Um conto de Larissa Campos
Larissa Campos nasceu em Manaus (AM), em 1987, mas é mato-grossense de coração. Estudou Jornalismo e Direito na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Se considera uma ativista do texto, dessas que levanta a bandeira das palavras e faz da escrita um instrumento de luta, no sentido mais íntimo: as grandes e pequenas batalhas de dentro, o olhar mágico para o cotidiano, a vontade de registrar as cenas que se acendem na memória e que não quer perder. Jornalista, escritora, comunicadora e, antes de tudo, mulher, Larissa teve contos selecionados para as antologias Ser, nascer e desnascer – Enquanto Mulheres (Primavera Editorial, 2021) e Coletânea OFF Flip 2022 – Contos. O livro de contos A casa do posto (Selo Auroras, Editora Penalux, 2022) é sua obra de estreia. Para mais informações sobre a autora, acesse https://www.instagram.com/laricampos10/
O pedaço integra a coletânea de contos do Prêmio Off Flip 2022.
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O pedaço
Deixo a sala branca a passos lentos, enquanto tento sorrir para a enfermeira. Minha cara franzida de agonia não combina com a animação dela ao falar do sucesso do procedimento. Antes, havia algo a me pesar o meio das pernas, agora resta a dor. São pulsações firmes, vão e vêm, feito as batidas de um coração que dói. Aprendo como é ter um coração no meio das pernas, acompanhado pelo incômodo que cresce conforme diminui o efeito da anestesia local.
Três meses antes, deixei aquela sala com passos não tão lentos, ao mesmo tempo em que tentava sustentar o quadril, puxado insistentemente para baixo pela gravidade e outras forças. O que me pesava mais era a vergonha conhecida, contrita, intensificada pelo comentário durante o exame médico: os pequenos lábios maiores que os grandes. “Não te incomodam?”. Aturdida, nem soube o que responder, era algo sobre o qual eu evitava falar.
Recebi alguns panfletos antes de sair do consultório. Ninfoplastia, laser, técnicas de clareamento, peeling íntimo e mais termos que ficaram pendurados no mural do escritório, ao lado de boletos, fotos, roteiros e listas intermináveis. Nas pausas entre um texto e outro, os conteúdos dos panfletos acompanhavam o meu café; a cada gole, a mente repassava desastres amorosos e encontrava respostas naquele peso no meio das pernas. João, Mário, Guilherme, Cássio, Ruan… Era esse o motivo?
Voltei àquela sala branca para deixar um pedaço de mim, supérfluo, desnecessário, feio e incompatível com os modelos que exigem de nós. Lembrei das idas ao açougue com mamãe, da gordura apartada da carne vermelha, da porção de comer que ia parar na sacola da cliente enquanto o descarte virava bola de sebo acumulada sobre a bancada de pedra. O que será que eles fazem com isso?
Deitada no sofá, penso no meu pedaço de carne-pele, no que será feito dele, parte tão íntima e sensível da minha história. As pontadas amenizadas pelo analgésico fazem lembrar as palavras da médica sobre o pós-operatório tranquilo, suportável, a vida nova depois da retirada dos pontos. Na calcinha amarela, brota um sinal vermelho, a pequena mancha de sangue gravada no tecido de algodão é testemunha de mais uma dor. Em partes, a médica tem razão: sangra pouco, dá pra suportar, os pontos nem me incomodam. De olhos fechados, espero por um sono que não sei quando chegará, pedindo a Morfeu que me deixe sonhar com a vida nova que se aproxima.