Um conto de Leandro Coelho
Leandro Coelho é natural do Rio de Janeiro. Dono de um espírito inquieto e sedento por experiências, já foi professor de inglês, concierge e mágico amador (sem mencionar suas experiências como pintor de telas, pescador e caçador de ratos na infância). O amor pela aventura o levou à Inglaterra aos 20 anos de idade. Após alguns anos estudando e trabalhando na incrível cidade de Londres, o autor partiu para outra aventura, desta vez no Egito, onde atravessou desertos e desceu as águas do Nilo em um pequeno barco à vela. Dali foi para a Índia, percorrendo o sul do país e vivendo alguns meses na cidade de Pondicherry, onde teve contato com a inacreditável cultura milenar daquele país. Em seguida, visitou os vulcões sagrados das ilhas de Java e Bali, onde foi atacado por um grupo de macacos enfurecidos, um tubarão de mais de 4 metros (ok, 3) e foi ameaçado de morte por uma gangue de criminosos, e quase foi atirado dentro de um vulcão ativo. Dali, partiu para a Austrália, perdendo-se no inóspito e mortífero território do norte, onde trabalhou em uma fazenda infestada de búfalos, cangurus, aranhas e serpentes envenenadas, plantando abobrinhas e berinjelas, dirigindo tratores (sem ter a mínima ideia de como fazê-lo) e controlando os demais trabalhadores, entre eles um ex-mercenário inglês que lutou por 6 anos no Afeganistão. De volta ao Brasil, o escritor formou-se bacharel em Direito, militando na advocacia por 10 anos. Em 2011 tornou a cair na estrada, percorrendo mais de 3 mil quilômetros pelo sertão de 6 estados nordestinos, atrás do “rastro de Lampião”, visitando os locais por onde passou o famoso cangaceiro e seu bando. Em 2012 o autor parte para a ilha de Cuba, percorrendo-a de ponta a ponta, realizando shows de mágicas para crianças em escolas públicas de Havana e para camponeses na Sierra Mestra, na parte oriental do país. Em 2014 decide voltar para a estrada, e percorre 24 estados americanos, visitando pontos históricos e mais de 15 locações de filmes, perfazendo quase 20 mil quilômetros por terra nos quatro cantos dos EUA, acampando em parques e florestas, percorrendo trilhas históricas e terras indígenas, hospedando-se em albergues, dormindo em igrejas e abrigos para moradores de rua. Ao chegar ao estado da Louisiana, apaixona-se perdidamente por Nova Orleans, onde encontra trabalho como assistente em um bar de jazz e blues no quarteirão francês. Ao retornar ao Brasil, mudou-se para a fantástica cidade de Curitiba, PR, mas tem planos de se mudar para marte. Antes disso, caso não ganhe dinheiro honestamente, pretende roubar um banco.
O conto “A vila do silêncio” faz parte do livro A vila do silêncio e outros absurdos, à venda nesta plataforma: https://www.clubedeautores.com.br/livro/a-vila-do-silencio-2#.XQcfQ497nIU
***
A VILA DO SILÊNCIO I
_ Morozov! Ivan Morozov! Só ele pode ajudá-lo, camarada, pois é o único daqui que possui um cavalo – disse o homem embrutecido com um imenso bigode e cara redonda.
O jovem sentado a uma pequena mesa apenas balançou a cabeça. Estava cansado e com preguiça de falar.
O bigodudo com um pano de prato imundo sobre o ombro prosseguiu a explanação:
_ O senhor deve pegar a trilha que passa através do bosque. Eu lhe ensinarei um atalho que poupará vossas pernas e tempo: ao sair, siga na direção norte até um velho poço, ao lado de uma imensa árvore de tronco retorcido. Chegando lá, verá o início de uma trilha. Siga-a através do bosque até ver-se diante de uma bifurcação; será a primeira delas. Tome o caminho da direita e ande até o final, onde encontrará uma segunda bifurcação. Desta feita, deverá pegar o caminho da esquerda. Ele o levará até uma pequena colina. Atravesse-a. No caminho da descida, verá a cabana do camarada Morozov. É modesta, e tem um pequeno celeiro ao lado. Não tem como errar, entendeu bem? Não se esqueça de pegar a direita e depois a esquerda! Diga a ele que o enviei. Ele é um bom homem e vai ajudar-lhe a chegar aonde deseja. O cavalo que puxa sua carroça não é grande coisa, mas é forte o suficiente para aguentar o caminho, além de ser o único de nosso vilarejo – concluiu o gordo com um sorriso de canto de boca.
Depois de fornecer as instruções pedidas pelo forasteiro de poucas palavras, o dono do bar encheu o copo vazio do viajante com o líquido cristalino. O frio lá fora já havia chegado aos vinte graus negativos e uma segunda dose da bebida forte talvez o ajudasse a suportar melhor a caminhada que teria pela frente – ou então, lhe daria juízo para desistir e esperar o tempo melhorar. O dono do estabelecimento tinha para si que o estranho congelaria antes de chegar a seu destino. Mas, cansado de nunca ter seus conselhos seguidos, decidiu guardar para si sua sombria previsão. Pensou que o jovem talvez fosse louco, pois só mesmo um deles para viajar a pé num inverno tão rigoroso como aquele, ou talvez estivesse desgostoso com a vida, escolhendo a neve como túmulo.
O forasteiro pagou pela bebida e terminou de bebê-la num só gole, fazendo uma careta e limpando a boca com a manga do casaco puído. Agradeceu mecanicamente e caminhou em direção à saída. Parado, diante da porta, amarrou o gorro ushanka e levantou a gola de seu pesado casaco. Praticamente não se via mais seu rosto por debaixo de tantos agasalhos. Assim permaneceu por alguns instantes, como que angariando coragem para enfrentar o que lhe esperava do outro lado da porta. Ao abri-la, o vento carregado de neve invadiu o ambiente, gerando um sinistro silvo.
Assim como veio, o inusitado freguês saiu, batendo a porta e deixando para trás o aconchegante refúgio…
II
Após quase quatro horas de caminhada, o tempo ficara ainda pior. A tempestade de neve era intensa. O vento talhante dava ao forasteiro uma sensação térmica de quase menos trinta graus. As lufadas geladas atingiam seu rosto como minúsculas agulhas, ceifando de seu corpo os últimos resquícios de calor. Esforçava-se para manter os olhos abertos, retirando a neve que se acumulava incessantemente em volta deles. Lamentou não ter um cavalo:
Não me adiantaria de nada – pensou com pessimismo. – O animal sucumbiria, tal como eu sucumbirei se não encontrar algum abrigo.
Exausto e faminto, já não se lembrava se havia passado por uma ou duas bifurcações.
Ou teriam sido três? Virara à esquerda na primeira delas? Ou teria sido à direita? Uma, duas ou três? Direita, esquerda…
Nunca teve paciência de memorizar explicações de como chegar aos lugares. Amaldiçoou a si próprio por ter parado de escutar o dono da estalagem logo depois da “primeira virada à direita”.
A densa floresta de taiga coberta de neve não lhe proporcionava nenhum ponto de referência, transformando-se num sinistro labirinto. Já se perguntava para aonde ia.
Qual era o nome da cidade? Stalinsk ou Stravisnk? Primeira bifurcação ou à esquerda?
Trocava números por nomes. Em seus últimos resquícios de consciência, percebeu estar sendo acometido por uma confusão mental. Ponderou dar meia volta, mas desistiu da ideia. Sabia que a estalagem estaria a horas de caminhada na estrada de volta. Para piorar as coisas, a luz fraca e acinzentada do dia começava a desbotar. As trevas não tardariam a chegar. Seu corpo não suportaria muito mais tempo de andança. Seria inútil retornar, e decidiu continuar sua marcha sem rumo. Ao menos poderia dar a sorte de encontrar uma carroça na estrada, ou então, ver-se diante da cabana que procurava, com uma chaminé fumegante e um prato quente de borscht. Sequer fazia mais questão de sua montaria. Naquele momento, seu escopo era manter-se vivo.
Sem escolha, teve de seguir em frente e contar com um milagre. Só mesmo um para tirá-lo daquela enrascada.
Quase duas horas depois, já não sentia as pontas dos dedos. Lamentava-se por não ter ficado para um terceiro copo de vodca na taverna.
Se o arrependimento matasse, já estaria sepultado…
Mas naquela hora o remorso não seria seu carrasco, e sim o frio mortífero do inverno siberiano. Claudicante, não quis aceitar a ideia, mas sabia que estava perdido, literal e metaforicamente. Tinha ciência de que se perder num tempo daqueles significava o fim. Mas não se entregaria fácil: mesmo com as pernas dormentes, como que pesassem cem quilos cada, continuou a caminhada. Estava esgotado. Encher os pulmões já era um esforço hercúleo. Suas extremidades ardiam. A luminosidade esmaeceu, subitamente. Sabia que era sua consciência, prestes a entrar em colapso. Seus pés afundavam, sumindo na neve, como pedras jogadas ao mar. Sua cabeça latejava, balançando como uma gangorra.
O cavalo. A vodca ao lado do poço. O bigode do gordo. Branco. O mar branco. Sem vida. Direta. O trem. Os tiros. Mais uma dose. Mais um cavalo. Mais um poço. A última bifurcação.
Massacrados pelo esforço, seus joelhos falharam, e ele desmoronou. Sentiu o rosto queimando na neve do chão. Sem forças, permaneceu deitado, tomado por um sono irresistível. Resignado, moribundo, encolheu-se numa posição fetal e esperou adormecer.
Dizem que a morte é uma linda jovem de véu e mantilha.
Pois então, se tivesse de encontrá-la, ele deitaria a cabeça em seu colo convidativo e adormeceria. Intuiu que aquele último e reconfortante sono lhe traria calor. Pôde jurar ter visto a forma de uma mulher diante de seu destino, e sucumbiu, cobrindo-se no aquecido vestido branco da aparição que viera a seu umbrático encontro. O vento sibilante transformou-se numa sinistra cantiga de ninar e tudo escureceu…
III
_ Desgraçado! Maldito! Eu te mato!
O homem calvo e franzino usando óculos de armação redonda adentrou no recinto aos berros. Naquele local, tal cena não era tão incomum, e as pessoas que ali trabalhavam já estavam acostumadas a testemunhar colapsos nervosos de todos os tipos. Tivesse o homem enfurecido as mãos vazias, seu ataque de cólera passaria quase que despercebido, sendo ignorado pelos funcionários do local. O problema foi que uma das mãos trêmulas do invasor ensandecido empunhava uma pistola Tokarev. O pânico foi geral.
O primeiro tiro atingiu um porta-retratos que estava em cima de uma das mesas, acertando em cheio o peito de uma austera figura na foto desbotada. Os demais projéteis encontraram morada nos móveis e paredes da sala de redação do maior e mais influente jornal da Rússia, o Pravda.
O matador de fotos e móveis acabou contido por alguns jornalistas mais corajosos – ou menos amedrontados. O alvo principal do atirador, contudo, encontrava-se ileso, escondido, tremendo debaixo de sua escrivaninha apinhada de pilhas de papel. Não fora atingido sequer de raspão. No dia anterior, ao enviar sua matéria para a impressão, o futuro alvo não imaginara que aquela pacata figura pública teria coragem de atentar contra sua vida. Na verdade, nenhum jornalista que se preze pensa nas consequências de suas reportagens no momento em que as envia para serem estampadas nas páginas dos jornais. Depois da impressão da tiragem, as enormes pilhas de papel descansavam inertes nos depósitos do jornal, tal como bombas-relógio, esperando a hora certa para serem detonadas. Só no dia seguinte é que os noticiaristas viam o clarão da repercussão de suas explosões jornalísticas. A maioria dos atingidos pelos estilhaços das críticas e acusações limitavam-se a praguejar pelas esquinas. Alguns mais exaltados, guiados pela vodca, proporcionavam escândalos na porta do periódico, mas o jovem articulista imaginou que o senhor Leonid Maslov seria o último homem da face da terra capaz de vingar-se com disparos de pistola por ser acusado de traição e corrupção na publicação daquele dia. O colunista descobriu, da pior forma, que era perigoso subestimar um homem por seu porte físico ou personalidade serena. Afinal de contas, até o mais santo dos monges pode tornar-se um assassino furioso, se devidamente provocado. Foi exatamente o que se sucedeu.
Como resultado da frustrada tentativa de vingança, o protótipo de atirador foi julgado e sentenciado a cumprir pena nos Gulags – como eram chamados os temidos campos siberianos de trabalhos forçados de Stálin. Seus projéteis lhe renderam nada mais, nada menos, do que vinte anos de prisão por tentativa de homicídio. Cinco anos para cada munição deflagrada…
IV
O estranho abriu lentamente os olhos. Estava no interior de uma cabana, deitado numa cama com lençóis limpos e um cobertor de tricô multicolorido, com desenhos caleidoscópicos. Respirou profundamente. Não acreditava em milagres, mas não se atreveria em dizer que o fato de ainda estar vivo não tivera qualquer intervenção divina. Estava feliz por ainda respirar. Sua cabeça ainda doía e o calor da lareira convidava-o a dormir por mais tempo. Contudo, a curiosidade fora mais forte e o homem quis saber onde estava, e como fora parar ali. Tal qual um visitante passeando pelas galerias de um museu, varreu o local com os olhos. Era um cômodo humilde, típico de uma casa de camponeses, mas asseado. Os móveis eram rústicos e não tinham pregos, com as partes de madeira perfeitamente encaixadas umas nas outras. As paredes ostentavam quadros com pinturas rupestres, feitas sobre um tecido grosso, fixadas em molduras artesanais. As cortinas de lã filtravam a luz do dia, criando um ambiente agradável a olhos cansados. O local era perfumado pelo aroma de um prato de kasha fumegante repousando sobre uma mesa de canto. Do outro lado do cômodo, iluminados por uma fraca luz âmbar vinda de uma lamparina, um par de olhos azuis vigiavam-lhe os movimentos. A dona dos olhos era uma jovem, sentada num pequeno banco de três pernas. Tinha os cabelos loiros, quase que transparentes, com fios tão finos que pareciam formar um manto de seda, feitos magicamente pela própria ninfa Aracne. Sua pele era delicada e macia como as asas de uma borboleta. Seus lábios, de suave vermelho, eram desenhados com contornos delgados e delicados, como que guiados pelo pincel de um pintor realista.
Ao perceber ter sido notada, a menina apoiou as mãos juntas ao colo e sorriu com as bochechas levemente ruborizadas.
_ Onde estou? – perguntou o recém-despertado.
O anjo amarelo deu de ombros e levantou-se calmamente, pegando uma pequena lousa e um pedaço de gesso que estavam à mão, e gesticulou para que o homem escrevesse a pergunta que acabara de fazer.
Ele imediatamente deduziu tratar-se de uma surda-muda. Assim como hoje, naquela época, muitas pessoas desconheciam o fato de que os surdos não são necessariamente mudos, e, ignorando tal fato, lamentou secretamente.
Tão linda e jovem, e com duas limitações tão cruéis.
O homem pegou a lousa e reduziu a termo a pergunta com uma escrita sofrível. Há anos não escrevia com um giz.
A jovem leu o escrito no diminuto quadro e sorriu. Em seguida, apagou a indagação do estranho e escreveu algo em resposta com letras desenhadas, devolvendo a tábua ao homem:
“O senhor amigo está na minha cabana.”
Ele leu, franzindo a testa em seguida. Não satisfeito pela resposta óbvia, balançou a cabeça e pediu o giz. Após apagar a frase da moça com as costas de sua mão, escreveu uma nova questão, estendendo a lousa de volta com os dedos esbranquiçados de pó:
“Sei disso. Mas onde fica sua cabana?”
Após ler a nova pergunta a menina sorriu novamente e devolveu-lhe a lousa com mais uma “elucidativa” resposta:
“Na vila.”
Irritado, o homem preferiu não externar a palavra nada educada que acabara de pensar, mesmo sabendo que a moça era surda e que provavelmente não a ouviria. Contendo-se, escreveu novamente no quadro, gerando um curioso diálogo escrito entre os dois:
“E onde fica a sua vila?”
“Aqui.”
“Aqui, onde?”
“Aqui, onde estamos, ora!”
O vaivém da pequena tábua que não respondia nada era uma cena cômica.
O homem respirou fundo e resolveu ser mais paciente. Pensou que, se escrevesse com calma uma ou mais perguntas mais bem elaboradas, talvez as respostas também assim o fossem:
“E esta vila fica longe de Novosibirsk ou Stalinsk?? O que aconteceu comigo? Como vim parar aqui? Você mora sozinha? Poderia chamar alguém para falar comigo?”
A jovem leu as perguntas com um olhar de perplexidade para com ao menos uma delas, mas respondeu todas:
“O que é Stalinsk e Novosibirsk?
Há um dia e uma noite, eu e um casal de moradores saímos pelo bosque para procurar uma de minhas ovelhas que havia fugido pela tarde. Em vez dela, encontramos o senhor do outro lado das colinas, caído no meio da tempestade. Estava praticamente morto. Nós o trouxemos até aqui. Tenho cuidado do senhor desde então.
Moro sozinha.”
_ E por último, algo que o intrigou:
“Não poderei levá-lo a alguém que fala.”
A primeira resposta já seria suficiente para deixar o homem confuso. Questionamentos assolaram seus pensamentos:
Como poderia desconhecer Novosibirsk e Stalinsk?
Qualquer originário da mãe Rússia ao menos teria ouvido falar de tais lugares, especialmente os habitantes da bacia de Kuznetsk.
Além de surda-muda, sofreria ela de problemas mentais?
E por que se recusara a levar-lhe a alguém que fala?
O estranho desconfiou ter ido parar em uma vila de loucos, ou, ao menos, na cabana de uma. Achou melhor não a questionar mais. Tentou se levantar, mas seu corpo lhe dizia que ainda não estava totalmente recuperado. Sua mente, contudo, não descansava. Queria saber onde realmente estava, e por que cargas d’água deixaram-no com uma menina que certamente não seria capaz de cuidar de si, o que diria cuidar de um paciente que merecia cuidados.
A jovem quebrou a estática do ambiente estendendo-lhe alousa:
“Amanhã o senhor poderá se levantar. E quando estiver bem, eu o levarei até o velho amigo. Ele saberá fornecer todas as respostas que busca e que desconheço.”
Intrigado, o hóspede-paciente resolveu se entregar ao sono. Reconheceu que ao menos não se transformara em um cubo de gelo, e estava agradecido por isso.
V
Na manhã seguinte, sentindo-se melhor, o forasteiro comeu o dejejum servido pela anfitriã, e resolveu não voltar para seu leito. Queria ver o lugar onde fora parar. Depois de espreguiçar-se, abriu a porta da cabana. A tempestade havia se dissipado, mas o céu ainda estava nublado, e o frio tomou conta do interior da cabana. Viu estar em um pequeno vale, cercado por um bosque denso. Diante dele, uma pequena vila formada por duas fileiras de aproximadamente dez cabanas de cada lado, todas feitas de toras sobrepostas de pinho siberiano e praticamente idênticas, como que construídas pelo mesmo carpinteiro. Os tetos das casas estavam cobertos por uma grossa camada de neve, clara como glacê. Suas diminutas chaminés vomitavam uma tímida fumaça de lenha úmida. A paisagem branca à sua volta era pitoresca. A rua principal – na verdade, a única – tinha como transeuntes apenas algumas galinhas e cabras mais ousadas que caminhavam indiferentes ao frio sobre a fina camada de lama congelada. Não era tão cedo, e alguns habitantes já estavam de pé em suas sacadas. Todos que ali estavam olharam fixamente para do recém-chegado. O silêncio reinava no lugar. O visitante podia ouvir claramente o som dos pássaros que cantavam no interior do bosque, assim como o ranger do abrir e fechar das janelas das casas mais afastadas. Era capaz de escutar até mesmo os passos dos moradores no interior das casas vizinhas, além do ruído de canecas e panelas sendo colocadas sobre as mesas. A experiência era curiosa, pois de onde o forasteiro viera, aqueles pequenos ruídos da vida cotidiana jamais eram ouvidos com tamanha clareza, e quase sempre passavam despercebidos. Por algum motivo, sentiu prazer em ouvi-los. Por outro lado, percebeu, também, que não escutava os ruídos inerentes a um lugar habitado por humanos, como os burburinhos e diálogos dos habitantes locais. Não ouvira, até então, sequer uma única palavra, fosse advinda do interior das cabanas ou das sacadas de onde alguns habitantes se reuniam para observá-lo.
Certamente estão acanhados com minha presença.
Sua anfitriã apareceu de súbito, colocando a mão em seu ombro. Como de costume, entregou-lhe a lousa:
“Bom dia! O senhor amigo deseja que eu lhe apresente aos moradores daqui?”
Com preguiça de escrever, o homem recusou a lousa, mas aceitou o convite, balançando a cabeça em sinal de positivo.
A jovem o levou até uma casa próxima e os dois subiram os degraus que davam para a sacada.
“Este é o senhor Lebedev e sua esposa, senhora Yaroslava. Eu estava com eles quando o encontramos desacordado na neve” – escreveu a jovem diante de uma casal de meia idade.
_ Prazer em conhecê-los – disse o forasteiro estendendo a mão –, e muito obrigado por salvarem minha vida.
Os moradores corresponderam ao aperto de mão, mas gesticularam para que o recém-chegado escrevesse o que acabara de dizer.
O forasteiro não pôde crer que, além estar sob os cuidados de uma surda-muda, as primeiras pessoas que ela o apresentara, também eram.
Ao longo da vila, os demais moradores se aproximavam, curiosos e desejosos de serem apresentados ao recém-chegado. Ele notou, intrigado, que todas as pessoas que se acercavam tinham uma pequena lousa pendurada no pescoço por uma tira de couro, como uma bandoleira de espingarda. Estaria ele numa vila só de pessoas surdas-mudas? – ponderou – Já havia ouvido histórias de vilarejos repletos de leprosos, mas uma vila de surdos-mudos? Os portadores do flagelo da hanseníase teriam motivos para serem afastados do mundo, mas qual seria o nexo de isolar pessoas surdas-mudas?
Tal moléstia obviamente não era contagiosa. Na verdade, sabia não se tratar de uma doença, mas sim uma deficiência física que não maculava em nada seus portadores.
Tudo aquilo era intrigante demais, surreal demais.
Onde vim parar?
O forasteiro teve vontade de questionar a jovem a razão de todos se comunicarem através das lousas, mas não teve coragem de fazê-lo na frente de todas aquelas pessoas. Seria embaraçoso, talvez indelicado. Só mais tarde perceberia que, apesar de sua alma de jornalista, há muitos anos não ponderara uma pergunta ou comentário, mesmo que ofensivo. Mas ali, naquele momento, não soube o porquê, e resolveu guardar a questão para quando estivesse a sós com a jovem. Uma coisa era certa: pôde ver nos semblantes daquelas pessoas uma ternura que jamais testemunhara. Era como se todos ali fossem munidos de um coração amigo e puro. Sentiu uma hospitalidade de alma que nunca havia recebido. Algo fraternal e verdadeiramente gratuito.
De volta à cabana, o homem quis obter a resposta para o que vira, e começou mais um diálogo de giz- com sua anfitriã.
“Por que ninguém da vila fala? São todos surdos- mudos?”
A jovem franziu a testa com a pergunta e a respondeu prontamente:
“Não! Ninguém aqui é surdo ou mudo. Aliás, aprendemos que o termo “surdo-mudo” não deve ser usado, pois os surdos não são necessariamente mudos. Eu ouço tudo com muita clareza. Aliás, todos aqui podem ouvir perfeitamente. Também temos nossas cordas vocais intactas.”
“Mas então, por que aquelas pessoas não se comunicam através da fala? Por que não usam suas vozes? E por que parecem não escutar o que eu falo, se ouvem minhas perguntas?” – Indagou o estranho erguendo as sobrancelhas.
A resposta o deixou ainda mais intrigado:
“Nós nos comunicamos somente através da escrita. Quanto às suas palavras, podemos ouvi-las, mas não conhecemos seus significados quando pronunciadas. Jamais escutamos a estranha melodia das letras. ”
“Mas por Deus, por que isso?”
“Porque crescemos e aprendemos assim.”
“E quem lhes ensinou a não falar, quero dizer, a se comunicarem pela escrita?”
“Foi nosso velho amigo”.
“Velho amigo? Quem é ele? E por que inventou tal loucura?”
“O velho amigo foi o fundador da nossa vila, sendo o primeiro a chegar aqui. Depois dele, outras pessoas vieram à procura do silêncio. Ele e os demais decidiram que só se comunicariam através do coração e da escrita.”
“Mas por quê? O que o levou a isso?”
“Ele diz que o mundo foi destruído pelas palavras, e que o homem arruína seu próximo com a lâmina afiada que possui entre os dentes. Desde então, quando chegou a essa verdade, jamais pronunciou outra palavra. E, assim como ele, as pessoas que depois chegaram, e seus filhos também. Meus pais nasceram e cresceram na vila e jamais pronunciaram uma palavra. Eu e meu irmão também crescemos na paz do silêncio, livre da fala.”
“Mas isso é uma loucura!!” – Escreveu o homem com uma expressão de desaprovação.
“Não! O velho amigo e os demais anciãos nos explicaram, que sempre que a raiva envenena nossos corações, nossas bocas vomitam o ácido corrosivo das ofensas verbais. Se estivéssemos sofrendo do mal da inveja, ou com a compulsão por criticar gratuitamente alguém, nossas calúnias poderiam ser ditas em voz alta, e o som da discórdia acabaria sempre alcançando os ouvidos de todos. Contudo, se respeitarmos a filosofia da vila, todas as vezes que a raiva ou a inveja nos atingir; se tivermos a paciência de escrever o que estamos sentindo e o que desejamos dizer, depois de ler nossas próprias palavras, de vê-las materializadas pelo branco do giz, podemos compreender o quão prejudicial seria se os demais ouvidos acabassem sendo atingidos pelas agulhas do rancor e da maldade. Por isso, a regra vigente em nossa comunidade é que, sempre que formos assolados por algum sentimento que não seja nobre e construtivo, devemos primeiro escrevê-lo na lousa e deixá-la na nossa frente, parada, para que confrontem e provoquem nossas consciências. Sempre acabamos por apagar as palavras ofensivas sem mostrá-las a ninguém. Assim, os dardos venenosos que seriam cuspidos de nossas gargantas são esquecidos e viram pó, lançados ao vento quando friccionadas pelo apagador.”
O homem coçou a cabeça, incrédulo. Tudo aquilo, somado ao frio cortante que entrava pela janela, provocou no homem uma forte dor de cabeça. Era demais para um só dia. Pediu à moça para descansar um pouco e foi deitar-se. Só despertou no dia seguinte.
A jovem o esperava com um generoso café da manhã: pão fresco, ovos mexidos, uma caneca de leite de cabra morno e um generoso pedaço de queijo. O homem já havia despertado há algum tempo, mas permaneceu deitado, matutando, pensando em tudo o que a menina loira lhe havia dito. Estaria ele diante de uma loucura generalizada? Ou seria um caso de dominação de uma mente deturpada sobre mentes inexperientes e indefesas? O que lhe assustava mais era o fato de estar convicto de que tudo aquilo não passava de uma sandice, mas que no fundo, não deixava de fazer sentido. Todavia, ainda assim, precisava ter uma conversa com o tal velho fundador da vila. Queria descobrir a fonte daquele excêntrico meio devida.
A jovem levou a bandeja com o café até a pequena mesa em que o homem estava sentado. Os cabelos dourados da anfitriã se esparramaram por sobre a mesa. O forasteiro não pôde evitar em compará-los com as tranças da personagem dos irmãos Grimm. Pensou que ela deveria contar com vinte e três ou vinte e quatro anos de idade, no máximo. Tinha vinte e dois. Mesmo diante da diferença de idade, e sabedor do respeito que deveria manter, não pôde deixar de sentir-se atraído por uma criatura tão linda, ainda que imersa naquele mundo de mudos voluntários.
O estranho gesticulou enquanto mastigava um pedaço de pão, pedindo a lousa e o pedaço de gesso:
“Quero ver o velho.” – Escreveu, secamente.
“Eu sei.”
“Pois então, leve-me até ele, por favor…” “Ele também quer conhecer o senhor amigo.” “Ótimo. Pode me levar hoje mesmo??”
“Ainda não.”
“POR QUÊ?” – Escreveu com violência, mantendo a testa franzida. Estava contrariado e fez questão de demonstrar isso à jovem.
“Por que o senhor amigo está gritando?” – Redarguiu a jovem com um olhar assustado.
Ruborizado de vergonha, o homem apagou a resposta da jovem com as costas da mão e refez a pergunta, desta vez com letras menores, precedida de um pedido de desculpas.
“Obrigada por ficar mais calmo, senhor. O velho amigo disse que só daqui a algum tempo o receberá” – respondeu a jovem com um sorriso.
“Mas por quê?”
“Porque o senhor amigo ainda não aprendeu a escutar o silêncio. Só depois que acostumar seus ouvidos a captar os sons relevantes da vida é que ele irá recebê-lo.”
Resignado, escreveu algo na lousa, entregando-a com um sorriso:
“Por favor, pare de me chamar de “senhor amigo”. Me chame de você. Na verdade, pode me chamar por meu nome: Yuri.
As maçãs do rosto da jovem ficaram vermelhas. O homem a achou ainda mais linda quando envergonhada. Ela não teve coragem de fitar os olhos de Yuri ao devolver a lousa.
“Me chamo Alina”
“Lindo nome. Só não é mais lindo que seus olhos.”
Alina levantou-se, deixando escapar um risinho baixo. Apesar da diferença de idade, ela já havia notado a beleza de Yuri. Alto e forte, a compleição física e os cabelos viçosos do estranho chamaram a atenção da jovem desde o primeiro momento que o viu, mesmo moribundo e semi congelado.
Visivelmente acanhada, a camponesa pegou o balde onde trazia o leite pelas manhãs e saiu, sem olhar para trás. Yuri sorriu ao ver que a jovem não se dera conta de que já havia trazido leite. Ele pegou a lousa, escreveu algo, e deixou-a cuidadosamente por sobre a cama, com uma única frase escrita:
“Obrigado por ter salvo minha vida.”
VI
A lua e o sol trocaram de lugar por muitas vezes. Yuri passava os dias caminhando pelos bosques próximos. Pela primeira vez em sua vida escutava o que o mundo realmente tentava lhe dizer, mas que nunca ouvira por conta de sua surdez mundana. Sua necessidade por se comunicar com outra pessoa através da fala diminuía cada vez mais. Sentiu-se mais leve e invadido por uma suave paz interior. A abstinência da fala parecia um revigorante descanso. À noite, juntava-se aos saraus, onde dois rapazes se reuniam para tocar seus violinos. Yuri Percebeu como se comunicavam através das cordas de seus instrumentos e como as notas pareciam ligar os corações de todos os demais ouvintes, numa conversa mística de almas.
O visitante da capital também passava muito tempo na “biblioteca” da vila: um barraco melhorado, com um modesto acervo de livros, em sua maioria clássicos da literatura russa e algumas obras de Platão, Aristóteles e outros filósofos gregos pós-socráticos. Muitos dos livros eram de poesia. A maioria escrita à mão em papiros rústicos, com poemas assinados por autores desconhecidos. Ao ler as primeiras linhas, o ex-jornalista do Pravda ficou encantado com o tema bucólico e singelo dos versos. Mais tarde, descobriu que alguns dos poetas nasceram e ainda viviam na vila. Queria conhecê-los.
As semanas se passaram e não tardou muito para que Yuri se sentisse um dos moradores da vila. Ganhou uma lousa, presente de um dos habitantes, e já conversava com todos do lugarejo com certa destreza. Levou alguns dias até pegar o jeito certo das comunicações escritas. Os interlocutores utilizavam um curioso método: para os cumprimentos e recados rápidos, escreviam suas mensagens nas lousas, viravam-na e depois apagavam em seguida. Nas conversas mais demoradas, quem iniciasse a comunicação escrevia sua fala, enquanto o outro aguardava. Ao entregar a lousa para a outra pessoa, estendia a mão e recebia a lousa limpa da outra pessoa, a fim de que, enquanto ela lesse sua primeira parte da mensagem, pudesse continuar a escrever, e assim, iam trocando as tábuas sucessivamente.
Além de quedar-se hábil nas trocas de lousas, Yuri também aprendeu a tosquiar ovelhas, ordenhar as vacas e até alguns princípios básicos de carpintaria. Outrora, sempre desprezou os trabalhos braçais, mas ficou surpreso com a paz de espírito que a labuta lhe proporcionava ao fim do dia. O trabalho era encerrado com o guardar das ferramentas, ao contrário dos ofícios ditos intelectuais, que não cessavam nunca, e assolavam a mente de seus realizadores até durante o sono.
Não tardou para que Yuri tivesse a sensação de que havia nascido ali, no meio daquele recanto perdido, e que jamais conhecera o mundo lá fora. Ainda assim, sentia-se inquieto. Aguardava, impaciente, a entrevista com o homem que idealizou aquele estilo de vida. Queria conhecê-lo e descobrir o que realmente o havia motivado. Seria loucura ou uma inspiração divina? Era isso o que desejava saber.
E assim aconteceu. Um dia, quando conversava descontraído na varanda de um vizinho, Yuri recebeu a lousa de Alina:
“Vamos. Ele pediu que o levasse até ele”.
Os dois tomaram uma pequena trilha floresta adentro. Caminharam por mais de meia hora por entre árvores e campos de flores, cujas cores explodiam junto com o aroma da
primavera que acabara de chegar. Pararam para descansar sobre um tapete de musgo verde, como um caminho cuidadosamente pavimentado pela mãe natureza. O sol catalisava as cores dos elementos vivos e inanimados que formavam aquele cenário paradisíaco.
_ Alina! – Chamou-a Yuri em voz alta, fazendo-a virar em sua direção.
Ficou curioso em saber se a jovem reconhecera o próprio nome falado, mas preferiu não perguntar nada à menina. Gostou da sensação de vê-la responder seu chamado. O forasteiro aproximou-se da jovem, segurando suas duas delicadas mãos que, mesmo receosas, não ofereceram resistência. A visão diante de si o fez perder o fôlego. Os cabelos loiros de Alina refletiam a luz do sol, formando uma leve auréola em sua volta. Ele acercou-se do rosto angelical, olhou-a no fundo de seus olhos oceânicos e disse com uma voz branda:
_ Eu te amo.
A jovem deu de ombros, sorrindo. Desapontada por não entender a frase, gesticulou para que Yuri escrevesse o que acabara de dizer. Ela percebeu, pelo tom de sua voz, tratar-se de algo especial, assim como pela maneira com que ele lançara seus olhos contra os dela. Preferiu conter-se e evitou o olhar penetrante do forasteiro.
Yuri pegou sua lousa e escreveu algo mantendo o olhar fixo na jovem, como se seus dedos fossem guiados por outro sentido. Alina recebeu a lousa, virando-a lentamente. Suas maçãs do rosto ficaram num vermelho brasa. Ela sorriu e olhou envergonhada para o chão, fugindo pela lateral, indo esconder-se atrás de uma árvore.
A lousa em suas mãos tinha o desenho de um coração.
Yuri foi até Alina e parou à sua frente, encarando-a em silêncio. Ela cessou o sorriso e correspondeu o olhar do rapaz, perguntando com os olhos se ele falava sério. Ao ler a resposta no semblante de Yuri, Alina pegou a lousa e escreveu algo, devolvendo-a ao forasteiro.
A tábua verde também tinha um coração delicadamente desenhado.
Yuri aproximou-se de Alina vagarosamente e os dois se beijaram…
VII
A suave batida na porta da pequena cabana denunciava a chegada de visitantes. O velho teve dificuldades de levantar-se de sua cadeira para atender ao chamado. Já contava com mais de noventa anos. Ainda assim, vivia sozinho.
O ancião recebeu os dois jovens com um sorriso meigo, típico de um amoroso vovozinho. Era curvado, com a face encarquilhada de marcas da vida e tinha uma rala cabeleira prateada. Sua cabana era modesta, sem qualquer conforto, mas ao menos estava bem aquecida por seu pechka – um fogão a lenha – que emanava uma intensa luz vermelha de seu interior, recém- alimentado com uma generosa porção de lenha.
O velho convidou os dois para que se sentassem em banquinhos cobertos por um forro fino de lã, servindo-lhes, em seguida, um chá de raiz dourada.
O anfitrião tinha uma pequena lousa envelhecida ao seu lado. Suas mãos enrugadas e trêmulas eram fracas, mas ainda obedeciam seus pensamentos, e escreveram uma longa mensagem:
“Seja bem-vindo, amigo! Finalmente nos conhecemos! Meu nome é Nicolai Fadeyeva, mas pode me chamar de velho. Soube que deseja falar comigo. Obrigado por dar atenção a esta inútil e obsoleta criatura! Tenho muito gosto em conversar com as pessoas, especialmente com os que vêm de fora e se juntam a nós, apesar de quase nunca recebermos muitos visitantes. Pois me conte um pouco sobre sua pessoa”
O forasteiro leu a mensagem e sorriu, respondendo em seguida:
“Chamo-me Yuri Ivanovich. Vivo, quero dizer, vivia em Moscou, onde trabalhava como jornalista no Pravda.”
“Pravda? Nunca ouvi falar, mas tenho certeza de que se trata de um formoso periódico!”
Yuri não pôde deixar de achar curioso encontrar alguém que jamais ouvira falar no jornal mais importante da União Soviética.
“E como veio parar aqui, em um lugar tão remoto?” – Perguntou o velho.
“Resolvi abandonar meu emprego e deixar Moscou definitivamente para trabalhar nas minas de carvão de Stalinsk. Peguei o trem para o leste, e, para meu azar, depois de alguns dias de viagem, passada a cidade de Novosibirsk, a locomotiva descarrilou. Vi-me preso nas paisagens inóspitas cobertas de gelo, no meio do nada” – Escreveu o jovem, entregando em seguida sua lousa ao velho e recebendo a tábua limpa do ancião, prosseguindo com a escrita:
“Impaciente, e como sempre, tolo, não quis esperar as longas horas até que os mecânicos e engenheiros chegassem e recolocassem a máquina a vapor nos trilhos. Restava-me pouco tempo para chegar à região das minas, a fim de apresentar-me no posto de trabalho. Certamente não manteriam meu emprego se não chegasse no dia prometido, e decidi encontrar outro meio de transporte. Caminhei durante alguns quilômetros até um pequeno vilarejo na tentativa de alugar um cavalo ou encontrar alguém que me levasse até meu destino. O problema foi que, lá chegando, o lugar foi repentinamente assolado por uma violenta tempestade de neve. Busquei refúgio na única taverna do lugar. O dono do estabelecimento me indicou o caminho para a cabana do proprietário de uma charrete. Imprudentemente, resolvi sair no meio da tormenta em busca da propriedade do homem que poderia providenciar-me o transporte até Stalinsk. Acabei me perdendo no meio da floresta e sucumbi, inconsciente. Não fossem os moradores de sua vila ter me encontrado, não estaríamos mantendo esta conversa.”
“Graças aos deuses!” – Respondeu o velho após ler a resposta do jovem visitante. – “Pois o acaso não existe. Por algum motivo que jamais saberemos, o senhor foi trazido até nós. Mas diga-me, o que o fez abandonar a carreira de jornalista e deixar Moscou?”
Yuri hesitou. O giz chegou a tocar na lousa esboçando uma resposta, mas sua mão não se moveu.
O velho notou que a pergunta o deixara desconsertado, e rapidamente mudou o rumo da conversa:
“Pois então, diga-me se está gostando de nossa vila! Não é grande e não tem as agitações da nova capital, mas se leva uma vida boa, não acha?”
“Sim senhor, ela muito me agrada. Contudo, desde o primeiro dia que cheguei, confesso que tenho me perguntado por que o senhor e os moradores da vila optaram pelo silêncio voluntário. Com todo o respeito que guardo por vossa iniciativa, não sei se é a melhor forma de convivência, e às vezes me faz um pouco de falta ouvir a voz de meus pares, mesmo já estando um tanto adaptado aos diálogos escritos” – respondeu Yuri.
“Meu filho, as pessoas – seja nas grandes cidades ou nos pequenos vilarejos – estão doentes por conta do pernicioso hábito da fala, assim como também pela falta de um dos alimentos mais importantes para nossa alma: o silêncio. Sem ele, nossos semelhantes não conseguem ouvir seus próprios sentimentos, tampouco são capazes de refletir perfeitamente sobre suas miseráveis condições” – e prosseguiu:
“A fala arruína, ofusca nossas necessidades mentais mais imediatas, e abre espaço para nossos desejos mais supérfluos, carregados de vaidade, egoísmo e pedantismo, sem mencionar nosso terrível impulso de vendeta na tentativa de retaliar as ofensas recebidas, o que nos impele a lançar mão de outros agravos tão horríveis quanto os que foram recebidos. Porém, quando aprendemos a língua do silêncio, podemos controlar nossos pensamentos inúteis, conter nossos falsos ensejos, e o mais importante: alcançar o processo de reflexão preventiva de nossos atos” – e continuou:
“Nós, seres humanos, somos providos de razão, cuja característica mais pungente que nos diferencia dos animais irracionais é a capacidade de resistirmos aos nossos instintos. Mas, movidos pelo poderoso combustível das palavras irresponsáveis, e diante da consequente confusão mental causada pela desnutrição de silêncio de nossas almas, na maioria das vezes, só refletimos sobre nossos atos depois do prejuízo causado, gerando o excremento inútil do arrependimento. Pense bem: de que vale um pedido de desculpas diante de uma vida arrasada por um ato impensado, causado por uma palavra destrutiva? Pois só o silêncio inverte esta ordem que aí está, meu filho. A abstinência da fala nos proporciona a capacidade de refletirmos sobre nossas ações, antes de pô-las em prática.”
“Por outro lado – continuou o ancião -, pode-se perceber que a plácida comunicação pela escrita torna nossas mensagens mais limpas e vivas. Já tivestes a oportunidade de notar o terremoto que um bilhete contendo uma declaração de amor causa? Já reparastes como um pedido de perdão estampado no papel atinge o coração com muito mais força, alcançando-se o perdão com mais eficiência?” –ponderou o nonagenário.
Yuri pensou no que ocorrera entre ele e Alina no caminho para a casa do velho. Lembrou-se da reação da jovem ao ver sua mensagem em forma decoração.
O velho interrompeu a recente recordação de seu visitante estendendo-lhe a lousa com a continuação de seu raciocínio:
“O senhor já notou como as poesias românticas ficam bem mais profundas quando estampadas no papel branco, e são absorvidas através de nossa íris, ainda puras e imaculadas, livres dos germes de nossas bocas? Pois ganham contornos de escrituras sagradas, de verdades absolutas sobre o amor e a natureza!”
O jovem sorriu diante da comparação tão convincente e estendeu-lhe sua lousa em resposta:
“Admiro suas ideias, senhor Fadeyeva, mas me pergunto como conseguiu ensinar as crianças a ler e a escrever sem ensinar-lhes a fala antes?”
O velho sorriu e escreveu:
“Tivemos a sorte de receber, na primeira leva de moradores da vila recém-fundada, uma ex-professora de letras. Ela tivera contato com o ensino de pessoas afligidas pela surdez. Aos poucos a genial mulher foi criando novas técnicas, como a correspondência das letras e símbolos a coisas que as representavam. Tudo isso com o auxílio inicial de gestos, usados somente no momento inicial do aprendizado da escrita e abandonados posteriormente. Afinal de contas, nossas mãos também podem fazer as vezes do mortífero músculo de nossas bocas, e estaríamos, assim, trocando um mal por outro similar.”
O instinto do ofício de Yuri fez com que persistisse em suas perguntas, e entregou sua lousa ao velho com mais um questionamento:
“Contudo, o senhor não crê que nós, humanos, fomos agraciados com a fala, e que, por isso, seria antinatural não fazermos uso dela? Além disso, não acha cruel privar as crianças que nascem na vila de seu pleno potencial de comunicação? E se um dia o mundo lá fora bater à porta de suas casas? O que será dessas pobres almas se não puderem se expressar, se defender de igual para igual?”
O ancião sorriu novamente com a pergunta e respondeu, calmamente:
“Pois saiba meu filho, se um dia isto acontecer, que nossa filosofia de vida possa iluminar as mentes dos irmãos que aqui chegarem. Sei que, se por ventura nosso código de conduta chegasse aos ouvidos do mundo lá fora, seríamos chamados de loucos. Mas pobres deles que não tiveram o privilégio de experimentar o que vivenciamos. É claro que não se sente necessidade de algo que não se conhece, e suas mentes – dependentes do vil hábito de golfar palavras – jamais se sujeitariam de livre e espontânea vontade a nosso modo de conviver. Entretanto, tenho certeza de que há tantos muitos espalhados pelo mundo que, assim como eu, foram destruídos pela calúnia alheia, e que certamente gostariam de se juntar a nós, se a eles lhes fosse dada a oportunidade. Todos os que aqui por ventura chegarem e abdicarem do uso de suas línguas serão bem-vindos.
O jovem interlocutor focou intrigado. Não entendeu o porquê de o velho ter insinuado ter sido “destruído pela calúnia”.
Mesmo sabendo ser indiscreto, não resistiu e indagou: “O que aconteceu com o Senhor? O que o motivou verdadeiramente a tomar a radical mudança? Por que disse ter sido destruído pela calúnia?”
O ancião leu a pergunta, erguendo as sobrancelhas e retraindo os lábios, respondendo em seguida:
“É uma longa e triste história, meu jovem. Há muitos anos eu vivia com minha esposa e filhos. Isso foi em meados da década de sessenta do século passado, muito antes da revolução dos operários e camponeses de que tive notícia. Eu tinha uma respeitável função pública na antiga capital, São Petersburgo. Eu e minha família levávamos uma vida muito próspera e feliz. Morávamos numa linda casa, com empregados e uma imponente carruagem. Gozávamos de uma reputação ilibada. Éramos muito queridos por nossos amigos e vizinhos. Ao menos era esta a minha ilusão. Desafortunadamente, nossa felicidade foi o motivo de nossa ruína. A maldade dos homens vazios acabou por assassinar minha vida de realizações. Almas invejosas do meu próprio local de trabalho, e que se intitulavam colegas e amigos, incomodados com minha ascensão, lançaram falsos boatos de que eu era infiel à minha esposa e que tramava contra os interesses do Tzar. Naquela época, nossa mãe Rússia ainda não conhecia o governo do proletariado, mas as ideias anti-imperialistas há muito já assombravam as monarquias, e qualquer calúnia desta estirpe significava a ruína do caluniado, que passava a sofrer perseguições” – escreveu o velho com um olhar de tristeza, prosseguindo o relato:
“Foi exatamente o que ocorreu comigo. As bocas dos homens espalharam as mentiras como se fossem penas de ganso de um travesseiro, lançadas do alto de uma torre. Depois de espalhadas, pode-se até recolher algumas das penas, mas a tarefa de recuperá-las a todas é impossível. Pois este ditado popular é por deveras verdadeiro. Como consequência, fui demitido e em pouco tempo perdi todos os meus bens. Os anos de lealdade dedicados ao serviço público foram jogados à lama imundados porcos, assim como o nome de minha família. Com o passar do tempo, as mentiras foram aumentando, como também o desespero de minha esposa. Até mesmo meus pobres e inocentes filhos eram perseguidos na escola. Todos os nossos amigos se mostraram falsos como notas de quatro rublos e nos viraram as costas. Nossa situação financeira degringolou-se por completo e chegamos ao ponto de não termos sequer um mísero teto para passarmos a noite. Desesperada e humilhada, minha esposa resolveu ceifar a própria vida, atirando-se nas águas geladas do rio Neva. Sozinho, e sem ter como alimentar meus filhos com comida e amor paternal, não tive outra opção senão deixá-los em diferentes abrigos públicos. Com a alma em frangalhos por perder o amor de minha vida e por abandonar meus filhos, minha existência não fazia mais sentido algum, e só me restava passar os dias na beira do rio, tal qual Narciso, olhando meu reflexo, que me convidava a lançar-me na reconfortante escuridão e ir ao encontro de minha falecida companheira. A fim de não cometer o crime mais condenável aos olhos de Deus, resolvi deixar a capital em direção ao interior, num autodesterro. Após vagar por muitos lugares, finalmente encontrei este recanto isolado nestas florestas.”
“Com minhas próprias mãos – prosseguiu -, contando apenas com a ajuda do Todo Poderoso, construí uma pequena cabana. Pouco tempo depois encontrei quatro pobres desgraçados, fugitivos de campos de trabalhos forçados que se perderam nos bosques próximos, e os recebi como se meus irmãos de sangue fossem. Assim como eu, todos tinham destinos desgraçados em comum, e encontravam-se cansados das máculas do mundo. Resolvemos fundar o pequeno vilarejo. Porém, fizemos um pacto, e decidimos que as crianças que ali nascessem teriam os ouvidos limpos da imundície da fala humana. Seus tímpanos só seriam tocados pelos sons dos pássaros, pelos pios das corujas ou pelo uivo dos lobos, e seriam presenteados com o bálsamo divino do silêncio. O único fenômeno acústico produzido pelos moradores da nova vila seria o advindo da música. Mas, ainda sim, somente a melodia instrumental, sem a contaminação de qualquer palavra” – e concluiu:
“Com o passar dos anos, pouquíssimas pessoas chegaram até aqui, e as que resolveram ficar, abraçaram nossa filosofia de vida. E assim temos vivido felizes, esquecidos pelo mundo adoecido.”
O ex-jornalista ficou em silêncio, olhando para o vazio. Com a cabeça baixa, buscou sua lousa e a estendeu ao velho após escrever com os olhos marejados:
“Mas senhor, devo dizer-lhe que não é só a fala a única causadora da discórdia e miséria humanas. É com muita vergonha que confesso que eu mesmo fui responsável pela ruína de um homem inocente. Movido pela ordem de meu editor- chefe, fundada em um boato maldoso que corria pelas repartições e ruas de Moscou, redigi um artigo acusando um pobre homem de desvio de verbas públicas eprevaricação.”
“Diante da injustiça de minhas palavras inconsequentes
– prosseguiu Yuri – e movido pelo ódio cego, o caluniado atentou contra minha vida a tiros na redação do jornal,e acabou encarcerado por tentativa de assassinato. Foi julgado e condenado a longos anos de trabalhos forçados nos Gulags. Todos sabem que poucos são os pobres coitados que de lá retornam. A indigesta dieta de pão salgado, água e desespero não tardou a tirar a vida do condenado. Dois meses depois de sua morte, descobriu-se que o homem não era culpado das acusações que lhe foram feitas, mas sim inocente como uma criança de berço. Não fosse por minha matéria caluniosa, ele jamais teria engendrado o atentado contra minha pessoa, e estaria vivo até os dias de hoje. Não suportando a vergonha de meu ato, e condenado por minha consciência, resolvi deixar tudo para trás e partir em direção a Stalinsk, a fim de encontrar um trabalho braçal no interior da Sibéria. Na verdade, eu mesmo tratei de julgar-me e impus-me uma pena vitalícia de solidão e labuta pesada nas trevas das profundas minas de carvão.”
“Pois então – concluiu o jovem – saiba o senhor, que o veneno da mentira também pode ser espalhado pela escrita.”
O velho leu e balançou a cabeça, olhando para Yuri, escrevendo a resposta, calmamente:
“Meu filho, o que asseverastes pode parecer convincente, mas percebas que a calúnia chegou a ti através da fala. Teu superior inventou-a, ou então, a ele foi transmitido o boato maldoso, sendo certo que as bocas dos homens foram as fontes das águas envenenadas e lançaram a primeira semente da calúnia. O pobre diabo cuja vida fora destruída já havia sido atingido pelo embuste. Vós mesmos dissestes que o boato, a sórdida patranha, já corria aos quatro cantos. Ademais, recebestes ordens de teus superiores para emporcalhar as folhas virgens do papel com a tinta negra da mentira. Fizestes isso em sinal de obediência, pelo salário que comprava vosso pão. Fostes tão somente só mais um elo da infame corrente da discórdia e maldade humanas.”
Yuri permaneceu em silêncio. O velho apagou o texto lido e tornou a escrever:
“Não te tortures. Sei que te arrependestes, pois teu ato de autoexílio prova tal fato. Mas sei, também, que teus ouvidos outrora surdos já são capazes de ouvir teu coração. Aqui, encontrastes uma comunidade na qual nossos pensamentos têm o filtro da escrita. Se fosse dada a todas as pessoas do mundo a oportunidade de ter em mãos um livro com o registro escrito de tudo que disseram ao longo de suas vidas infelizes, certamente se envergonhariam, e, se pudessem ver com os próprios olhos as cruéis palavras traçadas pelo giz, antes de abrirem suas bocas, jamais teriam tido a coragem de pronunciá-las. Aqui, em nossa vila, só transmitimos a nossos semelhantes o que gostaríamos que nos fosse transmitido. Só viramos as lousas para nossos interlocutores depois de nossos próprios corações terem lido nossas palavras. Com a fala, isso não é possível. Não se pode perfurar os tímpanos de um irmão com palavras afiadas, e depois, pretender retirá-las, como se fossem farpas encravadas. O ferimento já fora causado.”
“Por fim – escreveu o senhor de idade – sublinho o fato de que, ao contrário de nosso pacífico silêncio conciliador, o mundo impõe formas verdadeiramente desumanas de silêncios, seja pelo meio da força ou da injustiça dos homens. Esses, sim, são merecedores de nossa reprovação e repúdio, pois mais injusto é o silêncio de uma criança faminta que se contorce de fome e lhe falta forças para implorar por comida. Mais cruel é o silêncio da exploração dos trabalhadores do mundo, escravizados pelo capital e renegados à miséria total, varridos para debaixo dos tapetes dos poderosos. Mais pernicioso é o silêncio da corrupção, que corrói os tesouros do povo e o lança na mais degradante pobreza. E, por fim, o pior de todos os silêncios: a indiferença. O confortável silêncio voluntário das pessoas que, ao verem todas essas atrocidades, optam por calarem-se e afundam suas cabeças em suas vidas cotidianas de realização pessoal, de acumulação de patrimônio e busca desenfreada pelo prazer” – e concluiu:
“Logo, meu filho, cabe a ti escolher. Se quiseres partir para cumprir tua triste pena nas minas de carvão e encontrar a escuridão em teu autoflagelo, ninguém o impedirá. Mas, se ao contrário, decidires ficar e perdoar-se, deixando suas ilusões para trás, assim como a cigarra abandona a velha casca apodrecida, serás muito bem-vindo, e encontrarás uma terra feliz e em paz, consigo e com o mundo.”
Yuri leu e releu as palavras do ancião. Não poderia deixar de admirá-lo ainda mais. Não só por suas ideias, mas principalmente por ter sido vítima da maledicência humana e, mesmo assim, quando diante de um malfeitor que praticou um ato idêntico aos homens que destruíram sua vida, o velho o chamou de “filho” e o acolheu em seu mundo, presenteando-o com a redenção.
Com o rosto coberto de lágrimas, Yuri beijou as mãos marcadas do velho e disse que ficaria.
“Vá, meu jovem amigo! – Respondeu o velho. – Vá com a futura mãe de seus filhos e seja feliz sob a benção de Deus!”
O visitante ficou perplexo.
“Mas como o senhor sabe que eu e Alina nos amamos?”
– Replicou Yuri.
“Meu filho – respondeu o ancião -, saber ler o amor nos olhos de uma pessoa é a forma mais sublime de alfabetismo. A palavra amor, a mais importante da vida, estava como que tatuada nos olhos de Alina na primeira vez em que ela veio avisar-me sobre sua chegada.”
Emocionado, Yuri abraçou o velho e partiu, deixando para trás um peso enorme, e levando consigo uma alma renovada.
VIII
Passados três meses, Yuri e Alina trocaram alianças. A cerimônia foi realizada por um dos moradores da vila. Os progenitores de Alina faleceram quando ela ainda era pequena e seu irmão mais velho fez as vezes de pai da noiva, entregando-a ao esposo por ela escolhido. Foram viver na cabana de Alina, que outrora pertencera a seus pais.
Um ano depois, tiveram que adaptar um dos cômodos para a chegada do bebê. Yuri finalmente começava a adquirir raízes definitivas naquele mundo silencioso.
O mais novo casal jamais brigava. Sempre que Yuri escrevia algo que pudesse ferir sua amada, tratava de apagar as duras palavras rapidamente. Ele percebeu que o método do velho realmente era funcional. E assim, o novo casal foi vivendo feliz. Suas almas mantinham-se próximas e a perspectiva de uma nova vida de comunhão com os diálogos escritos deu ao ex-forasteiro uma tranquilidade de espírito que jamais sonhou em conhecer. Sua rotina era tranquila como as águas plácidas de um lago esquecido. Não sentia mais a necessidade de falar uma única palavra, pois não tinha mais o que dizer: só o que sentir.
Quando o pequeno Dmitri chegou, Yuri viu-se um novo homem. O sentimento de renovação e desdobramento de seu ser causou profundas marcas em sua alma. Sua vida começava a fazer sentido. Mas os poréns da vida são inimigos dos finais felizes, e quase sempre invadem as histórias reais. Não seria diferente com Alina e Yuri. Um dia, o mais novo pai do vilarejo estava em sua sala lendo, quando ouviu o bebê balbuciar algo. O simples acontecimento abalou Yuri. Durante dias o som de seu filho tentando pronunciar sua primeira palavra povoava sua mente com pensamentos conflitantes:
Pobre filhinho. Como pode um pai privar seu filho da comunicação com o mundo? – Pensava em penitência.
Como poderia proibir que a criança jamais conhecesse sua própria voz? Dmitri não teria o direito de decidir sobre seu próprio destino? Não teria ele a prerrogativa de optar se deseja ou não o silêncio?”
Por dias tentou exorcizar seus questionamentos que, para ele, eram mais do que louváveis, mas que, ao mesmo tempo, ameaçavam o paraíso que escolhera para viver. Contudo, ponderava sobre o bem-estar de seu filho. Temia que, no futuro, caso escolhesse ficar, o menino se rebelasse contra sua decisão de mantê-lo preso àquela realidade, por melhor que fosse.
Yuri levou a questão à Alina.
A jovem mãe foi veementemente contra a ideia de deixar a vila. Argumentou que a ela tampouco foi dado poder de escolha, mas que, ainda assim, era muito agradecida a seus pais por terem decidido em seu lugar. Alina tentou convencer o esposo de que seus progenitores tomaram a decisão correta, e que eles deveriam fazer a mesma escolha para Dmitri. Mas as súplicas de Alina para demover Yuri de sua ideia foram em vão. Partiram em pleno inverno.
IX
A viagem foi massacrante, e por pouco não custou a vida dos três retirantes. No caminho, ficaram perdidos em meio a uma tempestade de neve. Subiram e desceram várias colinas. Caminharam a esmo, tentando encontrar alguma estrada que os levassem a algum lugar. O cenário branco feria seus olhos que procuravam, desesperadamente, qualquer sinal de civilização. Já exaustos, tiveram a sorte de encontrar uma estrada. Continuaram a caminhar na esperança de encontrar um veículo que os levassem para algum abrigo. Suas preces foram atendidas, e algum tempo depois estavam na carroceria de um caminhão que os transportou até a estação de trem na próxima cidade. Não tinham muito dinheiro, mas o suficiente para as passagens de ida para o oeste.
Yuri decidiu pelos dois em tomar o caminho de volta a Moscou, a fim de tentar reaver seu antigo ofício. O jornalismo era a única coisa que sabia fazer, além de cortar madeira e tosquiar ovelhas – tarefas de grande utilidade na vila, mas que não seriam de muita serventia na capital.
E assim o fez. Ao chegar à capital, o moscovita conseguiu um emprego em um jornal de menor vulto, o Moskovskij Komsomolets. Com o dinheiro que recebeu adiantado, Yuri comprou roupas e mantimentos, e mudou com a esposa e o filho para um modesto apartamento funcional no subúrbio.
A readaptação ao mundo dos ruídos infernais – como chamava Alina – foi difícil. Ambos passavam por sérias dificuldades. A escrita de Yuri fora aprimorada, mas sua fala, suprimida pelos anos, deixou-o um tanto confuso na hora de se expressar. Fugiam-lhe as palavras.
A nova-velha rotina do jornalista era muito distante das águas plácidas de seu lago esquecido que deixara há tão pouco tempo. Yuri sentiu um baque forte. Para Alina, o choque fora ainda pior. Não sabia falar, tampouco compreendia o que as pessoas diziam. Por isso, acabou sendo tratada como uma doente mental, uma “retardada”, vítima de insinuações e risinhos dos vizinhos e estranhos nas ruas. Para ela, a simples tarefa de fazer compras transformara-se numa tortura.
No jornal, Yuri não vivia uma rotina muito diferente. Apesar de saber falar e compreender a tudo, sentia-se deslocado, isolado dos demais. Já não era, nem de longe, a figura extrovertida que perambulava pela redação do Pravda. Tinha a sensação de ser um intruso no meio de uma tribo estranha. Não pertencia mais àquele mundo. Durante as horas mais críticas do dia, nutria a vontade de introduzir tufos de algodão nos ouvidos. Não aguentava sequer ouvir as vozes de seus colegas. Tudo era um martírio: as fofocas, as provocações, as reclamações. Não via prazer nem mesmo nas anedotas das quais um dia gostou tanto. Percebeu que quase tudo que ouvia era de uma inutilidade absurda. O som das vozes soava como uma sequência de relinchos sem nexo. Nada mais fazia sentido.
Não tardou muito para que Yuri percebesse que seus colegas o excluíam. Já quase não conversava com ninguém. Preferia sempre o isolamento. Passava horas olhando para o nada, como que buscando uma memória ou uma imagem de sua vila, perdida no fundo de sua mente, mas que lhe aliviava a saudade. As coisas começaram a se deteriorar. Os demais jornalistas diziam pelos cantos que Yuri era incompetente e inútil. A gota d´água foi quando o redator-chefe exigiu que ele criticasse a obra de um jovem poeta. Yuri considerava os poemas do artista belíssimos, mas, para seu superior, suas linhas eram “dúbias e escondiam um teor contrarrevolucionário”. Além disso, havia feito uma ode a Deus em um de seus escritos, ato reprovável que ia de encontro às ideologias ateístas da época. A farsa veio logo à tona, e Yuri descobriu tratar-se de um desafeto de seu redator-chefe e recusou-se a escrever a crítica em desfavor do poeta. Seu superior acusou-o de insubordinação, e ameaçou denunciá-lo à polícia política. A pena seria severa. Naqueles dias, a conduta do jornalista poderia ser interpretada como traição. Seu chefe tinha fortes ligações com o partido e o insurgente poderia ver-se diante de uma pena de trabalhos forçados. A notícia de sua recusa se espalhou pelo jornal como o fogo na palha seca. Um de seus colegas que morava próximo à sua casa, encharcado de vodca no bar local, tratou de espalhar as novas sobre a conduta do colega “subversivo”. Yuri já era apontado como um inimigo do povo, além de ser casado com uma “surda-muda retardada”. A podridão parecia não cessar.
Um dia, ao chegar em casa, o jornalista encontrou Alina sentada em um canto, chorando copiosamente. Ela tinha ido ao centro da cidade com o bebê. Queria ir ao jornal e fazer uma visita surpresa ao esposo. Era a primeira vez que arriscava uma viagem tão longe. Para ela, Moscou era um mundo desconhecido. No meio do caminho, sentiu-se tonta com o som ensurdecedor das ruas: buzinas dos carros, sinos dos bondes, os sinais de trânsito, as risadas embriagadas dos bares. As gritarias transbordavam das janelas como pus saído de abscessos, quase sempre em tons de brigas, e deixavam a jovem enojada. Ela não entendia o que as vozes diziam, mas sabia tratar-se de mágoas e sofrimentos. Os sons se mesclavam e se desdobravam em ruídos diferentes, cada vez mais perturbadores. Alina ficou tonta. Sentando-se na calçada, deixou o bebê ao seu lado e levou as mãos aos ouvidos. Foi confundida pelos policiais que faziam a ronda com uma pedinte profissional. Pior ainda: uma mendicante que usava um bebê como ardil para comover suas vítimas e conseguir esmolas mais generosas. A mulher assustada não tinha consigo sua lousa. Ao sair de casa naquela manhã, estava tão ansiosa, que acabou por esquecer sua pequena tábua em casa. A muito custo conseguiu um pedaço de papel e um lápis. Escreveu, com mãos trêmulas, explicando que não falava e nem ouvia – preferia mentir que era surda a explicar sua insólita história – e disse estar a caminho do trabalho de seu esposo, mas que acabara passando mal.
A fim de certificar-se de que não se tratava de uma andarilha de rua inventando um conto de fadas, os policiais levaram-na de volta para casa no carro de polícia. Para sua desgraça, os vizinhos presenciaram a cena.
No dia seguinte, Alina ganhara mais um adjetivo carinhoso em sua longa lista. Além de “surda-muda” e “retardada”, ela agora era uma “salafrária”. As versões eram as mais variadas: alguns disseram que ela havia sido flagrada se oferecendo nas calçadas do centro, trocando carícias por um gole de vodca. Outros diziam que foi presa aplicando golpes e batendo carteiras.
“Ela usa a desculpa de ser deficiente para atrair suas vítimas, mas não engana ninguém” – disse um dos vizinhos.
Alina e Yuri já não suportavam mais. Queriam fechar os olhos e, ao abri-los, perceber que tudo não passou de um pesadelo. Sonhavam em reaver a paz de espírito que deixaram para trás. Queriam fugir de toda aquela sujeira. Partiram na semana seguinte em direção ao leste. Voltariam para o lugar de onde jamais deveriam ter partido…
X
O ranger dos freios contra os trilhos emitiu um longo silvo.
_ Estação de Novosibirsk!–Disse a voz estridente do fiscal, rasgando o silêncio da manhã.
Quando o trem finalmente parou, os passageiros que ali saltariam se puseram a angariar suas surradas malas. A viagem fora longa e todos estavam exaustos. A maioria dos que iam até a estação final olhavam pela janela, admirando a nova paisagem que os aguardava. Além da identidade de vidas sofridas, quase todos tinham o mesmo destino: as minas de Stalinsk. O lugar que Yuri havia escolhido para seu desterro, anos atrás.
O estranho casal que se comunicava por lousas tinha uma mala em cada mão, e a jovem carregava um bebê. Para a sorte de todos os demais passageiros do vagão, a criança era tranquila, e quase não chorou, o que proporcionou a todos alguns momentos de sono durante a viagem.
Os pais do bebê desceram do trem e caminharam em direção à saída, cruzando o portão da estação e desaparecendo no mar branco da Sibéria.
Yuri adquiriu uma pequena carroça e uma mula. Lembrou-se da terrível tempestade que quase o matou. Não poderia percorrer o trajeto a pé com a criança. Pagou pela carroça com o pouco dinheiro que conseguiu juntar e um relógio de ouro puro herdado de seu avô. O casal não levava muito, somente algumas roupas, livros e o pequeno Dmitri. Nenhum dos dois sabia o exato caminho de volta à vila escondida. Yuri só se lembrava que o ponto de partida de sua busca teria de ser o local onde seu trem havia descarrilado alguns quilômetros depois de Novosibirsk. Chegando lá, teriam de encontrar o vilarejo com a taverna do homem gordo e de bigode farto. Dali, fariam o caminho na direção da casa do senhor Ivan, na época o único que possuía um cavalo, e, se tivessem sorte, encontrariam o caminho até a silenciosa vila. A região era cercada por infindáveis florestas de taiga, e o casal podia confundir-se facilmente. Por isso, teriam de se esforçar.
Só no dia seguinte chegaram à altura correta em que o trem de Yuri havia saído dos trilhos alguns anos antes. Sua memória serviu de guia e o ajudou a reconhecer os pontos de referência. Depois de algumas horas, chegaram até a estalagem que buscavam. Yuri entrou em busca do mesmo homem que o instruíra a pegar o atalho que quase o matou, mas que acabara levando-o até sua esposa. O dono do bar recordou-se do jornalista. Ficou surpreso ao vê-lo. Não esperava encontrá-lo novamente nesta vida. A tempestade daquele fatídico dia tirou a vida de um de seus conhecidos, e o taverneiro deu como certa a morte do jornalista. O esposo de Alina pediu ao administrador do bar que o ensinasse novamente o caminho para a cabana do senhor Ivan. O homem ficou perplexo. Afinal de contas, viu que Yuri tinha sua própria carroça puxada por uma mula e não compreendeu o porquê de seu pedido. Ele disse sentir muito, mas o camponês havia morrido há quase dois anos.
Ainda assim Yuri insistiu.
Assim como um raio não cai no mesmo lugar duas vezes, uma locomotiva também não descarrilaria por mais de uma vez no mesmo local – pensou o dono da taverna. Para aumentar o mistério, perguntava-se por que o forasteiro fazia questão de chegar à casa do falecido, se sabia que não haveria mais ninguém na propriedade. Não fazia sentido. Entretanto, ponderou secretamente que o povo da cidade grande tinha suas esquisitices, e explicou mais uma vez como chegar até a cabana do desencarnado Ivan Morozov.
Os dois partiram seguindo a trilha indicada. É óbvio que Yuri sabia que, caso seguisse as instruções do anfitrião gordo, ele e Alina chegariam a uma cabana abandonada. Por isso, tentou lembrar-se do caminho errado que fizera.
Mas como alguém pode refazer um caminho errado? – ponderou.
Naquela ocasião, a tempestade de neve impediu sua memória congelada de guardar o caminho que tomara. Yuri usaria um método óbvio: quando diante das bifurcações, tomaria as entradas contrárias às da instrução que recebera do dono da estalagem. Assim fizeram. Subiram algumas colinas, passaram por bosques desconhecidos, mas pareciam estar andando em círculos. E realmente estavam.
Por ironia, depois de idas e vindas, acabaram chegando à cabana abandonada do camponês morto – a mesma que Yuri procurou com afinco anos antes, e que à época, salvaria sua vida, mas que agora lhe era inútil e só serviu para apontar-lhe o fracasso de sua busca.
Yuri apelou à Alina para que tentasse se lembrar do caminho, mas foi em vão. A jovem mãe jamais fora além dos limites da vila, e não podia ajudar. Os três estavam perdidos.
Com o passar das horas, Yuri começou a perder a paciência consigo mesmo:
“Como pude ser tão estúpido? Por que não fiz um mapa ao deixar a vila?”
Alina tentava consolá-lo, dizendo que nenhum dos dois imaginou que um dia voltariam, mas Yuri não se perdoou.
Depois de algumas horas, acabaram retornando para a estalagem de onde partiram. O sol estava preste a se pôr, e não tinham mais condições de continuar. Tentariam novamente no dia seguinte. E assim o fizeram. Por horas a fio caminharam por entre bosques e estradas idênticas, repetindo o insucesso do dia anterior. No fim da tarde Dmitri chorava, reclamando de fome e frio.
Não tinham mais tempo nem dinheiro, e as provisões se esvaíam. Teriam de aceitar a ideia de que não encontrariam mais o caminho de volta ao oceano de paz com que tanto sonhavam. Um sentimento de desespero corroeu suas almas. Estavam tão perto. Uma lágrima escorreu pelo rosto de Alina. Estava tudo acabado. Tinham de partir.
Quase sem dinheiro, o casal teve de vender a carroça e a mula na próxima cidade. Os dois teriam de encontrar um local para se estabelecerem. Não queriam mais voltar à capital. Desolado, Yuri viu que só lhe restava o destino que outrora escolhera como seu desterro: Stalinsk. Lá, encontraria emprego nas minas, e poderia sustentar sua família. Pensou que a vida nos sorri em certos momentos, mas por vezes, solta sonoras gargalhadas de ironia diante de nossas desgraças. Pois as risadas que sua vida dava naquele momento eram estridentes, e ecoavam por entre seus pensamentos.
O casal teve de seguir, resignados, para a sorte que os aguardava…
XI
Stalinsk era uma das principais cidades extratoras de carvão e outros minérios, e mantinha um crescente polo industrial. Batizada de Kuznetsk à época de sua fundação em mil seiscentos e quinze, foi posteriormente chamada de Novokuznetsk. Mais tarde, rebatizada de Stalinsk em homenagem a Stálin. Séculos antes, em meados de mil e setecentos, infindáveis depósitos de carvão foram encontrados, tão ricos que o mineral escuro brotava do chão como pés de ervas daninhas. Muitas das vezes o minério entrava em ignição ao ser atingido por raios durante as tempestades, causando incêndios de proporções bíblicas. Com o passar do tempo, a região à sua volta tornou-se um atrativo para os que buscavam a abundância de trabalho.
Ao chegarem ao destino cinzento, Yuri teve a sorte de encontrar um posto de trabalho. A família de refugiados logo se instalou num pequeno conjunto de casas, construído para abrigar os trabalhadores. Os habitantes vinham de todos os cantos da União Soviética e sua população mista incluía, na sua maioria, russos, tártaros, ucranianos e cazaques. Gente muito simples e rude, embrutecidos pela pobreza.
A rotina de Yuri era dura. Pela manhã, era levado de caminhão até as minas, retornando no fim do dia. À noite, já em casa, exausto e coberto de poeira negra, permanecia sentado por muito tempo, angariando forças para limpar-se. Parecia ter mais trabalho com os esfregões que passava na pele do que com as pesadas picaretas que rompiam as paredes macias de carvão.
Alina cuidava do bebê e da casa e tinha uma rotina igualmente estafante. Cortava lenha, lavava a roupa, e, assim como as demais mulheres dos mineradores, também era obrigada a ajudar nas tarefas coletivas.
A vida sem perspectiva no sombrio lugar esvaziava qualquer esperança de mudança. Yuri sofria ao ouvir as constantes lamentações de seus colegas de trabalho. Os assuntos triviais dos mineradores eram sempre os mesmos. Reclamavam de tudo: a vodca era uma porcaria; o trabalho era demasiado cansativo; o dinheiro era curto; a comida de suas esposas era intragável. Jamais falavam de assuntos mais relevantes ou profundos. O ex-jornalista sentia falta de conversar sobre poesia, música, literatura. Estava farto de ouvir seus colegas falarem mal uns dos outros, e com frequência testemunhava discussões à beira das vias de fato. Tudo isso fazia o trabalho ficar ainda mais pesado. O barulho provocado pelas explosões e pelo maquinário também feria os ouvidos do minerador moscovita. Yuri sonhava com o silêncio reconfortante que um dia atirou ao lixo. Culpava-se por ter sido tão intransigente quando convenceu Alina a deixar avila:
Por que não dei ouvidos à minha esposa?” – Pensava durante todo o dia.
A ideia de que era inútil fugir o assombrava. Para onde quer que fossem, certamente encontrariam o sofrimento esperando por eles.
As coisas pioraram com o passar do tempo. Assim como em Moscou, o estranho casal que se comunicava por escrito voltou a ser alvo da atenção insidiosa de todos. Alina aprendia as tarefas coletivas com muita dificuldade. Suas vizinhas bufavam quando ela se aproximava. Não tinham paciência para ensinar a jovem. Na maioria das vezes delegavam a Alina o trabalho de recolher o lixo e limpar as latrinas externas. Deleitavam-se em vê-la às voltas com as repugnantes tarefas. As mais debochadas, crendo que a jovem era completamente surda, chamavam-na de nomes quando ela passava, provocando gargalhadas. Alina não entendia o significado dos xingamentos, mas sabia se tratar de escárnios, e que todos se divertiam às suas custas. Tapava os ouvidos com as mãos e buscava refúgio dentro de casa. Era a forma que encontrava para fugir das maldades de todos aqueles demônios.
Enquanto isso, nas minas, Yuri tornava a sofrer retaliações de seus colegas. Por não conseguir se entrosar com os demais, foi considerado esnobe. Vários companheiros de picareta diziam coisas pelas suas costas: “Deve se achar mais inteligente do que todos nós”. “Por certo arrota borbulhas de champanhe quando bebe vodca!”
O reservado minerador ainda era perseguido por seu chefe, um ucraniano de quase dois metros, que já havia trabalhado como guarda em um gulag. Um sádico nato, que tratava subalternos como se fossem cães. Yuri não tinha motivo algum para ter privilégios, pelo contrário. Seus bons modos e personalidade sensível irritavam o cruel capataz, que quase sempre o humilhava:
– Vamos, seu esnobe miserável! Essas suas mãos macias de jornalista precisam ficar grossas. Só assim valerão o salário que recebem no fim do mês! Você deve se achar muito inteligente por ter trabalhado em seu jornaleco, mas não se arranca o carvão com uma caneta, entendeu, seu imprestável de uma figa?! Agora ande com isso e encha estes carrinhos até a boca, agora!
Não tardou muito e o silencioso casal já era apontado por todos onde quer que fossem. Muitos lhes davam as costas quando passavam. Desprezavam o “esnobe” e a “princesinha calada”. Isolados, não conseguiram angariar um único amigo.
Certo dia, depois de um expediente infernal, Yuri chegou em casa com o corpo dormente por conta do trabalho fatigante e encontrou Alina novamente aos prantos. Ela não aguentava mais ouvir as risadas e escárnios. Sua alma estava exausta, destroçada.
Mais tarde naquela noite, Yuri fumava seu cachimbo sentado à cadeira de balanço, próximo ao fogo. Estava arrasado de culpa por ter levado Alina àquela situação. Crendo estar agindo em benefício do filho, terminou por negar-lhe a vida em um paraíso de amor e harmonia, condenando-o a viver naquele mundo apodrecido pelo vazio dos homens.
Alina aproximou-se, ajoelhando-se na frente do esposo e deitou a cabeça em seu colo. Os cabelos da jovem se esparramaram por sobre as pernas de seu esposo. Ele acariciou gentilmente a cabeça e o rosto da mulher.
Dmitri já dormia.
Ainda deitada aos pés do marido, Alina olhou para o esposo. Yuri lembrou-se do que o sábio velho havia lhe dito, que “a forma mais sublime de alfabetismo era saber ler o amor nos olhos de uma pessoa”. Naquele momento, só pôde ler uma súplica no olhar da esposa.
A jovem estendeu as mãos, deixando, cuidadosamente, um objeto no colo de Yuri, como uma fervorosa fiel que leva uma oferenda a um altar sagrado. Ele a olhou com um misto de pena e impotência. Ambos tinham os olhos rasos d´água. Sobre as pernas do homem, repousava uma agulha de crochê, deixada por Alina.
Num silencioso diálogo de almas, Yuri compreendeu a proposta de sua esposa: se não podiam mais voltar para a vida que tanto sonhavam – o único lugar do mundo que os entendia – ao menos poderiam vivenciar seu silêncio reconfortante.
Yuri beijou a testa de Alina, dizendo, com um sorriso, que a amava. Uma lágrima escorreu de um de seus olhos. Ela deitou a cabeça de volta no colo do esposo e afastou o cabelo para o lado, deixando exposta sua orelha, oferecendo-a para receber o sonhado alívio.
Yuri colocou a ponta da agulha no interior do ouvido da mulher. Ele respirou fundo e pressionou a base do objeto para baixo. Alina deu um gemido abafado de dor, abraçando as pernas de Yuri com força. Gotas de sangue caíram no chão gelado. Com o corpo estremecendo e o rosto coberto de lágrimas, a jovem virou a cabeça e tornou a deitá-la, ofertando o outro ouvido. O homem repetiu o ato.
Sem coragem de pedi-la que fizesse o mesmo por ele, e vendo que a jovem se contorcia de dor no chão com ambas as mãos pressionando as orelhas, Yuri não hesitou, e introduziu a ponta da agulha em seu próprio ouvido, pressionando a outra extremidade com a palma da mão, perfurando imediatamente o tímpano. Viu estrelas. Com dificuldade de respirar, tremendo e bufando de dor, temeu desmaiar, mas encontrou forças para levar o objeto pontiagudo até o outro orifício e repetiu o ato desesperado.
Depois da dor lancinante, veio o alívio. A paz misturou- se ao melado de sangue que escorria para fora dos ouvidos do infeliz casal. Com muito custo os dois conseguiram se levantar e abraçaram-se, apaixonadamente. Fundiram seus corpos em uma só dor, em uma só alegria, e voltaram a reconhecer suas almas. Finalmente reencontraram o espírito do lugar de seus sonhos, alheio a qualquer maledicência ou ameaça. Sentiram-se mais uma vez acolhidos em seu mundo de águas plácidas. Resgataram a essência do tão sonhado vilarejo perdido. Estavam de volta à vida. Estavam de volta à vila do silêncio.
Os dois amantes se olharam por um longo período e se beijaram. De mãos dadas, viraram-se e caminharam em direção ao quarto do bebê…
FIM