Um conto de Marcelo Spomberg
Marcelo Spomberg é carioca, mas passou a maior parte da vida morando e trabalhando em São Paulo. Estudou História na FMU e fez pós-graduação em Linguagem Cinematográfica na Estácio de Sá. Trabalhou no audiovisual, produzindo e dirigindo filmes de ficção, documentários e programas de TV. Participou de dezenas de festivais de cinema, ganhando vários prêmios nacionais e internacionais. Foi criador e curador do Festival Literário de Extrema por 4 anos. Tomou gosto pela escrita, fazendo roteiros para TV e Cinema. Está finalizando o primeiro livro de ficção. Escreve regularmente para o seu blog Delivery Não Entrega.
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Lorena
Abriu a janela e deixou a luz do dia invadir o quarto. “- A rua tá vazia e nem é cedo.” Lucas resmungou, enquanto olhava pela janela. “- Esse deserto me incomoda. Sinto falta de barulho e fumaça.” Ele deu uma escarrada na rua. “- Se repetir o dia de ontem, to fudido.” Lorena estava deitada nua no colchão sem cama, encostado no canto do quarto. Lucas se aproximou da mulher. Olhou, enquanto ela puxava o cobertor para cobrir o corpo, até esconder o rosto e impedir a luz atrapalhar o sono. “- Você não vai se levantar?” Lucas provocativamente puxou a coberta, expondo o corpo da mulher. “- O que cê tá fazendo.” Lorena reclamou com a voz chorona e puxou a coberta sobre a cabeça. Lucas se lançou no colchão e agarrou Lorena pelas pernas. “- Não to perguntando. To mandando levanta, porra!” Lorena se soltou e sentada se encolheu encostada no canto da parede. Estava acuada e segurava as pernas presas ao peito. O cabelo escorrido pela face, protegia os olhos da claridade. “- Hoje, não vou fica sem dinheiro.” A mulher com resignação. “- O que cé que queu faça?” Lucas impulsivo, e cego pela ira, se atirou em cima da mulher e a puxou pelos cabelos. Nervoso e gesticulando, gritou. “- Você vai foder com o primeiro que aparecer.” Lorena se encolheu ainda mais no canto e falou assustada. “- Não tem quase ninguém na rua.”
As rugas decoravam a pele do corpo. A pintura desbotada no rosto, revelavam uma mulher mais envelhecida pelo trato, do que velha pelo tempo de vida. O seu olhar borrado pelo rímel, era vestígio do crack consumido na noite anterior. Os efeitos desses momentos, proporcionavam a felicidade áspera da vida que levava. Ela não era mais jovem, mas não revelava a idade verdadeira. Entre os homens, que já estiveram na sua cama, Lucas representava o seu final de linha. Nada nele acometia gentileza, carinho ou sexo de qualidade. Ela acreditava, que ele impunha segurança e proteção naquele lugar, onde reinava a barbárie. As pessoas que moravam no prédio, pareciam cadáveres que aguardavam a putrefação. A sujeira escorria pela água da torneira. O líquido era chamado de sopa. As paredes em forma de ruínas eram como marcas decorativas do prédio abandonado. Tudo naquele lugar fedia, principalmente quando Lorena acordava e recobrava o pouco de humanidade, que ainda lhe restava.
“- Se arruma. Tu vai dar essa buceta.” Lorena olhou amedrontada, para o homem e tentou argumentar. “- Lucas, agora é muito cedo.” Ele nervoso gritou. “- Não vou ficar na fissura.” Ela aproximou-se e o abraçou. “- Claro querido. Hoje vou fuder bastante e ganhar muito dinheiro.”
As coisas estavam mais estranhas do que o normal. O silêncio na rua e a ausência de movimento, lembravam um domingo, antes do amanhecer. O Parque da Luz já deveria estar aberto. Os seus portões fechados impediam a circulação e apenas um guarda olhava para o casal encostado no gradil.
“- Esse parque abre que hora?” Lucas perguntou nervoso, enquanto balançava o portão. Lorena, depois de olhar a hora, no relógio da Estação de Trem, resmungou. “- 11 horas. Já divia tá aberto.”
Soraya se aproximou do casal. Lucas continuou a puxar o portão. “- Você não está vendo que o parque está fechado?” Falou o guarda energicamente, parado a uma certa distância. Lucas descarregou a raiva no portão. Balançou e deu um golpe com o pé no ferro, que fez a estrutura balançar.
“- O parque tá fechado?” Soraya perguntou, em cima de um salto plataforma e um vestido colado ao corpo. Lorena se aproximou de Soraya. “- Oi menina. Vamos te que vira pela rua.” Lucas olhou para a mulher, medindo cada centímetro do seu corpo. “- Você trabalha pra quem?” Soraya, aparentemente um pouco mais jovem que Lorena, estava com a raiz do cabelo por fazer, que não escondia alguns fios brancos. “- Não tenho dono. Se quisesse, teria um melhor que você.” Lucas se aproximou da mulher com o peito estufado. Ela manteve o olhar encarando os seus olhos. Ele segurou o seu cabelo com força e deu-lhe um tapa na cara. “- Agora você trabalha pra mim.” Lorena segurou na mão de Soraya, tentando amparar. “- Não faça dessa forma Lucas.” Lucas olhou sarcástico e disse. “- Quer que eu peça ao pai dela?” Soraya escondeu a raiva, no vermelho do tapa. “- Quero grana até a hora do almoço.” Lucas ordenou e se afastou das duas mulheres em direção a cracolândia. Ele caminhava a uma certa distância, que o som já não podia mais ser ouvido, quando Soraya começou a falar. “- Moro sozinha. Sou dona do meu nariz. Não tenho medo de cafetão. Se me matar, vai ser até bom. Já vivi bastante.” Lorena olhou para a colega, que não controlava o nervosismo. “- Sempre fui puta. Uso o meu corpo para sobreviver. Tenho clientes fiéis. Não preciso de ninguém.”
Lucas perambulava pela cracolândia, em busca de drogas. No local, a multidão, contradizia os outros espaços da cidade, que estavam vazios e quase abandonados. Na cracolândia entre os que circulavam pelo local, eram na sua maioria homens.
Aos disciplinas, que Lucas encontrava pelo caminho, que além de traficantes, costumavam controlar a ordem do local, ele pedia pelo bagulho. Lucas se aproximou de um homem encostado num muro. “- Oh meu. Vim busca umas paradas.” “- Você tá trocando ideia com o cara errado.” Lucas se afastou e continuou a seguir entre os drogados, que no calor do dia, vagabundeavam enrolados em cobertores. Os disciplinas não o atendiam. Colocaram um rapaz para segui-lo. Era evidente, que mais parecia uma escolta do inimigo. Lucas precavido com a presença, que não se afastava e o obrigava a seguir numa direção, quebrou o gelo para evitar problema. “- Sou do bem cara. Só vim busca umas paradas pro meu consumo.” O rapaz, o segurou pelo braço e obrigou a parar. No meio da multidão, outros dois homens o cercaram. “- A coisa tá tensa. Os meganhas me interrogaram por horas.” Falou um dos homens que o cercou. Lucas olhou para trás, para ver quem estava falando. O rapaz na sua frente deu-lhe um soco na barriga. Lucas se curvou. Parecia que o ar havia sumido. “- Tem cagueta aqui.” Falou o outro homem atrás dele. Lucas permaneceu parado, sem se mexer. O rapaz colocou a mão nos bolsos da frente da calça de Lucas, procurando por algo. “- O Nóia não tem nada.” O homem atrás provocou Lucas. “- Veio compra e não trouxe plata.” Lucas ameaçou virar, mas foi impedido pelo rapaz na sua frente. “- Fica quieto. Só faiz o que eu manda.” Lucas consentiu com o balançar da cabeça. “- Não ouviu a questão?” O homem de trás o empurrou em direção a uma viela. Lucas caminhou puxado pelo rapaz e os dois homens o seguiram. “- É surdo. Não ouvi a resposta.” Lucas foi levado pela calçada lateral do beco e parado de frente contra a parede. Fechou os olhos e permaneceu sem olhar os homens, que o ameaçavam. “- Vim pedi um crédito.” O rapaz deu uma risada nervosa. “- Aqui não faiz fiado. Cola um brinco nesse filhu da puta.” Um dos homens deu um chute no abdome, que o fez dobrar o corpo e cair pesadamente. O rapaz retirou a carteira do bolso de trás de Lucas caído no chão. “- Aiii. Não me bate.” Um dos homens tomou a carteira da mão do rapaz. “- Deixa eu ve.” A carteira de cor marrom tinha uma divisória de cartões e um espaço para as notas. Ele retirou o RG e conferiu a foto. “- Esse filhu da puta tem documento.” O espaço de notas estava vazio de dinheiro. Uma propaganda de vidente e adivinha ocupava o lugar. Ele retirou da carteira um documento de exame de urina, que indicava não constar a presença de drogas no organismo. O teste indicava, como negativo. “- Esse filhu da puta tem teste de droga.” O homem gritou para Lucas no chão. “- Seu viado, arrombado…” “- Euu posso explicar.” O rapaz deu um chute na cara do Lucas, que bateu fortemente a cabeça contra a parede. “- Aiii. Não faiz isso, por favor.” O homem continuou a mexer e retirar da carteira outros documentos. Entre os pertences ele retirou uma carteira do corpo de bombeiros, da polícia militar. O rosto do Lucas sangrava. Ele não se mexia. A única coisa que se ouvia, era seu choro baixinho. O homem esticou a carteira dos bombeiros, com o brasão da polícia militar e mostrou para os outros. “- Amarra as mãos desse gambé, filhu da puta.”
No primeiro domingo com as portas do parque fechadas, somente seis mulheres exibiam os dotes, nas roupas curtas e coladas. Disputavam os raros passantes. A rua parecia um cenário de fim do mundo. Permanecia a maior parte do tempo vazia. Um ou outro carro passava pelo local. Quando acontecia, cruzavam com as janelas fechadas e em velocidade. “- Não tem homem.” Reclamou Lorena, conferindo a maquiagem no espelho, que segurava na mão. Soraya abriu a bolsa e retirou um batom de dentro. “- Experimenta essa cor. Vai ficar legal em você.” Lorena olhou para Soraya e pegou da mão da colega o batom. “- O movimento começou a cair na semana passada… Só tem piorado.” Lorena se olhou no espelho e encostou o batom emprestado nos lábios. “- Ontem duas meninas brigaram pelo mesmo cliente.” Lorena fez pressão entre os lábios e espalhou o batom. Soraya parou de falar e reparou Lorena se olhar no espelho e simular um beijo para si mesma. Virou para a colega e perguntou. “- Ficou bom?” Soraya concordou com o balançar da cabeça e Lorena entregou o batom. “- Quase rolou um salseiro.” Soraya guardou na bolsa. Lorena reparou um homem ao longe, vindo na mesma calçada. “- Ontem tive sorte. Já tava indo embora. Um antigo cliente apareceu. Tinha outras meninas… ele chegou a ficar indeciso. Tive que prometer… dele gozar na minha boca.” Lorena continuava a acompanhar a aproximação do homem. “- Se não fosse por ele não estava aqui hoje. O dinheiro deu pra compra arroz, mistura e feijão. Graças. Se não fize nada hoje, vou pode volta pra casa.”
O guarda do parque se aproximou do gradil. “- Você é gostosa, em coroa.” Soraya olhou o homem com indiferença e com jeito desbocado, para se defender do que considerava um desaforo. “- Coroa é a mãe.” O guarda deu uma risada constrangida. “- Quanto custa para você chupa meu pau?” Lorena continuou a acompanhar a aproximação do homem ao gradil. Soraya mediu o homem, sem se movimentar. “- Depois de lavar isso, que tu chama de pau… 50.” Outro guarda se aproximou. “- Oi Bene.” Bene, o guarda que conversava com a mulher, olhou para o colega. “Não via a hora de ir embora. Ainda bem que tu chegou.” Bene se aproximou do gradil. “- Aceita 20?” Soraya olhou para ele, com um sorriso esperançoso nos lábios. Vinte reais estavam próximos de serem conquistados. “- Vou quebrar o seu galho.” O outro guarda se aproximou. “- Vocês não estão sabendo do vírus Corona?” Soraya se aproximou do gradil. “- Sem perigo de pegar vírus… ele vai usar camisinha.” Bene reclamou. “- Se quize os 20, é pra goza na boca.” O outro guarda falou. “- Bene, tu parece burro. Não sabe porque o parque ta fechado?” Lorena, Soraya e Bene dirigiram o olhar para o guarda, com expressão de dúvida. “- Esse corona vírus provoca uma doença nova.” Bene inconformado com o colega. “- É só uma chupadinha.” O guarda insistiu na tese. “- Não tem cura. Pega no ar.” O homem que caminhava de longe, se aproximou. Lorena, arrastou a bolsa pela alça na sua direção, deixando o objeto a poucos centímetros do chão. Na frente do cliente desejado, segurou a sua mão e lançou um olhar infalível de conquista. “- Tava sentindo falta de homem bonito.” O homem é o Sr. Douglas, 87 anos, sobriamente vestido, com terno azul-escuro e chapéu. Frequentador do bairro e dos serviços, que as meninas do parque oferecem. “- Você é nova aqui, meu anjo?” Dengosa, Lorena expôs o batom cintilante dos lábios, com um biquinho, a cada palavra que pronunciava. “- É a primeira vez.” Com uma risada maliciosa, seu Douglas, se deixou levar pela mulher, que se abraçou ao seu corpo. O guarda que substituiu Bene, de longe, provocou o colega que se afastava com Soraya. “- Olha o risco do corona vírus.” Lorena, rapidamente estabeleceu o acordo do encontro. “- Podemos ir a um hotel aqui pertinho. Coisa fina.” Douglas ouviu a mulher, envolvido pelo chame da puta. “- Custa 50, mais o hotel e os drinks.” Lorena puxou pela sua mão e os dois caminharam em direção a cracolândia. O velho olhou para o guarda, parado na frente do gradil e respondeu como se ele houvesse falado para ele. “- Prefiro morrer bimbando.”
Na cracolândia, usuários de drogas e traficantes revoltados com a ação da Guarda Civil Metropolitana, para atender uma ocorrência de um rapaz ser encontrado morto, transformaram as ruas do centro, com barricadas e queima de pneus, num cenário de guerra. A polícia lançava bomba de gás lacrimogêneo e ameaçava atirar para matar.
Na esquina próxima à confusão, estavam parados na porta fechada do hotel, Lorena e o seu Douglas. Se olhavam assustados pelo barulho e movimento do conflito, entre os dois lados que se enfrentavam. “- Meu anjo, você conhece outro lugar?” Lorena desnorteada, mantinha em mente o dinheiro que Lucas iria exigir. “- Claro, meu doce.” Gritos e bombas eram ouvidos. “- Aqui não tem nada que interessa pra meganha.” Gritou um dos traficantes. Bombas lacrimogêneas foram lançadas. Um dos viciados chutou o artefato, iniciando um incêndio no cobertor que carregava. “- Ai. Ai. Ai. To pegando fogo” O homem foi logo cercado por outros usuários e o fogo debelado. O seu Douglas preocupado falou “- Melhor irmos logo.” Lorena pegou na sua mão e caminharam próximo das portas do comércio fechado, em direção a esquina, onde acontecia a confusão. “- Não podemos seguir na outra direção?” Lorena, confusa pela anarquia generalizada. “- A minha casa fica pertinho. Só temos que atravessa aquela rua.” Apontou para via atrás do destacamento policial. Um homem, com a camisa vermelha de sangue, andando com dificuldade foi empurrado na direção do destacamento policial. Ele com os olhos fechados por hematomas, se arrastava e mancava, entre os dois lados, que gritavam e se atacavam. “- Estamos devolvendo o seu soldado.” Gritou um dos traficante. Lorena reparou que era Lucas, o homem colocado na linha de frente. Ele tentava falar, mas o sangue que sai pela boca o impedia. Ela ficou paralisada, sem conseguir tirar os olhos do homem, que dormia com ela, e agora fugia das agressões e do pavor. “- Vamos sair daqui, meu anjo.” O seu Douglas convidava Lorena, esperando que ela continuasse a caminhar. “- Gambé filhu da puta.” Se ouviu um tiro. Lucas caiu ferido mortalmente. Lorena, assistiu sem dizer nada. Ela apertou a mão do seu Douglas e continuaram a caminhar. “- Que bom conhecer você.” Lorena falou com a voz engasgada. Um sorriso saiu dos lábios do seu Douglas. Lorena se abraçou ao corpo do cliente, procurando conforto e segurança. “- Preciso de um homem como você, pra cuida de mim.”
Fim.
29/03/2020