Um conto de Marco Aurélio da Conceição Correa
Marco Aurélio da Conceição Correa é professor da rede municipal do Rio de Janeiro (SME-RJ), mestrando em educação no programa de pós-graduação em educação (ProPed-UERJ), pós-graduando em ensino de história da África (PROPGPEC-CP2). Pedagogo, educador, escritor, pesquisa sobre as confluências entre os cinemas negros, a educação e as relações raciais. Publica textos em periódicos acadêmicos, revistas de comunicação e coletâneas literárias. É autor do livro Cinemas afro-atlânticos e Necropoéticas e outras histórias.
O conto abaixo integra o livro Necropoéticas e outras histórias (pré-venda), lançado pela Editora Nua.
Instagram: @marcorelio__
***
Dívida Histórica
Saí pela última vez daquele maldito consultório. Onde eu estava com a cabeça achando que um psicólogo conseguiria sanar os problemas que me assombram? Mesmo sendo preto, ainda é homem. Nunca vai entender os banzos de uma mulher preta. E a culpa não é minha, nem dele também, é dos sacanas que botaram esses B.O. nas nossas costas, a tal da dívida histórica. Pobreza, racismo, machismo e desigualdade social. Nunca pedi pra nascer, nunca pedi pra tirarem meus descendentes forçadamente da África.
Passei pela favela, e a galera mais uma vez me olhando de cara feia. Nasci lá, mas, desde que assumi o cabelo black power, pareço mais estranha na favela do que patricinha da zona sul. Na verdade, elas são mais bem recebidas. Têm dinheiro no bolso e um rasgo rosa entre as pernas. Cheguei em casa: um quartinho escuro e mofado no meio do Complexo do Alemão. Pelo menos, era meu. Paguei com aquele trampo provisório numa empresa grande de design. Pelo menos, meu diploma serviu pra alguma coisa além de história de superação pra contar.
Me olhei no espelho, tava cheia de olheiras. Cansei, alguém precisava fazer alguma coisa a respeito disso tudo. Tirei a roupa e me joguei no sofá cama. Olhei para minhas pernas, já tinha desistido também de me depilar. Homem nenhum valia a pena, e pior que, recentemente, nem as mulheres. Peguei o celular pra me distrair vendo uns vídeos de gatinhos até cair no sono. Era a única coisa que ainda fazia sentido nas redes sociais. Já tinha excluído praticamente todo mundo que comentava política ou fazia essas “arte engajada”. Deixei de seguir o pessoal do coletivo, da faculdade, galera do trampo e o bonde do corre do audiovisual.
Até que me deparei com uma postagem. Maldita postagem. Alguma alma que eu tinha esquecido de excluir porque nunca postava. Tava lá, mais uma vez, mais um caso de racismo. Uns três playboys do Leblon amarraram um jovem negro no poste, meteram a porrada no cara até acharem que ele tava morto. Alegaram que ele tinha assaltado alguma velhinha. Mal sabem que o mundo tá cheio de ladrões. Pra existir esse Leblon aí, alguém precisou ser roubado, desapropriado, desalojado, realocado, culpado. A questão é que os bandidos pro Brasil têm sempre a mesma cor: preta. Os verdadeiros bandidos, aqueles de colarinho branco, nunca são presos. Tipo os mocinhos dos filmes de ação que sempre vencem no final. A justiça do Brasil só enxerga duas cores: pele alva e pele alvo.
O caso do Leblon ainda piora. Horas depois descobriram que quem tinha assaltado a velha era um desesperado por droga, Antônio, Sidrônio, Teutônio, sei lá, um branco desses. Enquanto isso, Maicon estava no hospital, felizmente ainda vivo, mas carregaria sequelas pra vida toda.
Fiquei puta. O cara era trabalhador, tava voltando pra casa depois de fechar a loja, morava na Baixada. Fui ver as páginas dos movimentos, todo mundo denunciando, já tinha até gente escrevendo textão, falando de necropolítica, racismo estrutural, essas coisas. Apesar do alarde, todo mundo sabe no que vai dar: no máximo, um deles perde o emprego, outro tira um sabático na Europa e outro pede desculpas na internet, criticando a era dos extremismos e a cultura do cancelamento. Nada de novo. Semanas depois, todo mundo esquece o caso de Maicon, até aparecer outro para denunciar e garantir mais um selo na carteirinha de ativista.
Não dava pra continuar daquele jeito. Eu tava tão desnorteada que fui ler a matéria que saiu no grande site de notícias. Não contente, fui ler os comentários, mas pra quê? “Cidadão de bem não devia estar na rua essa hora!”, “Aposto que foi armado. Semana que vem, ele tá com casa nova e vaga em faculdade pública.”, “Se fosse com um homem de família não teria a mesma repercussão. Hoje em dia, é tudo mimimi”. Tava tão fora de mim que já ia escrevendo um comentário gigantesco, como se alguém ali fosse ler e mudar de opinião. Quando percebi meu surto, logo apaguei, mas a minha vontade era jogar tudo pro alto.
Fiquei com tanta raiva que bati em um limite e a raiva se transformou em insanidade. Desci do meu barraco, segui até a boca e já ia perguntar a opinião dos jovens quanto a isso. Quem sabe não conseguia uns comparsas pro que passava na minha cabeça? Mas achei nada a ver. Então, preferi seguir meu plano sozinha:
— Onde arranjo um ferro? — perguntei.
— Pra tu só se for ferro de passar, né? — disseram os vapores, gargalhando.
— Tô falando sério. Olha aqui a grana. Pode ser qualquer um, só preciso de um silenciador. Quero passar uns vagabundos — disse com tom alto e sério, já abanando o dinheiro.
— Calma aí, tia — disse um deles.
Em menos de meia hora, me entregaram uma peça, acho que era um desses Taurus calibre 38 com silenciador, aqueles de filme de velho oeste, sei lá. Sei que isso não é produzido na favela. Nem isso nem toda a droga que é vendida pelo tráfico.
Peguei a minha arma e fui pra casa. O baque foi tão doido que dormir assim que caí na cama. Dia seguinte, acordei ainda com a ideia na cabeça. Já tinham conseguido achar o perfil da rede social dos playboys. Eram tão burros que deixavam várias informações sobre seus hábitos no feed. Foi fácil descobrir que iam toda quinta no Baixo Gávea ostentar suas heranças. Arquitetei um plano o dia inteiro pra pegar os caras. Botei uma jaqueta preta, uma boina e minha camisa com a estampa da Angela Davis, um outfit de mistura de estudante de design da PUC com militante do Partido dos Panteras Negras. A Taurus tava dentro da nécessaire na minha ecobag de um evento desses de arte. Ninguém nunca suspeitaria. Homem tem medo de mexer em bolsa de mulher. Devem ter medo de encontrar algum absorvente pingando de sangue lá dentro, só pode.
Peguei uns dois ônibus pra chegar até o local — até pra cometer um delito na zona sul era mais sofrido. Apesar de todos jovens no baixo Gávea serem bem parecidos, consegui avistar os três. Estavam rindo e bebendo numa mesa de bar com seus colegas brancos. Como se fosse mais um dia normal pra burguesia, porém, felizmente, não era. Deviam ter ido depor nesse mesmo dia e já estavam em liberdade por causa de seus belos advogados e de uma boa fiança de mais de quatro dígitos.
Peguei um latão no ambulante pra fazer hora e esperar eles saírem do Boteco’s, onde estavam sentados. Como é que um lugar onde a long neck custa quase vinte reais pode ser chamado de boteco? Tinha gente que um dia de trabalho não pagava uma long neck dessas. Se liga no privilégio.
Os três deixaram as meninas em um Uber e foram andando pra casa. Seguiram a Visconde de Albuquerque e entraram os três no mesmo prédio. Eu ia precisar de um jeito de entrar. Tirei a jaqueta, amarrei um pano na cabeça e toquei o interfone. Falei que tinha esquecido uma bolsa depois da faxina na casa da dona Estela, o porteiro acreditou e me deixou entrar. Se liga no privilégio.
Já sabia o apartamento onde um deles morava, era o número de uma das hashtags que enchiam as fotos das reuniões que postavam toda a semana bebendo Chandon, comendo japonês e fazendo sinal de arminha com a mão. Toquei a campainha e disse que era a Ana Paula, que tava de passagem e decidi visitar. Eles, sem pestanejar, abriram. Culpa, provavelmente, do etanol ou da testosterona.
Os três tomaram um susto quando me viram, parecia a Pam Grier naqueles filmes de blaxploitation dos anos 70. A única diferença é que ela sabia lutar, mas eu, pelo menos, sabia fazer cara de quem sabia lutar e foi o suficiente. Esses playboys não estão acostumados com enfrentamento. Rendi todo mundo com a 38 apontada:
— Vambora, bando de branco, os dias de fartura de vocês estão contados. Todo mundo pro chão.
Eu acho que eles nunca tinham ouvido uma mulher negra falar alto com eles, o que me dava uma vantagem, mas sabia que eram traiçoeiros, então não baixei a guarda em nenhum instante. Pensei em dar um sermão, mas não faria sentido. Só queria que pagassem com a vida pelo crime que cometeram. A dívida era deles. Nós já estávamos pagando durante muito tempo com nossas vidas, nossos sonhos e nossas esperanças.
Senti que a mão de um deles se moveu, dei o primeiro tiro sem querer e acho que finalizei. Mirei na mão, mas foi parar na cabeça. Já era, foi pro saco.
Fiquei preocupada com o barulho do tiro, mas reparei que tocava algum rap na televisão, a última moda para esse pessoal da zona sul ouvir rap. Quanto mais palavrões e tiros, mais adoravam. Devia dar a sensação de viver no meio do perigo. Era aquela coisa de macho, tinham que gostar de violência. Deviam achar que o pau deles aumentava por isso.
Enquanto isso, o sangue ia se esvaindo da cabeça do rapaz, parecia vinho derramado lentamente no caríssimo carpete branco da sala. Não se mexia mais, e era o que tinha mais cara de esquerdo-macho, do tipo que vem com textão pedindo desculpas e culpando extremistas.
Não queria uma morte rápida, queria que eles agonizassem que nem o Maicon, talvez até que ficassem pra contar história, aparecendo na imprensa depois, falando que ficaram tetraplégicos porque uma menina com cara de empregada assaltou a casa deles.
Pra isso, precisava amarrar os dois sobreviventes. Pra isso, ia ter que imobilizar um deles primeiro. Aumentei o som, cheguei perto do joelho de um, esperei o momento da rajada de tiros na música e pow! Aquele ali não andaria nunca mais. Amarrei o outro com silvertape e vi a sua mão branquinha. Nunca deve ter pego em enxada na vida, só calejou a mão de prataria da vó, enquanto os pretinho ganhava a vida vendendo pó.
Um deles chorava de dor enquanto o outro gritava:
— Você vai pagar por isso, sua vagabunda!
Pagar por isso? Eu não vou pagar por nada, não! Vocês que estão com a dívida. Estão nos devendo a nossa sanidade, nosso diploma da faculdade, a nossa força de trabalho, nossa casa própria, nossas férias em Luanda, nossos antepassados. Estão devendo tudo e vim cobrar.
Pensei, mas não falei.
Fiquei puta. Comecei a enrolar o cara todo, das mãos passei pro peito, depois segui pro rosto, enfitei a boca para ele parar de falar, enfitei os olhos e terminei com o nariz. O cara parecia um envelope. Lacrei. Não entrava uma gota de ar ali. Em minutos, ele morreria, mais enrolado que múmia. Pela força do silvertape, se mil anos depois o encontrassem, ainda estaria embalsamado com a mesma cara de assustado.
Agora precisava me encarregar do último. Precisava fazer justiça para todo o nosso povo, por qualquer meio necessário. E precisava ser poético — não me dei àquele trabalho todo pra simplesmente dar dois tiros na nuca do cara. Ele tinha que ser minha obra-prima.
Olhei pras facas Tramontina em cima da mesa, pensei em enfiar debaixo da unha deles, tipo tortura da ditadura, mas não era meu estilo. Pensei em chicoteá-lo que nem os antepassados dele fizeram com os meus, os HDMI da televisão de 50 polegadas da sala que seriam perfeitos pra isso, mas seria muito brutal e cansativo. Tinha que enforcá-los, seria o mais bonito; procurei pela casa algum desses tecidos caros, cetim, seda, carmim sei lá. Encontrei uma bandeira do Brasil num armário. Por que não pensei nisso antes?
Fiquei preocupada, o cara do joelho não parava de gritar de dor, tinha que fazer alguma coisa, rápido. Tinha a impressão de que, a qualquer momento, alguém ouviria os gritos, os vizinhos iam aparecer, todo mundo deveria ter uma arma em casa, olhei para o gatilho, nem sabia mais quantas balas tinha ali. Os policiais podiam aparecer a qualquer momento.
Acho que algum deles se cagou de medo, um cheiro de merda confundia meus pensamentos. Aposto que ele suplicava mentalmente que mais uma mão preta fosse limpar a sua sujeira. Dessa vez não, meu querido.
Precisava terminar meu trabalho logo, precisava fazer a minha arte.
Envolta num turbilhão de devaneios, brigando com a minha própria ansiedade, me senti suspensa no tempo. O que eu estava fazendo ali? O que seria da minha vida depois disso? Será que realmente tinha feito a coisa certa? Tudo começou a andar em câmera lenta até que… pow! pow! pow!
Acordei do nada na minha cama, o vídeo de gatinhos rolava em looping no celular em minhas mãos. Acordei aliviada. Não foi só um susto, tormento ou epifania de catarse dessas. Talvez, se todo fudido tivesse feito como meu sonho, o mundo fosse mais justo e melhor. Mas não sei se é o caminho correto. Devia ser proibido gente pobre ter um sonho de vingança desses.
Amanhecia, e me lembrei que tinha que finalizar mais um trabalho e que, mais uma vez, tinha deixado pra última hora.