Um conto de Marília Bonna
Marília Bonna está em algum lugar entre o Rio de Janeiro – onde nasceu – e o Mato Grosso, onde foi criada. Habituada a fronteiras, gosta de estar entre a imaginação e a realidade. Por isso, dedica-se aos livros: tendo se tornado especialista em Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo pela PUC-Rio e mestre em Estudos Literários pela UFMT, além de exercer -desde 2015 – o ofício de livreira no Sebo Rua Antiga, fundado por ela e seu companheiro, o aquarelista Thiago Iusso Sinohara.
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Grande Sertão
“Grande Sertão”, ela pensou. Deitada no tapete da sala, aos pés da imensa estante de madeira que ocupava quase toda a extensão da parede: os vinte e dois anos de uma biblioteca comum com Elias, que então começava a se desmanchar. “Grande Sertão” é meu — ela teve certeza que queria, localizando a lombada numa das prateleiras superiores, sem forças para levantar e pegar, mas iniciando dentro dela o movimento de partilha. Era de madeira muito antiga, a estante: herdada de algum parente remoto, há muitas e muitas gerações na família — uma estante de mogno, uma estante eterna. Os dois tinham desistido de se mudar algumas vezes por causa dela: tão pesada, tanto trabalho para movê-la, tanta gente envolvida no trânsito. Quanto pesa uma estante como essa? Imaginou-a desabando de repente, projetando-se para ela, com seus cem anos de existência, sua realidade maciça, seus quatro mil livros. Como se já não tivesse atravessado século, guerras, migrações. Ou, quem sabe, exatamente por isso.
A edição do Rosa era aquela limitada: dez mil livros para todos os leitores do país, numerada à mão, capa de tecido, título bordado em vermelho. O vestido também era vermelho, não era? Duvidava ter sido algum dia essa mulher capaz de usar vermelho. O vinho tinto, sim, era uma certeza daquela noite perdida. E da manhã seguinte, quando acordou passando muito mal, achando que ia morrer e alguém, inesperadamente, segurou sua mão; o vinho tinto, sim, é uma certeza na sala obscura, mais que a estante de mogno – que atravessou século, guerras, migrações e pode, por isso mesmo, desmoronar a qualquer momento; mais que a edição do Rosa, pela qual —com certeza — teria que lutar um pouco. Na manhã seguinte, embora evitasse pensar tão longe, o vinho seria ainda uma certeza — na dor de cabeça, na tontura, na vontade de morrer —, e, inesperadamente, não haveria ninguém para segurar sua mão.
Reparava na de Elias — firme, os dedos infinitos —, brincando com a palavra “Sertão” bordada na capa do livro. Devia ser manhã de domingo, com certeza era manhã de domingo, e os dois tentavam descobrir a intenção editorial e artística dos restos de linha vermelha (que ele puxava, distraído) sobrando ao fim de cada letra costurada do título, como se tivessem esquecido de cortá-las, como se descuido. Ela achou que queriam simular rastros de sangue – indícios ao leitor atento do que estava por vir; ele, que queriam dizer, também ao leitor atento, que aquele era um livro sem arremate, que continuava para sempre, mesmo depois do ponto final. Mas não continuou, ficou com preguiça de escolher outros livros para seguir com a partilha e deixou-se ficar ali, esquecida entre a estante de madeira e o chão, pronta para ser dilacerada por vinte e dois anos de livros, por um século de existência, pela memória obstinada das árvores.
Quando completaram cinco anos de casados, plantaram uma aroeira na chácara do avô dele, para comemorar as bodas de madeira: ela estava de botinas, tão ridícula. Acompanharam com dedicação o crescimento da árvore, a dilatação progressiva do tronco, até o momento em que ela se transformou numa presença sólida, capaz de dar abrigo a alguém, de raízes aparentemente eternas. Como as desse móvel, fincado no chão do apartamento há anos, maltratando o piso de taco que ela tanto ama. Não seria bom se essa estante desabasse, sob o peso dos livros, do século, das guerras; sob peso ignorado das migrações? Só assim para se desfazer dela, dessa imensa árvore sem ramos e folhas e frutos. Seca.
Ela se irritou um tanto porque Elias insistia em brincar com o bordado do livro — com o bordado do livro raro — revolvendo os fios soltos de “Sertão”, como se não fossem delicados o bastante para que a palavra desmanchasse em suas mãos. Com certeza foi numa manhã de domingo porque ele estava bem-humorado o suficiente para que isso não virasse uma briga: disse apenas, um pouco contrariado, que teria cuidado, e continuou puxando levemente os fios vermelhos, como se lhe fosse impossível não desmanchar. Como se fossem os do vestido que ela usava na noite em que o conhecera; do vestido vermelho que quase esqueceu; do vestido vermelho que ele desmanchou.
Foi numa manhã de domingo, ficaram os dois calados na sala, evitando a discussão absurda. Quando Elias se cansou e foi embora, ela imediatamente se levantou pra conferir o que restava: as linhas soltas se emaranhavam vermelhas, embaraçadas, perturbando um pouco as palavras, deformando-as até.
Foi difícil enxergar de primeira, mas o sertão estava lá.