Um conto de Mario Rui Feliciani
Mario Rui Feliciani é fotógrafo e contista. Publicou O cheiro da uvaia no capim – nas manhãs de setembro, prosa variada; Histórias de amor e nem tanto e Dobras, contos; O jogo das combinações, infantil; e Quando o carteiro chegar, fotografia. Realizou as exposições fotográficas “… E um pouco das pessoas”, “Telas casuais”, “Uma casa e uns outros cantos”, “Quando o carteiro chegar”. Realizou capas de diversos livros com suas imagens. Publicou também contos e imagens em diversas revistas, inclusive o ensaio fotográfico “Assim vivem as corruíras”, na revista Ara da USP. Site: http://mruifotos.com/
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cota e zumbidos
Cota. Eles falam “bairro-cota”. Cota é a altura. Os bairros ficam cada um numa altura. Ganharam o nome da altura, aqui na serra. Gente não pode ter nome da altura, 1,70m, que tem muitas pessoas com alturas iguais. Bairro não. Aqui na beira da estrada, Via Anchieta, uma cota aponta pra um bairro só. O nosso é 150.
Foi de uma cota também que eu caí. De cima da casa. Cota de quase cinco metros até o chão. Não andei mais. Caí da cota e vim morar aqui no bairro cota. A mulher, a Neuza, comprou a casa, barata, poucos querem. Não tem mercado, só vendinha, não tem loja, nem shopping, imagina, pega televisão, com parabólica é melhor, e agora chega internet. Não uso muito ainda, mas é bacana. Quem usa muito tem muito amigo. O compadre Osmar tem 300. Será que já tive 300 amigos? Paulo, 1; André, 2; Joaquim, 3… Ao todo não tive acho. Se descontar os que esqueci e os que não falo mais é muito menos.
Quando caí achei que a Neuza ia me deixar. Se deixasse, eu entendia. Quem é obrigado a ficar com homem que não anda mais? Era, e ainda sou, grande, era forte, carregava ela pela casa, da cozinha pra cama, e ela ia rindo. Carregava que parecia menina, leve. Era muito forte, mesmo gordinha, ela não me pesava.
Casou comigo eu era forte. Se desgostasse de mim, entendia. Era alegre, a cadeira me deixou de olho triste, ela me dizia. “Você tem que animar”.
Como ia ficar, se tinha amor pelo homem forte? como ia ficar, se não ando mais? Forte aqui na mão e no tronco ainda sou, talvez mais, tenho que erguer o corpo pesado, fortalece, mas as pernas não se mexem. Penso nelas pra mexer, mas não adianta.
No início o amor não veio. Pensava que logo ela ia arrumar alguém que carregasse ela pra cama como eu fazia. Ela não caiu. Eu que caí. Acho que umas vezes o Artur ali da outra rua carregou ela. Demorou pra voltar do mercado, foi de ônibus, é longe, demora mesmo, mas demorou demais. “O ônibus atrasou”. Podia ser o ônibus, mas ela veio com o olho baixo. Três vezes ela veio com o olho baixo. Não senti cheiro. Nem cheiro de corpo, nem de banho recente, mas mulher sabe cuidar dessas coisas. E não forcei pra sentir o cheiro. Não senti, mas não botei atenção. Mas ele carregou ela sim. Três vezes eu acho. Eu não tocava nela. Nem com as mãos e a boca como agora. Depois ela não atrasou mais, o Artur voltou a me cumprimentar, antes virava a cara quando passava. Outro dia até parou pra conversar. Ela ouviu de lá de dentro, veio ver. No começo achei que ela tava nervosa do que ele tava dizendo. Depois ficou calma, sorriu até e acho que deu pro Artur um olhar de agradecida. Eu vi. Servi pra ele e pra mim uma cachacinha. Ela não toma. “Coisa que queima essa”. Tomou coca. Sorriu pra ele agradecida, tenho certeza. Olhou pra ele como namorado antigo. Pra mim como amor, que carreguei ela muito. Caí trabalhando pesado pra comprar as coisas da gente. Agora tenho as mãos e a boca. Não atrasa mais. Se atrasa, liga de 15 em 15 minutos pra eu saber que ta sozinha. Que ninguém carrega mais ela.
O bairro cota pra onde a gente veio depois que caí é de pobre e é na beira da floresta. A gente não tem documento, ninguém tem. Vez em quando tem deslizamento. Floresta fechada até ali e depois mais limpa nas ruas. Mas chegam umas árvores grandes até a casa da gente. No começo a cadeira só andava na casa. O terreno tinha buracos, tinha degraus, tinha entulhos. Só olhava limpo prum lado, da porta da cozinha. O outro lado só via da janela do quarto, mais as árvores de longe. Um dia Neuza apareceu com os três camaradas, Bastião, Raimundo, Leandro, não era aniversário, não tinha jogo na tevê, estranhei, apareceram cedo, falaram comigo só um pouco e saíram.
Muita falação dos três, eles tavam comigo quando caí, muito barulho de ferramenta, muita conversa e deboche de futebol. O que faziam começaram do outro lado da cozinha, eu não sabia o que era, “o que eles tão fazendo, Neuza?”, ela meio que riu, “deixa eu aqui, fica quieto, senão eu erro a rabada”, eu ri, “que cê ta aprontando, mulher?”. Quando acabaram de trabalhar atrás, chegaram na porta da cozinha e entendi. Fizeram caminho, bem limpo e plano, de terra. Puseram pedras, cimentaram. Desde a casa, a volta toda, até perto da mata fechada. Lá botaram mesinha pras frutas dos passarinhos e macacos. Até também do outro lado, na beira onde começa o barranco. Lá embaixo se vê a estrada, os caminhões, gosto de caminhão grande. Acho que podia dirigir caminhão. Fizeram quintalzinho, puxado de eternit, churrasqueira. O tranqueira do Bastião desenhou brasão do palmeiras pra me provocar. Nada disso vi no dia, que não podia passar com a cadeira no cimento mole. Só contaram e eu imaginei, bem igual ao que vi depois. Contaram enquanto lambuzavam as mãos e as bocas de rabada. Levou três dias pra passar com a cadeira. Fomos eu e a Neuza. Eles só não tinham contado que no barracão de eternit tinha um altarzinho pra pôr tevê. “Eles disseram que é pra ver o jogo aqui”. Eles tavam comigo quando caí. Catei a Neuza pelo quadril. Por causa da altura da cadeira, minhas mãos pegaram ela pela bunda. Antes não tinha cadeira e não era diferente. Derrubei ela no colo da cadeira. Carreguei pela calçada inteira que os camaradas fizeram. Dei a volta mais comprida. Dei outra volta. Ela ria muito, menina. Carreguei até o quarto. Mãos e boca.
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Toda manhã, Neuza vai. Trabalha até umas quatro. Quando ela sai, vou até a beira do barranco com a cadeira. Paro embaixo do galho mais horizontal, me penduro com uma mão, afasto a cadeira com a outra e faço barras. Muitas. Ao longo do dia faço mais. Outras vezes. Menos barras por vez, pra circular o sangue no traseiro.
Depois das barras, fico ali. Escuto a passarada e os grilos. Escuto os caminhões que passam lá embaixo. Esses ruídos todos ficam por cima do zumbido.
O zumbido é maior de noite. No silêncio do quarto. No barulhinho bem menor da floresta. Um monte de grilos juntos, dentro da cabeça. Ligo o rádio e ponho no ouvido do zumbido. Esqueço o zumbido e esqueço o outro, pior, barulho das ideias ruins. A noite dá conselhos ruins.
De manhã são mais pássaros, são mais caminhões, tem o rádio da vizinha Nair, mais barulhos. Mais coisas pra ver. Vai o zumbido e vão as ideias.
Neuza sai muito cedo. Cinco da manhã. Volta quatro da tarde. Às vezes vai às compras. Se atrasa, liga sempre, pra mostrar que ta sozinha. Que não tão carregando ela. Liga desde que comecei a carregar ela na cadeira. Desde que Artur começou a papear comigo. Já faz um ano.
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Semana passada, Neuza atrasou do mercado sem ligar. Uma hora. Antes de ontem, de novo. Demorou pra ligar e quando ligou era muito silêncio. Como se estivesse num banheiro. Pra eu não escutar onde estava. Os barulhos continuam escondendo o zumbido, mas as coisas pra ver não estão dando conta das ideias. Será que Artur não me viu quando passou ontem? Ou ta envergonhado? Não vejo mais nada, só ideia em cima de ideia.
Vou pro galho horizontal. Rodando com a cadeira. Nem ligo pro degrauzinho que o Júlio deixou e todo mundo criticou. Passo por cima. Dá tranco na roda da cadeira. Na roda grande e na roda pequena, que dá ainda mais tranco. Nem ligo. Nem me preocupo se quebra, se entorta. Ideia em cima de ideia. Neuza escondida no banheiro silencioso. Pra eu não escutar nada. Mas se não escuto nada ela não está no shopping. Não está nas compras. Tem pouca gente perto. Ta em lugar fechado.
Na árvore do galho horizontal, tiro a camisa. Tenho ainda bonito tronco, Neuza se aninha sempre nele. Faço as barras com força. Com raiva. Muitas. Suo. Não há zumbido, só ideias amalucadas. Artur é vigoroso assim, será? Ah, Neuza, estão te carregando de novo?
Mal percebo quando a Nair, a vizinha do rádio alto, vem, atravessando o quintal dela, até minha árvore. Trabalha em casa, o marido sai cedo, o contrário de mim com a Neuza.
Ela se chega. Moram faz poucos meses. Deixou lá na casa dela o rádio ligado. Para na minha frente. Sorri um pouco, mas não diz nada. Olha pros músculos dos meus braços. Do meu tronco. Não olha pras minhas pernas paradas. Demoro a diminuir as barras. Ideia em cima de ideia. Muita força, muito suor, vejo pouco a cara dela. Fica ali muito tempo. Um pouco desavergonhada. Devagar, muito devagar, vou percebendo.
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– Nair, você foi lá em casa como falamos?
– Fui, Neusa, onde você estava? achei ele triste. Bravo até. Fazia exercício com força, bruto.
– Tava no shopping nos dois dias. Um dia não liguei. No outro também, só do banheiro, que é bem silencioso, ele ia perceber. Ele ia desconfiar. Achou ele bonito, meu homem?
– Muito bonito. Será que depois a tristeza passa? E se não passar?
– Passa sim. Conheço ele. Vê se gosta bastante dele, tá?