Um conto de Kenji Aoyama
Kenji Aoyama (1996) ou antonio paulo steffen neto (pra quem tem tempo de ler), é curitibano, ranzinza, graduando em letras – português/alemão (UFPR). Lê, escreve e faz origami; nunca publicou, joga os textos no medium.
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Anônimo
A água passava por sob seus pés, ele olhava, onde é que daria esse curso d’água, essas bolhas. Não conseguia ver de qual casa ele vinha. Ali perto eram um, dois, três, eles passavam. Carregavam os materiais para os operários, fariam mais se pudessem. Alguns até vestiam a camisa do time durante tudo isso. A cidade estava mobilizada, em especial a parte rubro-negra, os outros veladamente. Confiantes, alegres, sorrisos que iam de orelha a orelha, coisa de bater no peito mesmo, coisa de quem não faz aquilo todo dia, atleticanos unidos por uma só causa: a final da Libertadores da América. O menino estava orgulhoso, era a sua gente ali, eles chegaram à final. Acompanhava tudo sentando no meio fio, seu saco cheio de latinhas jogado ao lado. Nunca soube o porquê de o estádio não ter sido terminado, e se perguntava como poderia haver obras feitas não-por-inteiro, enfim, com essa obra ele ficaria completo.
Ainda terminava o café que a senhora da padoca lhe dera, o pão de queijo já tinha ido. O movimento aumentava conforme a cidade acordava, o menino nem via, ele pensava na glória, andar com a faixa de campeão, bater no peito, abraçar o pai. Finalmente, ia poder esfregar na cara do Joca, aquele coxa-branca, que eles não tinham mais um meio estádio, que era um estádio inteiro e o mais moderno da América Latina. Time grande é isso, Joca não entenderia. Quem será que faria gol na final? Gostava do Lima e do Alan Bahia, que era volante, talvez não marcasse, ia ser o Lima mesmo, ou o Aloísio, gostava dele também. Pensava no jogo anterior, o time passara o trator por cima dos mexicanos, os foguetórios viraram a noite lá no bairro. Foram dois dias sem ver o Joca depois disso, dera tanta risada, risada gostosa, daquelas com dedo na cara mesmo. Ele não sabia o que o esperava, eles deviam estar todos morrendo de medo de o Atlético vencer essa, podia apostar.
Uma latinha jogada em seu saco preto vazio estendido no chão o tirou dos pensamentos. Rapidamente olhou para os lados e identificou o velho que a jogou enquanto passava. Olhou um pouco, não houve retribuição, nenhuma virada de cabeça para trás, melhor ir mesmo, que tinha que catar essas latinhas. Levantou-se, mas com intenção de ficar por perto da Arena, que ali era o lugar para se estar, não queria sair dali. Começou a via sacra sob o sol que esquentava, passava pelas ruelas que entrecortam a Brasílio Itiberê e a Getúlio Vargas, a melhor para andar, que ali as árvores são viçosas. Sabia onde estavam os bares que abriram durante a noite anterior, e passava por eles, de um por um, assim poderia checar as latas de lixo, ou pedir para os que eventualmente estivessem abertos, que eventualmente um ou outro abriam cedo para poder passar uma água na sujeira.
Sempre achou estranha a coloração amarela de alguns dos bares, que mau gosto, preferia-os em vermelho, cor de quem tem bom gosto. Infelizmente, o bar do Polaco era um dos amarelos, a uma primeira impressão não achara que os velhos seriam gente boa. Que só tinha velho ali mesmo, mas não que nem a maioria dos velhos do Água Verde não, ali era só atleticano e amigo do dono. O menino era amigo do dono, todos o tratavam bem.
“O-ho, nosso amigo chegou. Estava achando que não vinha mais, passou na frente do nosso templo hoje já?”
Ele tinha visto que sim, perguntou para puxar assunto.
“Viu o Diogo lá? Tá lá querendo ajudar na obra. Sabe lá Deus como, que o bicho nunca faz porra nenhuma, aquele sedentário.”
Um belo programa para uma manhã de dia de semana, sentar no bar e dar risada do amigo que não reconhece a própria idade. O menino aproveitava que a velha guarda já tomava sua cerveja, que segundo eles não era todo sempre que seu time chegava numa final de Libertadores, terminavam de falar e mais latinha para o saco, nem precisava ir andar pela rua procurar, era só esperar eles jogarem.
Imaginava como ficaria o estádio terminada a obra. Bem, na verdade, tentava imaginar como seria o estádio do jeito que estava ali, que só o havia visto pela televisão. Devia ser muito grande, e tinha o gramado, os jogadores, a torcida cantando. Fazia uns dias que não passava pela sede ali perto, como será que estava o Sid, seu vizinho? Levantou-se e despediu-se.
“Passa aí depois, bater um rango” – o Polaco sempre deixava ele comer por ali.
Voltaria depois mesmo, que adorava a comida da mulher do Polaco, ficar amigo deles foi uma das melhores coisas que fez nessas andanças, com o único empecilho de ter de aguentar os velhos às vezes, hoje estavam sossegados. Começou a se dirigir à sede, atoando seu saco que somente começava a encher, o sol já quente tostando a testa. De sombra em sombra ele fazia o traçado de sua caminhada, que nunca gostara de ficar tomando sol à toa.
A sede também estava movimentada, todos mobilizados, vira mais cedo uma galera ajudando na obra. Ia à procura do Sid, seu padrinho ali. Olhava e olhava, e nada. Decidiu perguntar, a resposta foi negativa. Pediu por latinhas, conseguiu umas poucas, o resto já tinham levado. Esperou um pouco por perto, com o saco aberto sobre o chão, algumas latinhas voavam para dentro dele conforme o pessoal entrava e saía do local, era o tipo de momento mais fácil da atividade, podia descansar os pés. Com o afluxo de latinhas diminuindo levantou-se e saiu dali.
Na praça as coisas estavam tranquilas, qual o alívio que sentiu. Ainda havia algumas latas aqui e ali, dentro das lixeiras. O saco estava agora bem mais cheio do que antes, ainda que longe do ideal, já era quase hora de levar as latinhas no velho Airton. Pegou-se pensando, com olhar perdido entre os operários, percebeu que já não pensava no jogo, em verdade a empolgação deixou-lhe, e essa constatação foi o suficiente para voltar a pensar somente no jogo, Lima, Alan Bahia, Fernandinho, Aloísio, seus heróis, imaginava-se jogador, a ansiedade para uma final, a glória de uma taça. Já há algum tempo sentado no escadão não conseguiu localizar mais nenhuma lata jogada por ali, os outros deviam ter catado já, teve sorte de catar as que catou. Pensou em passar no Prajá perguntar se tinha lata, apesar de ali o pessoal beber garrafa, mas qual a preguiça que lhe tomou o corpo.
Levantou-se e foi para o Prajá, que ali sentado não iria conseguir nada.
“Puts, guri, acabei de passar as latas que tinha para o outro colega ali. Se puder voltar no final da tarde, daí eu posso te ajudar.”
Era por isso que tinha que ganhar a amizade dos donos dos lugares, para garantir as latas de que precisava. Foi ao ferro-velho do seu Airton, que sempre enchia o saco por não estar estudando, mas também pagava um pouquinho a mais por sentir pena dele. Dizia que era para comer bem, que estava em fase de crescimento. No começo perguntava pelos pais do menino, já não se importava mais, perguntou como estava o dia, falou sobre o jogo, que ele também era atleticano e também estava ansioso, nem parece velho. Um outro catador passou com comentários toscos, ninguém responde.
Com o seu Airton, ele dava risada, todo gurizão. Mas nem sempre ele era divertido, o que um jogo não conseguia fazer. Contava histórias das décadas passadas, o Pinheirão, o Joaquim Américo dos tijolinhos, pela nostalgia na voz até pareciam tempos melhores. Agora é diferente, diz o menino.
“E você tem razão, é diferente, e você tem a sorte de estar aqui vivendo isso.”
Perguntou se ia ao jogo, mas nenhum dos dois ia, que não era para gente que levantava cedo, nem para menino desacompanhado. O velho Airton falava de gente que ia no jogo, moradores da região que vendiam lata ou outras coisas também, e falava com gosto, como se fosse ele quem fosse no jogo, ou em todos os jogos. Ele sentia saudades, não ia desde antes do título, que estava velho e tinha outras prioridades na vida, um dia o menino entenderia.
Na despedida, desejou boa sorte para eles dois, que não sabia quando o menino voltaria a passar ali, não tinha regra nesse cronograma dele, e o velho não sabia que o menino também vendia em outros ferros-velhos.
O menino ficava zanzando ainda em torno da Arena, queria ficar o maior tempo possível ali perto, queria fazer parte do seu time. Lembrou-se da bóia que o Polaco ofereceu, nem queria ficar muito tempo por ali, mas iria esperar pelo rango. Ficar ali só o fazia ter vontade de ir ao jogo. Olhou uma última vez para o estádio e mal sabia, que seria o estádio também privado do jogo.
Voltou para onde tinha começado a manhã, para sentar-se sobre o meio-fio e esperar a hora do almoço. A água passava diminuída já, muito mais tímida do que horas antes, mas ela não iria se esgotar, os musgos entregavam essa parte. Gostaria de saber a história por trás dela, mas não se levanta para fazer nada.