Um conto de Lu Ain-Zaila
Lu Ain-Zaila é Luciene Marcelino Ernesto, formada em Pedagogia/UERJ, escritora autopublicada das obras afrofuturistas Duologia Brasil 2408 [(In)Verdades e (R)Evolução] e Sankofia, da baixada fluminense do Rio de Janeiro. Escreve artigos sobre afrofuturismo, ficção especulativa (resenha, ensaios e pesquisas), imaginário sociorracial brasileiro e assuntos relacionados, assim como gosta de conversar sobre os temas, levando à reflexão. O conto “Crianças vermelhas” integra o livro Sankofia (2018). Site: brasil2408.com.br
***
Crianças Vermelhas
Um cientista africano foi o primeiro a descobrir o cometa Impundulu, mas não foi por acaso, ele estava a meditar entre os Dogon, buscando a conexão que tinham com o universo, como sabiam de coisas sobre biologia e astronomia séculos antes do mundo descobrir, e ainda por cima, por que nunca fizeram uso deste conhecimento para dominar outros povos. Isso era intrigante e eles riram, disseram que controlar os átomos do próprio corpo já dava trabalho, imagine os do mundo. Nunca daria certo.
Mas eles disseram a ele uma coisa, que para descobrir algo novo para seu povo em todo o lugar, desde Lagos até a beira dos valões da baixada fluminense, onde negros, negras, adultos e crianças vivem, só precisava meditar pensando no passado para buscar, no presente, os olhos do futuro.
Agora eu conto o que aconteceu…
Tudo começou quando o povo Dogon lá num país da África se agitou. Você sabe, no Mali. Não? Ah, tudo bem, mas vamos continuar… Eles sabem tudo de Sirius, o sistema estelar há séculos e nunca possuíram ou produziram um único instrumento de observação. É extraordinário ler sobre isso e como eles deixam os cientistas boquiabertos por conta disso e muito mais, mas vamos ao que interessa.
Então… foi estranho o que fizeram, mas um dia qualquer resolveram escrever em todo o chão com tinta roseada e azul, as cores de uma vestimenta cerimonial deles muito bonita, o seguinte – #impundulusemfiltro – em português, inglês, francês, espanhol, orlof, árabe, farsi, mandarim, japonês, russo, esperanto e outras, mas ninguém descobriu como o fizeram e tão rápido.
É sério, cada um escreveu no chão uma vez e não tinha tradutor à vista ajudando, ninguém ali. A escrita foi descoberta por acaso através de um vendedor da área, ele filmou, postou e a coisa tomou o mundo. Mas o importante agora é explicar porque estou te contando isso, então, voltando…
Era incrível e dava para ver do alto dos helicópteros e de cima de suas pernas-de-pau, sim eles usam para ter outra visão do mundo, como ter o pé no chão sem ter o pé no chão, mas a questão era que pediam para as pessoas olharem para um cometa que seria visto pelos telescópios da NASA em três dias, mas sem um filtro de proteção para os olhos, complicado porque ele era super brilhante, doía os olhos dos adultos e fazia coçar os das crianças, muito estranho e o mundo entrou em polvorosa.
Nem preciso dizer o quanto os cientistas debateram de um lado, os pesquisadores do outro, mas eles não perceberam a língua maior no chão, a da internet.
Pois é… eles estavam se comunicando com as pessoas nas redes sociais e a hashtag viralizou. Todo mundo dizia que ia ver o #impundulusemfiltro passar pela Terra.
E o dia chegou, quer dizer, a noite, e o cometa foi acompanhado em tempo real na TV. Todos estavam curiosos sobre os motivos daquele cometa ser diferente de qualquer outro.
Para começar, seu nome tinha a ver com a sua forma, parecida com a do ser mitológico Impundulu, um pássaro de fogo que nem é elemento da cultura Dogon, uns diziam ser um ser vampiro, engraçado, eu gostava mais da versão de pássaro elétrico, brilhante, mas esse debate não foi levado adiante naquele momento.
A questão é que nós iríamos olhar para ele sem protetor, apesar de toda a proibição, isso sim é importante assinalar e eu o fiz também. E lá estava ele… riscando o céu como se fosse uma estrela gigante de fogo queimando no espaço que é congelante e sem um risco de ar. Foi espetacular de verdade, mas então…
Algo estranho aconteceu, eu estava na ponte sob o valão com meus colegas olhando para o céu, longe das amendoeiras chatas que entopem os bueiros sem dó na chuva, um saco.
Mas tudo bem… nós estávamos olhando e então… ele pareceu ficar maior no céu e as pessoas com seus celulares começaram a gritar – Ele mudou de rota! Está vindo para cá! – foi uma gritaria e corre-corre, mas para onde? Eu só sei de uma coisa, não consegui ficar assustada, por mais que tentasse me mantive olhando e – boom – ele se despedaçou no céu e virou uma grande poeira vermelha brilhante se espalhando como uma cortina cor de rubi muito intensa por todo o céu. E eu lá olhando, admirando a variedade de tonalidades. Nunca tinha enxergado tantas cores antes, aquilo era sem igual.
Lembro-me que ouvi alguém dizer “as crianças, são todas negras, as crianças...”.
Não entendi nada, mas percebi que estava zonza e minha vista parecia ter um filtro avermelhado ao olhar para as pessoas ao meu redor, e não me lembro de mais nada. Eu desmaiei.
Dormi por dois dias, aconteceu com várias crianças negras no mundo, iguais a mim que insistiram em olhar sem medo para o céu, para o mistério dos Dogon. E finalmente quando acordei, meu braço parecia queimar e então eu vi, a marca do Impundulu, num vermelho vivo lindo que tomou minha pele como tatuagem.
Fiquei admirando ao invés de aterrorizada e quando levei a mão ao celular para ver as horas, me assustei, pois ele se antecipou, destravou a tela e lá estavam as horas, meio que em relevo, mas meu celular não é dos melhores, logo não sei o que aconteceu ali.
Aquilo foi muito estranho, mas não parou por aí, pois quando pensei em entender o que havia acontecido, o aplicativo da internet abriu e mostrou um vídeo dos Dogon festejando, estava ao vivo e acredite se quiser, eu estava entendendo tudo, tudo o que diziam.
Eles estavam comemorando o renascimento das “Crianças Vermelhas”, mas alertavam em seu cântico que estávamos em perigo, pois agora tínhamos poder para mudar o destino do mundo e quando crianças negras têm este poder, olhos maus temem. E então os ouvi dizerem “amigos de Sirius C as saúdam pelo despertar”.
Olhos maus temem? E o que significa isso?
Fiquei perdida em pensamentos, imaginando por que aquela marca rubi e viva em meu braço parecia familiar até de repente, minha mãe aparecer, me abraçar, e juro, com um simples fechar de mão sem pensar direito, o celular silenciou totalmente.
Aquilo foi incrível, mas nada comparado ao que acontecia dentro de mim, minha mente estava ativa como nunca antes, não sei explicar ainda, é uma sensação muito poderosa de compreensão, de tudo ao meu redor. E percebi ali, revisitando todas as minhas memórias como arquivos em tela diante dos olhos enquanto abraçava minha mãe que o cometa nunca foi um cometa, ele era uma isca para nos encontrar, um buscador, estivéssemos na África ou nas diásporas.
E eu fui encontrada, mas o que isso significará daqui por diante… nem posso imaginar.
Sou Minkha, meu nome significa justiça.
Sou uma criança vermelha.