Um conto de Laura Elizia Haubert
Laura Elizia Haubert é Doutoranda em Filosofia na Universidad Nacional de Córdoba. Graduada e Mestre em Filosofia pela PUC-SP. Já participou de várias revistas literárias entre elas Revista Subversa, Revista Gueto, Revista Ruído Manifesto e a Revista Ponto do SESI-SP. Publicou em 2017 pela Editora Patuá o livro Sempre o mesmo céu, sempre o mesmo azul e em 2019 o livro Memórias de uma vida pequena pela Quintal Edições. Atualmente vive em Córdoba, na Argentina.
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O começo do fim
— Eu te amo. — Ele disse.
Ela sorriu, e nesse sorriso havia três quartos de um azul celeste desalegre. A urgência de resposta podia ser sentida por todos os cantos da sala. A espera. Microssegundos no relógio. Os olhos dele sobre seu corpo, ansioso, implorando silencioso.
O que deveria fazer?
— Eu também. — Falou por fim.
Era tão fácil deixar as palavras se enrolarem dentro dela criando outra realidade. Mas, ela sabia a verdade. Soube assim que o olhou nessa mesma noite, mais cedo, enquanto de pijama, deitado, ele assistia ao noticiário e coçava a cabeça com as pontas dos dedos. Depois deixava os braços caírem no sofá relaxado. O pijama tinha bolinhas verdes.
Não era nada em particular que havia causado aquilo, mas ali estava a revelação. Que coisa mais estranha era dar-se conta de que não o amava depois de todos aqueles meses juntos. Desejava, sim, sim, ansiava profundamente por amá-lo. Porém, isso não era a mesma coisa, era? O amor e o desejo de amar? A potência e o ser?
É claro que a possibilidade de o deixar havia cruzado sua cabeça vez ou outra por razão nenhuma, um pensamento intrometido, quase violento. Mas, aquilo, ah, aquilo era diferente. Uma revelação silenciosa que fez seu corpo todo esmorecer. A verdade em passos de pombas tão suaves. Não o amar de fato era diferente da possibilidade fantasiosa de não amá-lo.
E o que era essa coisa então que havia habitado nela todos esses meses? O que era esse não-amor? O que existia nesse não-sentimento? Como era possível identificar tão precisamente o momento da decadência, o começo do fim?
Era tão fácil sorrir, deitar-se e deixar-se ser acariciada e amada. Confortável até. Poderia acostumar-se com essa realidade, com os cafés compartilhados, com as escovas de dente no banheiro, até mesmo com os pelos de barba que ele deixava espalhados na pia. Poderia acostumar-se com as intromissões de amigos e família, e até mesmo com seu irritante hábito de entupir o vaso. Conseguia imaginar-se sendo gentil nas mais diversas situações e o apoiando quando ele ganhasse, por fim, a tão esperada promoção no emprego. Ela iria sair e comprar uma nova lingerie e deixaria que ele se divertisse.
Mas, não poderia ela, com essa semelhante desenvoltura conceber o contrário? Uma vida sem ele, o apartamento vazio, uma taça de vinho nas mãos, noites em paz, conversas dúbias com uma série de estranhos. Outros corpos, outras camas, outras vidas. Sim, sim, era tão saboroso essas elocubrações.
E pior, não lhe causava nenhuma dor. Era quase como se finalmente algo nela se despertasse, ah, tantas possibilidades, ela poderia ser tantas pessoas, amar tantas outras. Quem seria ela se não fosse quem era? Se não amasse quem pensava amar? E a facilidade com que concebia essas perguntas lhe indicavam o fim daquilo que já tinha estabelecido. O anseio pelo novo.
Ele não se deu conta que ali, sentada encolhida no sofá, com sua xícara de chá, e um olhar perdido para a televisão, ocorria nela uma conflagração. Como poderia prever? Como poderia dar-se conta de que o outro é sempre mar e nunca âncora? Não podia.
— Acho que devíamos pedir pizza, não estou a fim de cozinhar hoje à noite. — Ele diz levantando-se.
— Pode ser.
— Okay, do que você quer?
— Qualquer sabor. — Responde elevando os olhos em sua direção.
Seu rosto não era o mais bonito, contudo havia algo nele que captara sua atenção antes. Ela já não conseguia lembrar-se o que tinha sido, e nem encontrar o mesmo sentimento quando vasculhava suas caixas internas. Por que será que ela tinha concordado em sair de novo? E outra vez? E mais uma terceira?
Ele era tão seguro quanto ignorante de si. Talvez, fosse justamente isso que a envolvera. A superficialidade que a permitia respirar. Uma superficialidade que ela não tinha, mas queria. Ansiava. Será que ele já havia pensado na possibilidade de não a amar?
De fundo, passando por seus raciocínios consegue escutá-lo pedindo por telefone o jantar, seguido do tilintar dos pratos de vidro contra a mesa de madeira. “Uma boa pessoa”, tinha dito sua mãe. E ela tinha assentido, sem saber o que deveria responder. Não eram todas boas pessoas ali? Mas, agora, ela tinha entendido a que se referia.
Ele veio e beijou sua testa enquanto agarrava um maço de cigarro para fumar na calçada até chegar à entrega. Ela move lentamente os músculos quando ele sai, como um animal recuperando-se de um longo período de hibernação. Pronto, pensando bem conseguia até respirar melhor quando ele não estava. E soube que era assim que tudo terminaria.
Enquanto se dirigia ao banheiro percebeu com tristeza a verdade. Não, não o amava. E agora? Como poderia sair de sua própria vida? E esses pensamentos e sentimentos a absorveram, enquanto a água fria corria na pia a hipnotizando. Por fim, escutou-o voltar animado, avisando que a pizza ainda estava quente.
Ela jogou uma água no rosto, e saiu sorrindo. Poderia resolver isso depois, outro dia. Talvez, até em outra semana. Não conseguia lidar com aquela verdade agora. E nem precisava. Era só o começo. Será que se ela se esforçasse poderia amá-lo? Ah, que coisa mais idiota, pensou antes de sentar-se à mesa sorrindo pronta para o jantar.