Um conto de Luan Brito de Azevedo
Luan Brito de Azevedo nasceu em 1991, é cearense, cresceu e viveu a vida inteira no centro de Fortaleza, onde reside atualmente. É autor do livro de poemas Aprendiz de solitário, ainda inédito. Hoje trabalha como diretor de arte em agência de propaganda e cursa mestrado em Estudos da Tradução na Universidade Federal do Ceará. Instagram: @boxenoasfalto
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AQUÁRIO
Morte que cai bem
Vinde em mim agora que sou
Despreocupada comigo
Essa tarde dourada que traz
Felicidade pras pessoas normais
Não me mente mais
Essa tarde que esquenta minha barriga
Por baixo da blusa preta
E meu umbigo envolvido nesse calor
Se faz de morto
Não sente nada
Só vazio
(Bem vindas, Karina Buhr)
Carlos dorme. Lúcia não consegue dormir. O terceiro cigarro da insônia queima no limite do filtro entre os dedos de Lúcia, sentada à janela.
Apenas uma ou duas vezes uma nuvem de fumaça lhe passou entre os lábios antes de ser lançada contra o horizonte profundo de Fortaleza. Apenas uma ou duas vezes.
O cinzeiro é como um criado a colher do ar as cinzas que lambem o vento até que o cigarro cesse. Lúcia toca com a ponta dos dedos essas cinzas caídas no fundo do cinzeiro, tenta moldá-las, tenta esculpir com elas pequenas figuras – inutilmente. É impossível mover cinzas sem que elas se desfaçam e se misturem ao ar, portanto, uma vez consumidas pelas chamas, as coisas devem ser deixadas precisamente onde estão, ou irão ruir. Não importa. No estado em que se encontra, Lúcia não pode exigir que tudo permaneça de pé. Por ora bastam-lhe os pequenos apertos na maciez estúpida do cilindro de papel e a contemplação da chama cujos movimentos embalam um pensamento.
Na ponta do cigarro aceso, o fogo está sempre fresco, mesmo quando o tabaco já se foi completamente e o gosto que vem à boca é o do filtro de algodão queimado, a chama, o calor da chama é sempre fresco.
Da janela do quarto no terceiro andar Lúcia observa a rua. Não há movimento. Um alto tapume esconde um prédio arruinado e duas árvores que durante o dia dão sombra aos carros estacionados perto da farmácia.
Os carros a observam de volta. Cobertos por folhas atiradas pelo vento, são soldados camuflados aguardando o sinal do amanhecer para entrar em marcha e devorar o dia. Os faróis apagados têm o mesmo ar duvidoso que têm todas as lâmpadas desligadas. Não sabemos se ainda funcionam, e só há uma maneira de saber.
O tempo no quarto é um aquário estático onde apenas um peixe se move.
Em alguns minutos, o letreiro da farmácia se apagará e essa visão trará uma espécie de presente insustentável: o dia chega ao fim. Esse dia eterno, prolongado, sucumbirá ao poder com que as leis do universo reinam sobre as verdades particulares. Lúcia compreende, agora. O dia que deseja eterno é na verdade um dia como os outros, e todos terminam.
Lúcia traga o terceiro cigarro pela primeira vez e uma nuvem espessa de tabaco está suspensa dentro de seu peito. O silêncio lá fora se enovela ao silêncio de dentro. Ela ergue-se um pouco, apoiando-se sobre o cotovelo, e varre com uma das mãos o peitoril da janela, fazendo rolar uns centímetros o pequeno bastão azul.
Na janela, um besourinho emite zumbidos, mas não consegue entrar. O vidro está manchado de poeira, Lúcia não sabe de que lado.
O letreiro da farmácia se apaga. Junto da luz desaparece também os chuviscos de uma chuva agora insuspeita, oculta na escuridão da rua. Lúcia expira longamente. A nuvem em seus pulmões se mistura à atmosfera do quarto, enquanto estica o corpo. A textura da cadeira de couro em que está sentada acaricia as suas costas. Sempre sobra um vácuo entre a lombar e o encosto, pensa, impedindo o descanso. O couro na cadeira é de um animal morto há anos, mas ainda preso à servidão perpétua.
Não existe descanso.
E esse pensamento faz Lúcia finalmente levantar-se e apertar o cigarro no cinzeiro. Está nua. Onde a calcinha toca a virilha, há pelos.
Desloca-se facilmente pela penumbra. Percorre sem pressa a geografia austera do quarto, a estiagem característica das quitinetes de amantes, com pouquíssimos móveis. Movimenta-se sempre na mira da cama, a pedra fundamental da edificação, onde Carlos dorme, rendido ao gozo. Ela se aproxima, em silêncio, a respiração de Carlos é suave, e provoca um leve tremor de terra na selva rasa de pelos em seu peito, a selva onde sua esposa tanto se perde, e onde Lúcia há meses se perde também, sem que as duas jamais tenham se encontrado.
Em instantes, o gosto da vodka vai ceder ao azedume do café passado às pressas, e o aroma insuspeito do sabonete de glicerina vai lavar de seu corpo a mácula do odor de Lúcia, do toque de Lúcia, do gozo de Lúcia e do seu próprio gozo. O carro de Carlos, estacionado em frente à farmácia, dará a partida e a luz dos faróis vai iluminar o caminho oposto – o caminho de casa – e Lúcia não tem como saber se essas luzes vão acender, mas de alguma forma está certa de que vão. Seus olhos vão encarar os seus olhos no espelho, sempre tentando desviar da mancha no lugar onde Carlos costuma apoiar a mão direita ao abaixar a cabeça para cuspir o enxaguante bucal, e Lúcia verá seu rosto borrado pelo arquipélago de impressões digitais de Carlos, incapaz de, por qualquer tipo de quiromancia, adivinhar se suas linhas alinham-se às da mão que a ele se sobrepõem. E sua boca de batom borrado dará lugar a sua boca de batom nude, banal, de escritório, porque a relação entre amantes se consolida não nas horas tórridas de amor, mas no momento inexorável da despedida e no que vem depois dela, o desenlace obrigatório que é o momento do regresso.
São úteis os momentos de despedida, entretanto. Lúcia aprendeu com a experiência. Servem para descobrir em si mesma o que realmente pensa sobre as horas de amor, e a pequena angústia dessa descoberta é providencial agora, quando Carlos dorme profundamente, porque faz com que Lúcia se agache e acomode no cesto de lixo ao lado da cama o pequeno bastão azul onde o calor da urina revelou duas linhas estreitas, em segredo, no banheiro, enquanto Carlos dormia. E embora seus olhos umedeçam e os pelinhos em suas costas ericem conforme Lúcia torne a se levantar, essa decisão desfaz lentamente o nó que se formou em sua garganta, e o tempo no quarto parece se tornar real de novo, porque uma leve brisa faz Carlos se mover um pouquinho durante o sono, e porque já pode ouvir na rua os primeiros carros cumprindo seus destinos.
– Carlos, acorda, já são quatro horas.
E Carlos desperta e se move devagar, à princípio, e em seguida varre com o olhar todo o quarto, certamente porque já procura por suas roupas, sua carteira e relógio e as chaves de casa, mas são os olhos de Lúcia que encontra, perdidos no teto. Ela está de pé, imóvel sobre os pilares bem desenhados que são suas pernas, então Carlos escala a cama de costas sobre os cotovelos, e a olha intrigado, porque Lúcia é incapaz de aproximar-se dele na cama sem deitar a orelha sobre o seu umbigo e com o queixo fazer cócegas que sobem pelo torso até que suas bocas se encontrem e transformem os dois sorrisos em um beijo cálido. Mas Lúcia permanece de pé, com uma mão a mover-se devagar sobre a nuca e os olhos imóveis no teto. Sua boca, que nos momentos divididos na cama beija e implora pelo açoite de suas mãos, está agora cerzida em pequenas pregas, como um sudário que guarda um corpo santo, e como se abri-lo fosse profanar o silêncio santo que pousa no quarto.
– Lúcia, tá tudo bem?
Lúcia fecha os olhos por um momento. Tem medo de chorar, mas volta a abri-los, um pouco úmidos, mas serenos.
– Sim – diz sem alterar a voz. – Mas tá na hora de ir.