Um conto de Lucas Verzola
Lucas Verzola é autor de São Paulo Depois de Horas (Patuá, 2014), Em Conflito com a Lei (Reformatório, 2016) e A Última Cabra (Reformatório, no prelo). É editor e um dos fundadores da Revista Lavoura.
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é só o tempo de tirar o uniforme da escola pra não levar sabão e o primeiro menino está na rua; quando olha à esquerda, percebe a legião de garotos da mesma idade saltando muros e portões em câmera lenta, disparando rumo à calçada do lado de lá, onde, no meio das heras do muro do quartel, escondem o arsenal que não podem guardar em casa: estilingues, bodoques, pistolas de bolinha, canhões de feijão e houve até um tempo em que acharam por bem manter uma espingarda de chumbo do avô do felipe, que deu falta dela numa noite de barulho de ladrão e surrou o rapaz até sair sangue; mas é só mesmo pra conferir, porque hoje tem clássico contra o time da rua de cima e não dá pra ser pego desprevenido. a feira livre da quarta-feira vai só até o meio do quarteirão: o suficiente pra impedir o fluxo de veículos pela professor louviral gomes machado inteira e deixar o resto pros meninos, onde dois pares de chinelo já formam os gols e a bola chega logo mais nas mãos dos visitantes, como a praxe manda. no aquecimento pulam a corda improvisada no varal cada vez mais rápido: peninha, pena, foguinho, fogo, fogão, incêndio, inferno e level ulisses, que só o ulisses consegue acompanhar. depois esticam o varal e os funambulistas do circo vostok andam na corda bamba para o delírio do respeitável público, que reage à menor possibilidade de pisada falsa, que, inevitavelmente, leva ao abismo. mateus, jonas, pedro, maurício, um por vez, mais de uma vez, e agora riscam de giz o triângulo das bolinhas de gude da normal, da leiteira, da espelhada, da carambola e o peteleco-de-polegar armado e o indicador dos mais velhos em riste vão jogar noutro lugar que aqui vai ter bola daqui a pouco só falta os moleques da rua de cima chegarem. e o peteleco-de-indicador armado mas nas mãos dos mais velhos nas orelhas dos mais novos que correm correm correm correm. que time é teu, bruno? cê conhece o paulo nunes? uma casa tem quatro cantos cada canto tem um gato cada gato vê três gatos quantos gatos tem na casa? olha aquela arraia azul lá cortando o maranhão. se fodeu se fodeu. quem se fodeu foi você. outros dedos em riste: dos moleques da rua de cima alinhados, a pelota debaixo do braço do mais alto que é mais alto, mais forte e mais velho até que o ulisses. quem teve a ideia de desafiar os caras pra partida? foi o samuel, aquele gardenal. vamos tomar no cu bonito, bota os moleques do gude pra apanhar também, eles já tão longe pra caramba a essa altura. e se perfilam vacilantes – posição de sentido ou mão no peito como no hino nacional cantado com a cola na parte de trás da caderneta escolar. extremidades do corpo geladas tanto quanto o suor que escorre pela testa. é hora de dar adeus à infância.