Um conto de Marco Antonio Bin
Marco Antonio Bin: tenho 60 anos e realizei algumas coisas legais e definitivas na vida. Estudei Sociologia, aprendi com meus alunos, li Beauvoir e Graciliano, escrevi A Paixão Inútil, moro na Augusta, me emocionei com Benedetti e Buzzati, me apaixonei pelo mar, torci pelo Santos de Pelé, viajei para Cambé e Marraqueche, conheci o cinema da miserabilidade, ouvi histórias de vida, me deleitei com Gal Costa e Piazzolla, voto na esquerda, amo Moniquinha.
***
Enquanto aguardo
De onde estou, não consigo desvelar as faces dos raros passantes. Quando alguém passa, está invariavelmente coberto por um sobretudo três quartos, chapéu, sombrinha ou guarda-chuva a tiracolo dependendo se é uma mulher ou homem. Caminham a passos rápidos para fugir do mau tempo, percorrendo o caminho de pedregulhos traçado em meio ao bosque. Não tenho qualquer referência de suas expressões, se estão felizes ou desanimados, indiferentes ou preocupados, a distância é grande e meus olhos já não captam com a mesma distinção de tempos passados. Em minha situação isso ajudaria a fantasiar um pouco enquanto convivo com as horas intermináveis, que me degradam o corpo e desestimulam o espírito. E assim persisto enquanto a luz do dia ilumina a paisagem, junto à imensa vidraça de meu quarto, atento para o movimento externo, para algum gesto ou representação que se sobreponha de maneira mais acentuada, uma vez que o movimento interno se resume às visitas do mesmo enfermeiro, uma no início da manhã, quando surge com o desjejum e um novo frasco com a medicação que me adentra pelas veias; depois ao meio-dia, quando traz meu almoço, e ao final da tarde, quando já com um semblante desgastado pela maratona no hospital, oferece-me o jantar e me ajuda a deixar a janela para recolher-me ao leito. De uns tempos para cá, já não profere qualquer comentário. No começo, porém, quando suas visitas coincidiram com o verão, seu ânimo era contagiante e gostava de recebê-lo, pois suas funções de atendimento médico fundiam-se graciosamente com analises da crise política que nos conduzia para interessantes conversações. Mas com a chegada do inverno, desistiu da generosidade assim como o sol enregelou e amuou-se definitivamente por trás do tempo encoberto.
Após cada refeição, passo a observar a brancura absoluta de meu quarto enquanto aguardo um ou outro ruído abafado produzido nas dependências do hospital. Por isso gosto da luz opaca que anuncia a chegada das manhãs, o que faz com que retome meu posto diante da janela para acompanhar a escassa presença das pessoas, seis andares abaixo. Ao visualizá-las, me permito imaginar suas vidas. Poderia me interessar pelo entorno, a paisagem bucólica do bosque, sua paz e seus meandros verdejantes, os pequenos e céleres animais silvestres que atravessam o gramado, mas nesta altura dos acontecimentos só me interesso pelos humanos. Trata-se de um curioso contraponto em minha vida. Até chegar aqui e acabar confinado pelas circunstâncias de minha doença e do vírus global, fazia questão de dedicar-me aos peixinhos de meu aquário e ao meu pequeno cão. Nada me deixava mais animado do que chegar do trabalho e trancar-me em casa para alimentar e observar estes seres tão dóceis. Agora que não posso partilhar desse convívio, a alternativa passou a ser observar as pessoas. Talvez porque estejam numa distância segura e não façam ideia da minha existência, o importante é que as observo e as imagino em suas desventuras. Aprendi nesses meses de isolamento a tolerar a doença e a sonhar de quando em vez. Já houve o tempo em que, preso à cama, dedicava-me com afinco às leituras de literatura que meu filho me presenteava. Os sonhos se intensificaram nesse período, de tal modo que ao longo da leitura de Moby Dick, bastava adormecer para me ver no tombadilho do Pequot em meio à sofreguidão dos marinheiros pelas dúvidas ou certezas sobre a obsessiva caçada da baleia branca. Havia é verdade as noites em que me via em longas conversas com Ismael, sobre as condições meteorológicas do Cabo Horn, ou de suas histórias sobre o capitão Ahab e o que significava essa amizade respeitosa e inquestionável.
Semanas a fio tomado pelas aventuras no oceano e quando recebo as Histórias Extraordinárias de Poe, minha atenção se ateve com especial entusiasmo à narrativa do Manuscrito encontrado numa garrafa, onde me vi uma vez mais lançado ao mar, agora como mero passageiro a lutar pela sobrevivência, em meio às peripécias do oceano encapelado e de uma navegação tomada pelo vento, pelos movimentos imensos das ondas, as velas enfunadas, o horror dos horrores que me fez mergulhar no mistério insondável do naufrágio. Pedi então ao meu bom filho que trouxesse autores italianos, e recebi Morávia, Vittorini, Dino Buzzati. Deste último, atravessei suas histórias de doçura amarga, conciliando-me com as vicissitudes da condição humana, do olhar persuasivo para as possibilidades subjetivas ou para além horizonte, até encontrar com o capitão Drogo, na expectativa da invasão dos Tártaros. Identifiquei-me com o que há de mais poderoso e de mais frágil na alma do indivíduo, o sentido épico e ao mesmo tempo a solidão, uma solidão que ao contrário do desânimo, proporcionou sinuosas esperanças.
Mas a condição humana se espraiou por outras subjetividades, por outras dúvidas e tensões morais ao receber os autores russos, Tchecov, Dostoievski, de um lado a concisão dos pequenos gestos e seus desdobramentos, de outro a vastidão dos dramas pessoais mergulhados nas incertezas dos oceanos sociais. Meu filho não se esqueceu de Kafka e com ele, bordejei o absurdo em suas categorias mais dramáticas, o medo, a angústia, a infinitude da espera. Foram momentos em que fui tomado por sonhos espessos envoltos em sombras e espaços distorcidos, dos quais o despertar não significava o fim do pesadelo. E de novo as cores da vida e do fabuloso com García Márquez, o deleite de nossos contrastes e formas com o realismo maravilhoso, das tramas e urdiduras do Coronel Buendía ao anúncio macabro que enredou Santiago Nasar, o mundo onde as fantásticas aberrações se trasvestem de poemas e violência em nossa América invisível.
Com isso apenas amenizei o incômodo dessa espera agoniante. Há algum tempo meu filho deixou de vir e tenho sobrevivido em meio a doutores, medicamentos e assepsias, acreditando que eu também possa criar algum tipo de narrativa intrigante disso tudo. É lícito dizer que o desenrolar das semanas e dos meses me levaram ao encontro das vidraças de meu quarto, para me dedicar aos humanos. Alguns sobressaem e ganham o meu respeito, como o senhor M., morador de um pequeno conjunto de sobrados, bem à direita do bosque. Sei quando sai de casa, quando regressa, que é friorento e que nos dias sem chuva gosta de passear com seu cãozinho beagle. Imagino que seja um homem amargurado, mas sereno diante das dificuldades, uma espécie de Giuseppe Corte, personagem de Buzzati, o que me faz pensar que seria uma pessoa muito bem-vinda em meus aposentos, com quem teria grande prazer de trocar umas palavras.
Hoje pela manhã, acompanhei seus passos regulares até entrada do parque, quando subitamente se deteve. Em circunstâncias normais seguiria pela alameda das quaresmeiras, porém ficou ali parado, olhando para o chão, com as mãos nos bolsos. Um gorro cinzento o protegia do chuvisco persistente e nem o risco de se molhar o afastou daquele ponto. Permaneceu por um largo tempo dando pequenos volteios, desolado em sua indecisão.