço, pois tudo passa e passa logo; somente Marta não passa, contra a folha que amarelece e a tinta das letras esvaece — se advém as cãs, as dores de toda sorte, que chegam-se-nos para fazer-nos passar da altivez, e ainda, se depois de fazer jazer o seu autor, o que resta é ausência sentida, e é quase impossível descrevê-la, e quem entendê-la-á? Onde é que eu estava mesmo? Estava falando da cidade? Não. Não estava. Esqueçamos da cidade pequena com os seus personagens. Falemos da escrita ainda não realizada, sobretudo da inutilidade do escrever. Eu acho que posso dizer que a percepção da minha inutilidade de escrever é um sentimento antiquíssimo, surgido no momento mesmo quando o homem pôs-se a fazer com as próprias mãos o seu fado — sim, todo fado é e se alimenta de mentiras, ou para ser mais eufemístico, a ficção de todo fato tem gosto de vida, mas de uma vida sem Marta. Esqueçamos por um momento toda essa coisa da escrita. O motivo da minha queda foi Marta Perddi, mulher que hoje está distante de mim. Durante exatamente seis anos e três meses estivemos juntos. Construímos uma torre de promessas e impressões que depois ruiu. E foi assim — eu possuía alguma potência em agradá-la naquilo que é transitório, mas era incapaz de dar-lhe meu amor; — escrevíamos juntos, e isto era o que nos bastava. Desde muito, numa escala imaginária, compreendíamos que o amor estava muito abaixo das coisas que têm gosto intenso. O Sabor quando encorpado não tem juízo de valor. Ora, arriscávamos dizer que tudo isso havia sido muito bom, ou muito ruim, nunca um meio termo, e é assim que permanece, causando um abalo em meu âmago — gostávamos destes sabores e não o esquecíamos (pensávamos eu e Marta). E não me importava mais se ela chorava e sofria; se estava, ou não estava bem no trabalho; se havia outro ombro amigo, mais “anatômico”. Consigo me lembrar que até onde fomos, ficamos fascinados, por causa das nossas experiências afetivas, alteradas pelo Sabor, e sobre tudo isso conversávamos longamente, como se quiséssemos acondicionar o indômito em pacotes, como se estivéssemos assentados com Platão e Sócrates. No começo, ela quis me amar, porém — tal como as mulheres já amam naturalmente e em indefinidos modos —, para amar, ela cedeu às tendências dos meus caprichos. E ela dizia: amor é sempre dado; sabor às vezes tem que ser tomado, mas ambos são irresistíveis. Até anoitei aqui. E ela dizia: penso que não provamos nosso amor com palavras; mesmo a demonstração do amor no dia-a-dia não é suficiente. Uma verdadeira prova de amor custa uma vida inteira. Que pena que essas coisas todas acabam se transformando em clichês… Mas eu não concordava muito com o que dizia, muito embora me permitisse ser o que ela quisesse, dentro do que ela entendia por “amor”, e até me transformava para que se sentisse feliz. E num bilhete para mim, o último bilhete, Marta escreveu muitas palavras, mas eu guardei apenas estas, que amar é assumir cônscio uma maneira de viver, em que o outro é sempre uma grande novidade, todos os dias. E a paz desse amor não se entedia jamais. Nunca compreendi bem essas coisas, e acho que é por isso escrevo”.