Um conto de Léo Tavares
Léo Tavares é escritor e artista visual. Nascido em São Gabriel, no Rio Grande do Sul, vive e trabalha em Brasília. Pesquisa a relação entre as experiências de olhar e ler. Sua exposição mais recente foi a individual Não Só Com as Imagens, na galeria da Aliança Francesa de Brasília, em 2018. Em 2015, publicou o livro de contos Os Doentes em Torno da Caixa de Mesmer (Editora Modelo de Nuvem), vencedor do prêmio Contista Estreante, promovido pela FestiPoa Literária – Festa Literária de Porto Alegre. Ruibarbo do Deserto é seu segundo livro, editado pela Patuá em 2019.
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Mas as coisas não deixam de existir no escuro
Tia Lígia e eu jantávamos cedo, como de costume, logo depois de tio Olímpio terminar a sopa. Enquanto comíamos ele era mantido às nossas vistas, sentado em sua poltrona. Tinha o corpo inclinado para a frente, enrijecido, a luta dos ossos contra o arqueamento há muito abandonada. Usava uma touca azul na cabeça e um lenço cor-de-laranja em torno do pescoço, o que lhe dava um ar engraçado: me fazia pensar em uma criança mumificada em sua roupinha de aniversário. Apoiava a mão direita na bengala e ficava olhando fixamente para além da televisão ligada. Alguma cena que nos era inacessível e que se desenrolava na parede. De vez em quando olhávamos na mesma direção que ele para nos certificar de que não havia ali nenhuma alma penada a encarar tio Olímpio.
Não desviava a atenção daquele cinema invisível. Os olhos sempre molhados, lágrimas incessantes, observava tia Lígia ao médico. A cara do tio Olímpio chorando assim a fazia lembrar dessas santas de gesso que choram e choram e ninguém nunca sabe por que, todos em uma suspeita eterna de milagre.
Era muito natural o caso do meu tio, garantiu-nos o médico. Assim como naturais também eram a boca entreaberta acumulando a saliva que, de tempos em tempos, tia Lígia tinha que enxugar com um pano, a aparência esquelética e a diarreia empapando as fraldas. Tio Olímpio fora diagnosticado com Alzheimer há poucos anos e naquela noite tia Lígia acabara de me contar que o seu quadro havia piorado consideravelmente.
— Assim, como se alguém tivesse simplesmente apagado a luz.
Mas as coisas não deixam de existir no escuro, pensei, intrigado com o que se passava em seu pensamento. O que tio Olímpio mais fazia era passar horas e horas sentado na varanda, olhando o quintal de um jeito que oscilava entre a completa indiferença e a mais eriçada curiosidade. Pendia o olhar sobre as plantas e ficava sem mover a cabeça durante longos minutos. Mas de repente começava a se mexer inquieto, de um lado para o outro, esticando o pescoço e apertando os olhos para divisar alguma coisa no emaranhado das árvores, algo que não sabíamos o que era. Havia ocasiões em que ele soltava um gemido fundo, desencavado da garganta, e repetia, rouco, bem baixinho. Só um fiapo de voz:
— Mas que barbaridade… Mas que barbaridade…
Nas primeiras vezes em que o escutávamos dizer aquilo, íamos até a porta para observá-lo, a nossa presença nunca percebida por ele. De tempos em tempos tio Olímpio sacudia a cabeça lentamente, uma negação melancólica que ameaçava irromper em revolta no olhar vidrado, mas aquiescia e ia minguando para um arremedo de sorriso. Foi quando me dei conta do quão pouco eu sabia dele. Tia Lígia e eu o perdíamos a cada dia para aquele canto de sombra verde-escura que ele ia adentrando com o olho, por entre as samambaias e as bananeiras.
No começo da doença, quando ele ainda não havia submergido para um mundo que não nos cabia, não raro ficávamos com resquícios desencaixados da lógica em meio às conversas cotidianas. Uma vez, quando cheguei à casa deles, depois de um dia de trabalho, encontrei tio Olímpio molhando as plantas com a mangueira. Ele perguntava do meu dia, das coisas que aconteciam no escritório, quando de repente me disse, o olhar fixado no turbilhão de água que forçava uma poça em meio à terra revolvida:
— Esse peixe se chama “joia”. Peixe-joia. Os machos ficam vermelhos durante a reprodução.
— Como foi a vida do tio Olímpio? — perguntei uma noite enquanto minha tia e eu preparávamos a janta.
Eu estava então para lá dos meus cinquenta anos, e apesar de ter levado a minha vida sem grandes sobressaltos, morando a alguns quarteirões da casa de tio Olímpio e tia Lígia, compartilhara com eles mais silêncios do que histórias. Para eles eu era o sobrinho solteirão e tímido que haviam criado, uma criatura bovina de pouca curiosidade e sem nenhum segredo, ou eu era isso tudo para mim mesmo, agora me pergunto. O fato é que para mim meus tios pareciam há muito ter adentrado aquele trecho final da vida, em que o passado se encrustava no corpo como corais, e de repente, quando me dei conta de que eles deixariam este mundo sem que eu os de fato conhecesse, sobreveio em mim uma curiosidade nunca antes despertada acerca de suas histórias.
Tia Lígia descascava as cebolas e ergueu o rosto na minha direção, apertando as pálpebras.
— Olha, a vida do Olímpio foi bem normal, meu filho.
— Algo de muito ruim aconteceu com ele? Às vezes tenho a impressão de que ele sempre foi meio triste.
— Bem, ele passou por coisas, como todo mundo. Nenhuma tragédia, nada de terrível, isso não.
— Ele teve um companheiro, não teve?
— Você sabe que sim, Téo.
— Você se lembra dele, tia?
— Eu morava lá na nossa cidade ainda, eu estava lá, criando os teus primos. E ele tinha esse companheiro que eu não conheci. E foi tudo tão rápido, Téo, passou tudo tão rápido. Apesar disso acho que o Olímpio nunca o esqueceu, sabe?
Ela cortou as cebolas sem me dar muita atenção e as atirou na frigideira, o chiar dos anéis no óleo quente me indicando uma pausa na conversa. Sim, eu ouvira falar que o meu tio tivera alguém em algum momento de sua vida, mas por estar aguilhoado à minha própria rotina, que sempre fora de trabalho maquinal em um escritório de contabilidade, e muito por descaso, nunca buscara saber mais sobre isto.
Sentei-me à mesa da cozinha, no aguardo, tia Lígia imersa no que acontecia dentro das panelas, cantarolando uma música que eu reconhecia da abertura da novela que assistíamos juntos toda vez que eu os visitava.
— E como era? Quem era esse companheiro dele?
A voz de tio Olímpio rasgava a corrente de ar que vinha da porta da cozinha, entreaberta:
— Que barbaridade…
Olhei para ele para me certificar de que suas palavras não eram em resposta à nossa conversa, mesmo sabendo que não eram. Ele continuava longe, lá fora.
— Bom, eu não o conheci. Acho que se chamava… Artur.
— E por que não durou, tia?
— O quê, meu filho? — o ruído de uma colher contra uma panela de aço estava entre nós. Ela deixou a colher descansando, abaixou o fogo e se aproximou de mim, secando as mãos no avental.
— Por que não durou o relacionamento deles?
— Bom, isso faz tantos anos, tantos anos. Ele era um rapaz bonito, teu tio também, ele era charmoso. Quando o teu tio veio para a capital foi que eles se conheceram. E logo anunciou em casa que tinha um amigo morando com ele. Foi aqui que eles moraram juntos. E eu quando ouvi a notícia logo soube o que era. Eu sempre soube quem o meu irmão era. Fiquei com tanto medo, meu filho, que o pai e a mãe desconfiassem. Quando consegui vir visitar o Olímpio ele já estava sozinho de novo, o rapaz tinha ido embora.
Tia Lígia entrava em silêncios abruptos, abria a geladeira, buscava alguma coisa e voltava para o fogão.
— Tudo bem aí, véio? — Falou alto para que tio Olímpio a escutasse. Nenhum sinal de que ele tinha ouvido, e ela seguiu no preparo da janta.
Comecei a descascar as batatas quentes, sem me importar muito que as pontas dos dedos queimassem, mais interessado em ter a atenção dela de volta.
— Mas ele foi embora para onde?
— Oi?
— O tal do Artur, por que é que ele foi embora?
— Ah, sim. Bom, ele era um moço estrangeiro, de família endinheirada, tinha vontade de viajar pelo mundo, estudar… como é que era mesmo? Aquilo das pirâmides.
— História?
— Não. Que cava buracos.
— Arqueologia.
— É. Ele foi trabalhar no Egito e nunca mais voltou. Ou pelo menos não que se saiba. Ele tinha uma paixão pelo assunto e você sabe que o seu tio era obcecado por tudo aquilo também.
— O tio foi professor de arte.
— E o que é que isso tem a ver?
— Ele dava aula sobre o Egito, não é?
— E eu sei? — Tia Lígia deu de ombros e antes de me deixar sozinho com meus pensamentos, completou: — O Olímpio sempre pesquisou arte, mas as histórias dos prédios, das pirâmides, aquela coisa toda, uma vez ele me disse que, por causa do moço, não tinha mais vontade de ler sobre qualquer outra coisa.
Além das fitas de vídeo com documentários sobre o Egito e a Mesopotâmia abarrotando as estantes, a casa toda sempre fora repleta de livros sobre o mundo antigo. Quando eu era criança tio Olímpio adorava me chamar depois do almoço para folhearmos juntos aqueles volumes velhos, e para me despertar a atenção ele dizia que tudo neles, do cheiro de antiguidade à coloração amarelada, mas principalmente as gravuras coloridas que os ilustravam, comportava uma passagem secreta para um tempo de aventura e mistérios. Então eu ficava horas admirando cuidadosamente cada imagem que os livros do meu tio traziam, em busca de abrir aquela passagem.
— Quem é este? Eu sempre perguntava a ele, indicando a mesma figura de pedra com nariz quebrado, apenas para ouvir o nome impronunciável à minha fala de criança.
— É uma mulher, foi uma faraó, uma mulher muito poderosa, e o nome dela é Hatshepsut.
Ele me indicava então as figuras nos relevos em pedra que mostravam a história da caravana da faraó Hatshepsut à terra de Punt, que era a terra de um povo misterioso que até hoje não se sabe direito onde ficava. Eles iam a esse lugar distante de barco, para buscar árvores de incenso. Esse palito perfumado que eu acendo na sala quando vem visita. Eles iam lá buscar essas árvores que dão incenso porque era uma coisa muito cara naquela época, e os ricos queimavam muito incenso.
As palavras dele me voltavam distorcidas, com algum resquício do odor dos incensos que tinham feito parte daqueles dias, e na minha cabeça eu já não sabia dizer o quanto dessas lembranças eu mesmo não teria inventado.
— Tia, já reparou como ele fica repetindo a mesma coisa? Barbaridade, barbaridade.
Ela fez que sim, tampou as panelas e se sentou à minha frente, tomando a bacia das batatas das minhas mãos.
— Deixa ele. Vai saber o que se passa lá dentro dele, meu filho.
Mais tarde, quando jantávamos, tia Lígia e eu, entregues aos nossos pensamentos, que talvez vibrassem na mesma faixa, no silêncio ensimesmado que sobreveio à conversa, lançávamos olhares constantes para o meu tio Olímpio. Encurvado sobre a bengala, como uma estátua de um homem velho cujo movimento de se levantar fora eternizado em pedra, a gola esticada para cima, alcançando o queixo, ele olhava para a parede. Alguém que prossegue em uma nevasca, que persiste em uma ventania.
Poucos anos depois, quando nem tia Lígia existia mais, comecei a mexer nas estantes de tio Olímpio e encontrei uma carta dentro de um livro sobre mitologia egípcia. Escrita em inglês, a carta informava o falecimento de Arthur Williams Jansen, e dizia apenas que ele tinha sido encontrado sem vida em uma viela no Cairo, com um tiro nas costas, e que deixara um bilhete para Olímpio Guerra, nada mais que um trecho de um poema de 3 mil anos escavado nas ruínas de Deir el-Medina, ou Set maat, o “lugar da verdade”, como o chamavam os antigos que ali viveram, cujo significado até hoje me persegue, em miríades de especulações, sem solução: I’ll go down to the water with you, and come out to you carrying a red fish, which is just right in my fingers.