Um conto de Marco Aurélio
Marco Aurélio desde pequeno é um exímio ouvinte, daqueles que escutam tanto que até se esquecem de falar. Pela sua curiosidade se tornou um colecionador de histórias fissurado, daqueles que de tanto querer guarda-las quase fica sem espaço no baú de suas memórias. Por gostar tanto de ouvir as histórias dos outros se tornou educador. Atualmente divide o seu tempo como professor da rede municipal do Rio de Janeiro com pesquisas acadêmicas e a escrita de devaneios nos mais diferentes formatos.
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Por pouco
O cômodo estava coberto por um breu completo, as primeiras impressões de mais um amanhecer aparecem por debaixo da cortina de black out. Os feixes de luz o possibilitam ver a bagunça que o rodeia, parecia que ele estava dias ali dentro. Mais uma noite de insônia e nasce mais uma vez o sol.
Seu corpo ainda está congelado por causa da memória do choque, tenta fugir da luz, mas está totalmente paralisado. Está tão estatelado que parece que foi preenchido por completo por algo que não o pertence. Ainda ouve a sua voz, mas está tão entupido que nada penetra em seus ouvidos, suas narinas e seus olhos. O corpo está arrematado.
Subitamente chora. Com um espasmo, igual a um bebê, vai a posição fetal. Primeiro movimento em horas. Apesar do estágio de desolação é guiado lentamente por sua voz. Senta na cama, mãos na cabeça, o molhado do rosto escorre por seus braços. Seco por expelir tanto choro pra fora, sente a necessidade de água.
No caminho da cama à pia, desvia dos objetos que tateia com os pés. Sapato sujo, bermuda jogada, livro infantil com um dinossauro na capa. Ouve a voz dela dizer: “a vida não me assusta”. Pensa que podia ter sido ele ao invés dela. Sentia que era melhor ter sido extinto.
Pequenas gotas lacrimejam pela torneira que mergulham junto a um mar de louças abandonadas na pia. Pega um copo, leva ao filtro, quase transborda absorto em seus pensamentos. Foi por um pouco.
A água desce aglutinada por sua garganta, joga o copo vazio na parede. O som estridente do vidro se partindo é abafado pelo marasmo do quarto. Os cacos estilhaçam e parecem cortar seu rosto. Esbraveja a raiva, encontra um espelho próximo. Com a penumbra de seu cômodo, precisa chegar mais perto do seu reflexo para enxergar. Vê o seu rosto, intacto, nenhum arranhão. Vê a sua pele escura que se confunde com o breu de seu cômodo; toca nos fios de cabelos brancos que estão começando a aparecer. Seu reflexo lembra ela: mesma tonalidade de pele, mesma textura de cabelo; ele fios grisalhos, ela fios descoloridos. Lembra do vidro rachando e desmantela mais uma vez de choro. O espelho preto desmancha como líquido em sua presença. Seu corpo físico está intocado, seus pensamentos esfacelados questionam seu corpo social.
Uma imensidade de sons, gritaria, ruídos, sons de desespero e a voz dela no fundo começando a povoar seus ouvidos. Se encurva até ficar quase de joelhos no chão. Ao ouvir o som que parecia ser o familiar barulho das hélices de helicópteros se joga no chão esperando o pior. Agora finalmente fere seu rosto nos cacos de vidro espalhados pelo chão.
O alívio não durou muito. Apesar de distante ouve murros na porta, quase no pé da orelha. Era chegada a sua hora. Já sentia a bala o perfurar entre os olhos, que iriam espalhar suas ideias pelo cômodo. De onde será que vinha o sangue que escorria dele? Sua voz o enganava, agora escutava a voz dela o chamando pela janela. Suava de calor e de pavor. A voz dela queria agradecê-lo por tudo. Foi por muito pouco.
A melodia da voz o embalava, lhe dava coragem para ir lentamente em direção a luz que entrava pela fresta da janela. Quase rastejando chega e abre a cortina em direção a varada. O sol estava tão forte que o vento quente quase evapora seu corpo cheio de suor e de temor. Se depara com uma vasta paisagem de casas em tijolos, telhas, caixas d’água azul e sem uma única alma a povoar os céus.
Altivo está o sol no céu. Decidiu encará-lo olhando para cima, porém, era impossível olhar diretamente para ele altivez o cegava. Então, lentamente olha pra baixo seguindo o chamado de sua voz.Se depara finalmente, só que agora ela não estava mais sozinha.
Crianças brincavam na rua, meninos e meninas corriam atrás um do outro e de uma bola laranja que rolava pelas poças do meio fio. A menina de cabelo descolorido estava lá, será que era ela mesmo? Se não fosse, a diferença seria muito pouca. Recordou o incidente, mas desta vez com orgulho. Lembrou de sua coragem: o professor que se jogou na frente da menina para protegê-la das balas atiradas sem piedade pelo helicóptero que sobrevoava a escola pública. Por sua bravura, professor e aluna safam-se das balas. Nem uma vida a menos.
Foi por muito pouco mesmo. As risadas e a alegria das crianças reaqueceram o ânimo do professor.
Ele pensou na diferença que sua atitude faria na vida daquela menina, de sua família e de outras crianças. Finalmente sorriu, junto a brincadeira delas.
A gargalhada das crianças espantava os falcões de metal que sobrevoavam aquela comunidade, a brincadeira era o calor que faziam as pequenas sementinhas desabrocharem pouco a pouco crescendo em direção ao sol. A risada iria fazer florescer toda aquela terra arrasada pelos predadores aéreos.
Ele, olha novamente para o sol, com um sorriso de canto de boca. Agora as pipas coloridas aparecem mais uma vez fintando céu.