Um conto de Marcelo Gaspar
Marcelo Gaspar de Souza é baiano, criado em São Paulo, hoje reside em Pernambuco. É graduado em Análise e Desenv. Sistemas, pela Fatec SP. Autor do livro de poesias “A noite continua num gole de cerveja” (2017).
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A saga de uma viagem ou o dragão no céu azul
Foi um acontecimento além de inesperado: arrepiante, devastador. Até hoje tento entender tal situação. Imaginei ter morrido e que estava num estranho inferno, ele não teria as características do que a bíblia insiste em nos dizer sobre o lar do capeta. Não creditava nessas coisas, hoje já não tenho convicções de não sê-lo.
Era uma viagem comum, de final de semana. Sozinho. Precisava me dar esse tempo, precisava respirar. Quase me arrependi. Ficou a experiência, nunca contei a ninguém, me abro agora, para ti, espero discrição de sua parte, caso esta história se espalhe, serei taxado de vesano, não quero finalizar minha passagem neste mundo com tal adjetivo.
Eu estava dirigindo meu chevrolet. Passei no posto de gasolina, pedi para encher o tanque, enquanto fui à loja de conveniência, rever aquela beldade que, como poste, há 7 anos, fica à frente do caixa, com um sorriso doce de abobora que me faz ter orgasmos só de penetrar seu misterioso olhar macio e cinzento. Peguei uma garrafa d’água. Mergulhei na boca da moça do caixa quando ouvi “bom dia senhor. Somente a água?”, perguntou toda sexual na sua posição de poste de iluminação pública. Só pude devolver-lhe um risinho que os frouxos têm. Parti! Não sabia pra onde ia, apenas ia.
O Olho D’Água ficou para trás como um pensamento ingênuo que se perde alguns segundos depois, em meio ao turbilhão de bobagens que metralham nossa cabeça com uma kalashnikov das divagações. Passei pelo Ambó. Quase virei à direita, sentido Itapetim, mas segui em frente. Sem pensar, queria apenas ir, sentindo o vento bater-me no rosto com aquela suavidade que adentra o peito e cala o coração com um aperto forte no pescoço, quase mortal. Aquela paisagem ruminando a seca e suas cores em tom pastel.
Depois de Brejinho, parei para contemplar uma veia do rio Pajeú que se perdia consumido pelo dragão de fogo que cozinhava o sertão sem piedade, ele era uma mancha que se movia no horizonte, sempre deixando cadáveres na flora ajoelhada, já entregue.
Em Teixeira virei à direita, sentido João Pessoa, mas não conhecia o caminho, não sabia o que vinha pela frente. Começa aí meu estranho momento: senti meu chevrolet perder potência. Tomei os últimos ml da água já fervida pelo dragão que vi lá atrás: seguiu-me por todo o caminho. As luzes do painel, todas se acenderam como o grupo de balé depois de meses de ensaio exaustivo, sincronizado. Era um povoado ali, mas não sei qual o nome, não existe no google maps, tenho certeza que é aquele trecho cinza, no mapa. Era já fim de tarde. Olhei para o céu encoberto de nuvens escuras que untavam aquele firmamento quase vestido daquela massa áspera aos olhos. Era bem pequeno aquele povoado: tinha uma rua principal e casinhas coloridas idênticas, com uma portinha e uma janelinha em cada uma delas: uma verde, outra azul, outra lilás etc. As pessoas pareciam umas com as outras: homens, mulheres, crianças – mesmo olhar perdido, quase zumbis, menos o dragão cospe fogo no horizonte, destruindo sonhos de um verde há muito extinto.
Parei em frente a uma oficina, estava vazia, porém aberta. Olhei para os lados. Todos me olhavam com desconfiança.
Logo chegou um homem de macacão cinza. Fez um gesto com a cabeça, meio que perguntando o que eu queria: expliquei o ocorrido. Ele foi até o carro, verificou o painel, ligou o motor. Finalmente disse alguma coisa que eu não entendi. Só captei uma pequena parte do que dizia: teria que deixar o carro lá, porque já era noite e fecharia o seu Auto Socorro 24h. Sei nada de mecânica, acreditei nele. Depois me disse que poderia me hospedar na casa de Francisquinha de Antero e que pela manhã meu carro estaria pronto. Obedeci.
Não tive pressa para ir embora.
Paguei antecipadamente o pernoite que me dava direito a um cafezinho amargo e frio, pela manhã.
Levantei-me às 7h30, depois de um sonho/pesadelo muito estranho. Agradeci dona Francisquinha, que, muito educada, olhou para o teto sem devolver-me o adeus.
A mecânica estava aberta, me parecia que não fechava, que nunca fechava. O mecânico lá estava, parado na entrada olhando para o dragão cospe fogo que, logo cedo queimava tudo o que via. Disse-me que estava tudo bem com o carro e que poderia ir em paz, não antes de me cobrar 200 reais pela vistoria e mão de obra. Liguei o chevrolet, sem luzes indesejadas no painel e com potência no motor.
Rodei, creio que, uns 60 km, ainda sem me localizar, já que o celular não captava sinal e menos ainda acesso à internet, segui em frente. Esqueci-me de comprar água. A sede me torturava a mente e já via o dragão e três filhotes dele vindo em minha direção, foi quando olhei para o painel do desgraçado carro: todas as luzes acesas novamente.
Vi uma placa sinalizando que havia um mecânico a 2 km, seguindo em frente.
Assim que reparei naquele vilarejo, me arrepiaram os pelos do corpo todo, era idêntico ao que pernoitei e deixei meu chevrolet para o conserto. Minha pressão baixou quando vi o mecânico, era o mesmo, ao menos igualzinho ao de horas atrás. Quando virei para olhar uma casinha do outro lado da rua, lá estava ela: a placa azul com letras brancas “Pernoite de dona Francisquinha”.