Um conto de Júlio Castelo Branco
Júlio Castelo Branco nasceu em Teresina PI em 1974. Há 18 anos reside em Brasília. É graduado em Letras Português e em Pedagogia, e atualmente é professor da Secretaria de Educação do DF. Tem na literatura a sua grande paixão. Machado de Assis, Dostoiévski, Kafka e Camus são algumas das influências que o impulsionam a percorrer os caminhos instigantes da escrita. Em 2014 publicou o seu primeiro romance No Centro de Tudo. O diário de um derrotado. Livro que talvez não reflita a presença desses mestres, mas certamente reflete uma busca, incansável, pela boa literatura.
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Numa cidade qualquer
Se o pé da senhora não tivesse tocado levemente o seu, ele não teria acordado. Sem nenhum interesse, embalado porém pelos leves arranques do ônibus no trânsito que não se mexia, observou rapidamente a mulher, e decidiu cochilar. Como o veículo estava lotado e tantos ali enfrentavam, espremidos como sardinhas num espaço que não parecia possível, a mesma situação, achou melhor esquecer os bons hábitos e esquecer também aquela patética atitude que talvez o fizesse feliz. Mas entre todos que caíam sobre ele no ônibus – e talvez na cidade, mesmo no país, e queria dizer que certamente no mundo – e que não viviam, naquele exato momento, a certeza de uma esquecida educação, não duvidava que ali era o único que não podia ser o que foi um dia. Se realmente se atrevesse a ser. De repente a cabeça pesou, como tinha de ser, e fez com que seu corpo – “tão jovem ainda, meu Deus!”, dirá sua mãe lá do outro lado do país – se acomodasse tortamente na cadeira e aguardasse o fim daquela viagem insuportável.
Mas a verdade é que não conseguiria mais cochilar, não via necessidade – mesmo assim manteve os olhos fechados para não os ver – de ignorar aquela gente que nem em mil anos saberia que um dia ele fora alguém educado e quem sabe mesmo digno. Hoje o trabalho ainda o tinha. Um contentamento insignificante caiu sobre si ao se dar conta disso; porém, apagou-o da cabeça tão rápido quanto a freada seguinte. Pro inferno o trabalho! Pro inferno as pessoas que nunca saberão que ele fora um homem gentil e cheio de sonhos, e principalmente, pro inferno, aquela enormidade de vida, dessa gente imbecil, ainda por vir! Naquele momento, encolhido, cerrando os olhos tão fortemente que tinha medo de que a dor intrusa e juíza de repente aparecesse em seu crânio, sentiu uma vontade enorme de descer ali mesmo, em meio aos carros e tudo, que quase se pôs a fazer – firmou impacientemente os pés como para um impulso de liberdade – livrando-se porém, desse desejo, graças ao amontoado de pessoas que bloqueavam seus passos e obviamente a sua saída, e claro, devido à certeza, ao se ver liberto do ônibus, de saber que tudo ali já estava parado e vencido. Estava preso, e a mulher que então se afastara e dera lugar a um homem gordo e feio e que suava a cântaros quase em sua cabeça, não tinha culpa, obviamente.
Saíra de casa às sete da manhã, já eram sete e trinta da noite, e de fato, poderia aguentar muito mais. Acontece que um sopro ardente, um calor sufocante atingiu o seu corpo, cozinhando-o sem brisa naquela panela cheia de gente ansiosa por um descanso que tardava a chegar. Como a escuridão não amenizava o desconforto repentino; como a luz que sempre almejou – tão perto ainda! – e que se apagou num dia simples, comum – “você está bem”, perguntou o gerente, “o que aconteceu?” – não poderia mais ser ligada, abriu os olhos, o gordo ainda não havia descido, e abriu também a janela do veículo. Uma brisa suave, mas quase inexistente por causa de tanto outdoor, dos carros que não seguiam, do trânsito curto, mas inequívoco, roçou como uma mão angelical o seu rosto. Lembrou assim da mão da mãe, da pele calejada que tocou tristemente sua face há cinco anos desejando toda sorte naquele lugar – “tão jovem, meu Deus!” o que adianta pensar, perguntava-se – que lhe tomava o filho. De repente viu um pombo cortar entre o amontoado de carros na pista escura. Voava baixo, em ziguezague, passando pertinho mesmo de sua janela, como a lhe dizer que não era só ele que se encontrava confuso sem saber ao certo o caminho. Um pequeno alívio invade seu peito; um instante singelo, puro, apagando-se, porém, veloz como veio, esse instante, graças ao gordo que o espreme quando alguém resolve descer.
A porta do ônibus é aberta – uma hora e meia depois? Duas?! Não sabia – expelindo uma brisa, como é insignificante cortar esses poucos degraus, pensou, que quase o fez rejuvenescer. Sabia agora que faltava pouco para terminar. Se continuasse calmo, sem nenhum desejo intrometido que viesse arrancar-lhe o alívio que ao descer sentiu, quem sabe, o que era certo acabaria bem. Viu a distância conhecida, e não quis calcular, como tantas vezes pensou e nunca o fez, uma rota diferente. Atravessaria aquela feira montada e já morta e que ainda não fora limpa pelos garis. Ao caminhar e cortar as barracas entregues a sua triste solidão achou sim que poderia ter feito diferente; que ao menos uma vez, depois de repetido inúmeras vezes, o enfadonho percurso, deveria ter dito, “eu posso”, e ter seguido à margem das malditas barracas. Parou sem querer, pois outro desgosto chamou a sua atenção. O peixe sob seu pé foi esmagado sem entender o que ambos faziam ali. Viu que era pequeno, e que os olhos, grudados em sua sola, emergiam para olhá-lo enquanto as pernas firmavam um malabarismo de apoio. Mas ciente de que não teve culpa; tendo a maior certeza que um homem já teve – como é fácil o bom ar se esvair, meu Deus – que aqueles olhos há muito estavam mortos, abaixou pesadamente o pé que encarou com nojo, e o esfregou sem piedade no chão. Não havia mais brisa. Algo repugnante penetrou em sua narina incitando-o a apressar os passos.
Minutos depois viu o prédio. Viu também que a padaria, fixada sob o amontoado de apartamentos minúsculos, ainda estava aberta. Atravessou a rua sem ligar para o pão. O pão não lhe faria falta naquela noite abafada que demorava a passar como os carros que engoliram a pomba e não ligaram para o seu corpo frágil e puro. Rodou a chave como vinha fazendo desde a notícia, e esqueceu a porta ao tomar as escadas, degraus bem mais difíceis, pensou, que vagarosamente com um baque se fechou outra vez. Sem perceber que o tapete da porta não estava onde deixou pela manhã – ficara enrolado num canto qualquer sem que a faxineira se desse conta disso – entrou. Salvo, finalmente. Mesmo assim o ar continuava pesado; mesmo dentro de casa, guardado pelas estreitas paredes do apartamento minúsculo e simples, nem a segurança tão íntima fora capaz de confortá-lo, de amenizar aquela triste realidade que até o momento só ele sentia. Tirou o uniforme da loja de móveis – durabilidade e prazer, era o slogan que marcava o seu peito – e o jogou na poltrona escorada à parede. Depois se livrou da calça, que sem um tratamento melhor que o do uniforme ficou espalhada no chão. Pegou o maço de cigarros no balcão que separava sala e cozinha e invadiu a varanda mal iluminada que dava para a feira que há muito havia morrido. Escorado à varanda, seguindo a rota indefinida da fumaça que aos poucos o deixava como os antigos e bons pensamentos, quis imaginar que nada havia mudado – devia ter levado os cigarros para o trabalho; o que adiantava isso agora? –, ou que nada se transformara nesse mundo surpreendentemente ruim. Como uma estrela cadente ou um prêmio até então inesperado, um frio lhe atravessa subitamente o corpo. Achou que era melhor entrar, mas ao invés disso, puxou das entranhas um último trago, atirando depois o cigarro o mais distante possível, e se apoiou ainda mais na varanda.
Era mais uma noite em que a cidade morria sob os seus olhos. O mormaço se fora, restou porém a mórbida noite enterrada pelas pessoas que se apagariam para sempre e… o envelope na mesinha da sala. “Tudo bem”, lembra de dizer ao gerente que tinha uma vida perfeita – uma menina e um menino… ou duas meninas? Ele mostrou um dia feliz. Daí sentiu em seu braço a mão rechonchuda e oleosa que o arrastou delicadamente na intenção de esconder a pedra que caiu sobre a sua rotina, e sentiu também os olhares da santa bondade, amigos de trabalho e a pouca clientela nesses dias de crise, que o amparavam, apreensivos, naquele momento. Lá embaixo um mendigo arrastava seu trapo entre as barracas que dormiam. Pegou o alimento podre em meio a elas? Muito distante para saber. Se a coisa terminasse assim; se o que apodrecia sem ele poder evitar o levasse sem nenhum constrangimento que perturbasse o comércio e a vida tão boa de seu gerente, aí sim, tudo bem, não se incomodaria tanto. O mendigo aproximou do rosto o que pegou do chão; sentiu o seu aroma; apalpou impacientemente testando toda a solidez, e atirou com raiva no mesmo lugar. O desgraçado tinha razão, pensou. Então, deixou a varanda mal iluminada, sem esquecer o maço de cigarros, e entrou na sala pequena. Sentou-se próximo à mesinha e pegou o enorme envelope verde. Bonita a cor, disse para si. Antes de abri-lo puxou um dos cigarros mas não o acendeu, equilibrando-o calmamente entre os dedos. Virou e revirou a superfície do envelope, muito diferente de como fizera antes, e considerou o seu tamanho excessivo, mas ainda o achando bonito. De repente, embaralhado em seus pensamentos, viu o mendigo outra vez; viu a fruta que o destino esqueceu e que o mundo repleto de vermes, com a maldade do anjo da morte, ansiava para que o miserável a comesse num dia comum e qualquer. Devolveu à mesa o envelope – e uma lágrima encontrou os seus lábios num leve sorriso –, acendendo então o cigarro que não mais esqueceria.
Hilda curcuo
Belo conto este do julio castelo branco, parabens p o site que escolhe excelente literatura para nos saciar. Obrigada
cARLOS aUGUSTO MORAES sILVA
QUERIDO AMIGO jÚLIO, SEU CONTO É TOCANTE E ATUAL, UMA METÁFORA DE NOSSA DURA REALIDADE, POVOADA POR INDIVÍDUOS APARTADOS DE SI MESMOS, DESLOCADOS, DESCONSOLADOS NAS GRANDES METRÓPOLES. bAITA ORGULHO EM VER SEUS ESCRITOS DIVULGADOS EM UMA PUBLICAÇÃO DE DESTAQUE, VOCÊ MERECE! pENSE NA POSSIBILIDADE DE ORGANIZAR UMA COLETÂNEA DE CONTOS, TENHO CERTEZA QUE SERÁ UM BELO TRABALHO, ASSIM COMO O CONTO QUE AGORA NOS OFERECE…