Um conto de Juçara Naccioli
Juçara Naccioli é graduada em Letras – Literatura e Especialista em Teoria e Prática da Língua Portuguesa, ambos pela Universidade Federal de Mato Grosso. Atua como professora de Linguagem há 23 anos. Poeta integrante do Coletivo Literário Maria Taquara – Mulherio das Letras/MT e Coletivo Parágrafo Cerrado, pelo qual faz leituras de cenas de peças teatrais. Atriz, professora de Oratória e expressão pessoal. Foi finalista no concurso literário Off-Flip 2019 na categoria poesia.
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⅓ DE MISERICÓRDIA
Ainda que parasse naquele momento, não chegaria a tempo. Então continuou o mormurejo. Estava com dificuldades na recitação. Em certas partes a voz ficava embargada. Quando isso acontecia, precisava parar, respirar profundamente para conseguir continuar. O alarme do relógio disparou novamente. Tinha que ir, mas optou por continuar o que estava fazendo.
Patativa era a sétima filha de Seu Doca e Dona Catu. Na pequena cidade de Porteiras do céu. O orgulho da família era ter os filhos pelo menos cinco dias da semana dentro da igreja. Seu Doca era um homem alto, forte, cabelos e barba bem cuidados, de fala mansa e uma certa singeleza no olhar, porém, que não se enganassem aqueles que viam em Seu Doca temperamento tão suave quanto os traços de doçura que lhe desenhavam o rosto. Sua pele era tão preta que ao sol reluzia um brilho singular. D. Catu era beata fervorosa e dedicada. De todas as reclamações que alguém pudesse ter contra ela, não lhe caberia o descuido com a igreja. Diferente de seu Doca, era de média estatura, magra e de silhueta encantadora, mesmo depois de todas as gestações. Os cabelos eram compridos, macios e cheirosos, motivo pelo qual seu Doca, deslumbrado, muitas vezes se dava a honra de penteá-los. Os cabelos de D. Catu pareciam um abundante novelo de lã desfiado, por isso, viviam presos em coque pouco acima da nuca. A contragosto de seu esposo. Era dona de uma pele preta que tinha um tom aveludado. Sobre seu rosto uma atmosfera de seriedade e honradez.
Há pelo menos 8 meses D. Catu usava véu preto, igualmente as vestes. Depois da morte do seu querido Doca, ela usaria a cor até o dia da sua partida para o mundo das almas eternas. Herança de família, amém! Seu Doca morreu de infarto fuminante dentro da igreja bem em frente à sacristia na presença de sua digníssima e amada esposa e seu confidente, Padre Feliciano. Não deu tempo de despedir-se. Naquele momento, a dor devastadora do infarto que acometia coração e corpo do homem também tomou o peito de D. Catu, quando se deu conta que nunca mais veria seu esposo. Soltou um grito de pavor ao ver seu companheiro se afogando em agonia, com um olhar que misturava medo e tristeza. Partida dolorosa. Perdera o Amor.
A cidade enlutada compadeceu-se. O casal distinto e respeitoso, talvez o único de Porteiras do céu, havia se diluído. Com o passar do tempo perceberam que a máxima que diz que ‘o que Deus une ninguém separa’ era de fato uma verdade. Embora sozinha, quando D. Catu andava pelas ruas, e principalmente no interior da igreja, a impressão que todos tinham era que o finado estava bem junto a ela, como uma sombra. Como sempre foi. Os filhos também sentiam isso.
Novamente o alarme do relógio disparou. Preferiu ficar e terminar o que tinha começado. Ia desligar o alarme. Que esperasse mais um pouco, por mais que prezasse pela pontualidade o que ela fazia naquela hora era mais importante que estar na presença dele.
Desde a morte do marido, D. Catu decidiu que o único terço rezado pela família seria o da misericódia. Para isso, duas vezes por dia a viúva reunia os filhos para ensiná-los a rezar a ladainha. É certo que os filhos mais velhos já imbuídos na devoção religiosa católica achavam justa e louvável a ordem da mãe, mesmo sem saber o porquê daquele terço. Os outros, devida a pouca idade, nem se importaram com a escolha. O que não era o caso da caçula, que o que lhe adornava era o medo. Patativa demorou a aprender a rezá-lo. Tinha medo dele, tinha mais medo da mãe que ao tomar o terço individual de cada um dos filhos, olhava para ela profundamente e com certa rejeição que chegava a beirar a raiva. Tanto tempo repetindo e você não decorou ainda! Nessas horas Patativa pensava no pai. A saudade lhe tomava o coração, com o sentimento, uma vontade incontrolável de chorar. A esta sufacava para não apanhar. Por fim, todos os filhos, do mais velho ao mais novo, aprenderam o tal terço. D. Catu sentia que os filhos poderiam viver sem ela a partir de então, pois estavam amparados por todas as preces que ela havia coletado durante a vida.
A supérstite sentia um íntimo desejo de sumir e nunca mais aparecer. Fugir deixando tudo pra trás. Qualquer coisa que findasse aquela vontade de não viver, não estar, não ser. Quis desistir dos cuidados com a igreja, contudo, Pe. Feliciano não aceitou. O homem Santo convenceu-lhe de que aquele templo era de todos, inclusive dela e dos filhos, ainda mais agora que as crianças não tinham a presença do pai. Mesmo a contragosto, confusa e sem a mínima vontade de continuar naquele lugar, Catu cedeu. As coisas acontecem quando e como têm que acontecer, minha filha. Cabe a você aceitar os desígnos de Deus.
Dobrava as poucas roupas que tinha, de maneira a virar bolinhas de pano bem pequenas como forma de diminuir o volume da sacola onde as guardava. Não queria mais ficar naquela casa e menos ainda naquela cidadela. Queria pedir conselho a Pe. Feliciano. Melhor não. Já sabia o conselho que lhe daria, e com ele o devido e doloroso castigo por ficar pensando o que não presta. Abriu a janela, olhou a lua, sentiu o vento fresco, sentiu o silêncio, ao longo da rua, escuridão. Fique! Pulou a janela e foi embora.
Era madrugada e o mato fechado lhe pregava tantos sustos que uma hora decidiu sentar a beira de uma árvore e deixar que os bichos lhe devorassem. Olhou a lua, pensou em Seu Doca e encorajou-se. Se tivesse que ser engolida pelos bichos, que fosse enquanto seguia para a capital, que fosse lutando. Em um abraço, apertava a trouxa de poucas roupas. Corria, parava, retomava o fôlego e voltava a correr. Poderia ter trazido uma moringa com água. O trajeto era longo. Correra tanto e pelo que podia perceber não estava nem perto da pista onde passavam os carros. Volte! Ouvia a voz dele. Patativa queria era chegar bem cedinho na capital. Já tinha decorado o trajeto e a parada do ônibus nas poucas vezes que foi passear com os pais. Era só seguir. Estava com fome e sede. Lembrou do bolinho de milho que D. Catu fazia. Ainda lhe restava um pouco de medo. Para acabar com ele rezou o terço da misericórdia com força e fé. Não tinha mais medo do terço. Não imaginava que a pé demorasse tanto. Melhor que jogasse o chinelo fora, já que não protegiam os peś das farpas, pedras e do barro vermelho. Conversava com o pai e contava-lhe tudo o que tinha no coração. Porque queria fugir para a cidade grande. Não queria relembrar o passado, falava apenas sobre o futuro. Não tinha medo da capital. O passado dói, por isso, é melhor que fique onde está. A capital era tão bonita. As pessoas eram tão bonitas. Ia crescer e ser moça trabalhadeira. A cidade pequena era triste. Ela queria vestir vestidos bonitos, sandálias com saltos. Um desejo grande de passar ruge nas bochechas e batom carmim na boca. D. Catu nunca deixaria que fizesse isso. Volte pra casa! O passado que fique onde está. O futuro que apague a dor.
O alarme tocou mais uma vez. Por desencargo de consciência, resolveu, naquela hora, que não o desligaria. Já tinha terminado o terço da misericórdia e estava vagando em pensamentos de outros tempos. Como pode uma pessoa se perder tantas vezes na recitação de um terço que aprendeu ainda menina. Gaguejava, esquecia, recomeçava, errava. Como pode?
Já estava pronta, passou batom carmim, retocou o ruge, pegou a bolsa colocou nela a pequena bíblia e enrolou o terço no pulso, agitou o cabelo crespo. Saiu, trancou a porta da casa, o corpo alto e esguio tinha a mesma postura de soberania da mãe, porém, herdara a docilidade do pai. Mas que não se enganem aqueles que acham que Patativa tivesse temperamento tão suave quanto os traços de doçura que lhe desenhavam o rosto. Era a elegância em pessoa. De todas as coisas que havia dito ao pai que conquistaria faltava-lhe pouco.
Ao chegar ao apartamento, tocou a campanhia. A porta se abriu e antes que o amante autorizasse sua entrada olhou para ela da cabeça aos pés com olhar de devoção. A mulher que lhe transmitia a candura das santas castas ganhara dele um codinome que cabia somente aos dois. Sentia verdadeira loucura por ela. O amante olhou o terço que carregava no pulso. Quando vai tirar isso, Patativa? Só a chamava pelo nome quando era algo sério. Ela sorriu e ele a puxou pela cintura. O senhor a beijava com tanta força e descuido que parecia um animal a atacar a presa. Patativa mantinha-se doce em meio ao doloroso carinho. O senhor era só lúbricos beijos. Já lhe esperavam as champanhas e as frutas de sua preferência. A cama com lençóis brancos era decorada com pétalas de rosas também brancas. Embebidos em lacividade, amantes andavam entrelaçados, corpos se esfregando, beijos, mamilos, membros, mãos, roupas tiradas e jogadas a esmo. No centro da cama lhe esperava um maço grosso de dinheiro em notas de alto valor. Ao pé da cama ele a solta para que a mulher possa pegar o dinheiro. Já não precisava contar, pois confiava nele. Nunca foi enganada quanto ao valor que exigia. Guardou na bolsa. Em fração de um minuto, Patativa lembrou de todos os encontros com ele e de todo o retorno material que esses encontros lhe proporcionaram.
Eles aconteciam a cada quinze dias, ou uma vez por mês, o tempo que fosse suficiente para que sumissem as manchas deixadas pelo corpo. Patativa deitou-se nua na cama. Ele se acomodou por cima dela e retomou os beijos. Esfregava seu membro no corpo preto. Delicadamente a moça fez o seu papel. A sabedoria da deusa e a ignorância do bárbaro, ela sempre vencia. O que o encantava nela era que não se deixava domar por nada. Durante muitos anos, fez o que ele quis, depois de um certo tempo só fazia o que ela queria e não adiantava dizer que não. Eram de escolha dela todas as posições no coito. Como um castigo, uma penitência, ele não tinha mais direito de opinar.
Saciados os desejos pecaminosos da carne e com a efervescência ainda dentro das entranhas, de corpo suado e ofegante, sujo pelos viscos do gozo, escanchou-se sobre ela e deu-lhe um forte tapa no rosto, desferiu tantos golpes quanto aguentou o corpo cansado pela idade. Negrinha ordinária. Os sentimentos que tinha por aquele senhor eram os mesmos desde sempre: nojo e raiva. Eu odeio você, maldita. Ela não reagia. Nojo de você. A mulher não reagia aos ataques. Ódio dessa sua carne preta. Batia de tal forma que não lhe escorria uma gota de sangue nem do corpo nem do rosto. Você é o próprio pecado entranhado na carne. Recebia os golpes e contava mentalmente os segundos para as agressões acabarem. Ao término da covardia, saia de cima dela, deitava-se na cama ofegante. Esperava um pouco para reestabelecer o fôlego e as forças e como de costume estirava o braço para pegar na mesinha ao lado uma carteira de cigarro e uma taça de vinho, única bebida que se dedicava a beber, a ela entregava uma taça de champanha. Puxava da gaveta uma pequena bolsa e dela tirava outro maço de dinheiro. Sempre em notas de valor graúdo. Eram muitas. Era exigência dela.
Situação bem diferente de outros tempos quando ele não a espancava e lhe pagava com docinhos. Uma miséria de docinhos. Agora, na capital, as arrecadações eram maiores. Enquanto o amante tomava banho, ela se recuperava. Não derramava uma lágrima sequer. Nunca. Era um filme que se repetia há anos. Pe. Feliciano chegou na cidadezinha com seus 48 anos e trazia consigo um único desejo, de ver todos daquela cidadezinha salvos dos pecados terrenos, por vontade, honra e glória do Altíssimo. Pelo menos era o discurso que ele carregava. Vim contribuir com a salvação da cidade de Porteiras do céu. De pele muito branca e com forte sotaque italiano atendia a todos nas suas necessidades.
Ele retornou do banho, novamente deitou-se ao lado da sua amante. A mulher levantou o braço e ordenou que tirasse o terço do seu pulso. Ele levou um susto, não esperava aquela ordem. Assim ele fez. Após tantos anos o seu pedido foi atendido. Virou-se para jogar o acessório sagrado e bento no lixo. Ela não merecia usá-lo. Ao lixo: terço e dignidade. Você não precisa usá-lo, Patativa. Disse enquanto retornava à cama no que foi pego de surpresa por trás. Totalmente entregue às carícias da mulher, nem percebeu o momento em que foi desferido sobre seu peito o primeiro golpe de canivete. Golpes atingiram todo o corpo velho. Não deu um grito sequer. Apenas os olhos arregalados incrédulos quanto a ação do seu grande amor. Sem vida, teve seus pulsos unidos pelo terço e as mãos ajuntadas pelo atravessamento do canivete, como quem pedisse misericórdia por todos os pecados da vida.
Patativa chegou na casa da mãe. Estava bem diferente de quando ela foi embora de Porteiras. O suporte financeiro que ela dera à família durante os anos proporcionou o conforto que todos mereciam. Recebida pelo irmão mais velho, tomou ciência do estado de saúde da mãe e das poucas horas que ainda lhe restavam. Apesar da distância, os irmãos e o próprio Feliciano lhe inteiravam da situação dos seus.
A anosa não a reconheceu de imediato. Demorou um certo tempo até que sua memória se acendesse. Patativa se aproximou da mãe e pediu-lhe a benção. D. Catu reconheceu-lhe pelos olhos de doçura, embora todo o corpo estivesse diferente daquela época. O olhar da mãe dizia-lhe tudo o que ela já esperava ouvir, mesmo estando naquela condição de demência. Porque você veio me ver só agora? Patativa não quis responder a essa pergunta, pois a mãe tinha a resposta. A senhora está fraca, não se canse, mamãe. Os olhos da mãe marejaram. Me perdoe, Benedito, meu filho, por tudo o que eu fiz para você. Perdão. Eu fui muito ruim. Patativa deixou que as lágrimas escorressem pelo próprio rosto sem receio de qualquer julgamento que pudesse surgir ali. Respirou fundo. Mamãe, eu não sou mais o seu Benedito, meu nome agora é Patativa. A genitora, agora de olhar perdido na paisagem criada pelos devaneios da mente adoecida, mudara o semblante e uma tristeza profunda e aparente tomou conta dela. Patativa é passarinho que não tem cor bonita, de cantiga triste, solitário. Você quer ser patativa mesmo? Benedito é tão lindo. Patativa acariciava o rosto da mãe com o carinho que nunca imaginou que pudesse ter por ela. O tempo é realmente senhor de todas as coisas. Patativa, você me perdoa? A culpa foi minha, mas não quis matar nem seu pai e nem Benedito de desgosto. Todo dia o Padre me chamava e se eu não fosse…
Patativa levou um choque, não esperava que a mãe podesse relembrar aquele dia de horror. Ajoelhou-se diante da matrigestora e chorou. Um choro longo, copioso e doloroso. Entendia muito bem o que aconteceu na sacristia no dia da morte do pai, afinal, estava junto com ele quando viu o ato. Tinha conhecimento das causas que levaram sua mãe a se submeter à arbitrariedade do sacerdote. A angústia que guardara durante os anos que se arrastaram havia chegado ao fim. Não precisa pedir perdão, mãe, a culpa não foi sua. Mas, se o meu perdão lhe trouxer paz, saiba que eu a perdoei há muito tempo. Patativa afaga a cabeça da mãe. Esqueça aquele dia. A genitora lembrou do terço que deu à filha quando criança. Ainda existe? Dei um para cada filho, pra proteger vocês por onde andassem. Com um nó apertado na garganta, a jovem mulher respondeu que havia perdido, mas que foi com ele que encontrou força nos dias de grande sofrimento.
Patativa deixou a mãe e os irmãos para trás e voltou para casa. Fervorosamente, pedia ao Sagrado que, da sua infinita misericórdia, lhe fosse concedido um terço dela, para manter-se firme no mundo e pagar as dívidas que carregava.
Fernanda maluf
Fiquei sEm folego. Que hIstoria, juçara. Eu Preferiria que fosse aPEnas ficçÃo, mas sei que é muitO rEal pelos RECÔNDITOS do brasil.
Jade rainho
Senti o mesmo que fernanda. por vezes me vi respirando surpresa e em choque. realidade estarrecedora e ao mesmo tempo tão comum. parabéns pela força da escrita e denúncia.