Um conto de Matheus Rocha
Matheus Rocha (Recife, 1993). Cedo, partiu para Gararanhuns, onde vive desde então. Publicou os livros de contos Inteligência das Coisas Cegas, em 2015, pelo selo u-Carbureto, e A vida útil do fim do mundo, em 2017, pelo selo Pedra de Mó. Além de ficcionista e coordenador de oficinas literárias, é formado em Psicologia pela Universidade de Pernambuco.
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Depois do anoitecer prematuro
“É preciso um passo, depois outro. Dentro do inferno, sobra monóxido de carbono. De dentro do inferno, deve se sair de fininho, mas com precisão.”
– Állex Leilla, Primavera nos Ossos.
Voltaria minha vontade de me enfurnar no quarto. Voltaria a trancar a porta, levar pra cama meu café forte e passado na hora, alguns chás, sanduíches, pizzas. Talvez um macarrão, vez ou outra. Hello from the otherside nos fones, pra não atrapalhar o silêncio que ainda concedo nessa casa vastíssima e só, enquanto o tempo passa em fiapos cada vez mais finos. Voltaria a vontade de acender um cigarro, consumindo essa saúde já débil que ainda resta – ou pra ressecar os lábios, pretexto pra beijos possíveis. Já não atendo mais tanto celular por pura falta de ligação, nem pra uma conversa rápida. Um telefonema sequer pra dizer oi, tudo bem?, e aí?, e a vida? Não, nem isso. Desligaria tudo, jogaria naftalinas nos recônditos das gavetas, escondendo tudo pra não temer sufocar a garganta com uma dessas. Ou eu me poria à beber toda a sorte de destilados, mergulharia de novo nas cachaças que me valem mais que qualquer terapia. E viriam conversas insólitas e insolúveis madrugada adentro, com um monte de gente desconhecida colorida em neon num desses bares de esquina que rivalizam com a igreja à frente. Um monte de gente feia, e eu procurando alguém bonito quando eu devo ser a pessoa mais bonita da festa – de longe: olha o nível. E se surgisse, enfim, não iria mais dizer que estou bem, por pura educação. Soltaria um grande foda-se pra tudo e todos, não esconderia que estou na merda, descendo de novo esse poço escuro, esse foço cheio de lodo, ali no bar ou em casa, trancado, tentando me desviar dessa solidão fodida. Sentado na mesa ou na entrada do bar, tanto faz, essa conversa vai saindo, vai levando a outra pessoa e eu pelas calçadas esburacadas, pelas ruas iluminadas com lâmpada de led da Avenida Rui Barbosa ou da Avenida Santo Antônio, até a porta da casa ou do apartamento. Ou para um grande inferno. Mick Jagger nos recebendo como um demônio plumado, de braços abertos e se requebrando, várias luzes do mesmo neon da festa atravessando seu corpo em negro. E só chegamos até aqui porque realmente somos pessoas de posses e variados gostos, temos alguma simpatia. E de propósito pego aquela baga no chão e acendo, pra fazer cara e só. E haja drama. Tanto que ela não aguenta, inventa qualquer desculpa: já tá tarde, eu preciso ir, moro longe, é esquisito – mas no fundo eu sei que há essa insegurança, essa instabilidade que afasta e é toda minha. Fico só eu e esse porre imenso, homérico, errando a chave na porta, provavelmente esquecendo de trancar direito depois que entrar, aquela dúvida de não saber se tranco ou se entro. O ar da casa me engolfando na primeira baforada. Hora de cair na cama e chorar aos cântaros, descontroladamente, sem altivez nenhuma, com a cara afundada no travesseiro, abraçado a qualquer almofada, não me perdoar por mais um insucesso, por não ter sido nessa noite que fiz um escândalo dizendo que amava alguém, que joguei copo na parede, subi na mesa, um monte de gente morrendo de vergonha, de inveja ou de raiva. Impossível saber ao certo. Não foi a noite em que te puxei pro canto do bar, da casa, da cama, te coloquei contra a parede literal e metaforicamente, e te disse tudo de uma vez, num fôlego só, disse enfim que te amava, que é você – anônimo, até hoje – quem eu quero na minha vida, aqui do meu lado, segurando a mão, que perdi a conta das vezes que confundi outras mulheres com você, de quantos goles doces entornei ao som de alguma música, Bethânia, Chico, The Cure, Smiths, Stones, tudo dói, tanto faz, ou a quantidade absurda de vezes que te chamei em ato falho, em horas impróprias. E acordar no outro dia, talvez uma daquelas segundas-feiras temíveis, te olhando descabelada, maquiagem borrada de choro, eu com o cabelo esmagado pelo sono, uma cara desavergonhada te olhando por sobre os óculos, alguma ressaca escorrendo na boca, rindo de lado como quem pergunta se precisa pedir desculpa. Mas me disseram que eu só sei falar de amor se misturar com álcool – mesmo que seja como uma figura de linguagem, como metáfora, como imagem alterada; que essa é minha desculpa mais confortável pra isso. Então, imagina que eu vou fazer tudo isso sóbrio, te dar minha declaração de amor definitiva descaradamente, ainda mais descarado do que se estivesse bêbado. E eu não precisaria mais jogar flores no lixo, nem mandar indireta em rede social em forma de música, com a cara mais lisa do mundo ir te encontrar e fazer um comentário aleatoriamente suspeito, fina ironia que você pegaria de primeira e daria aquele riso – ausente no teu RG. Eu chegando de surpresa, com a cara e a coragem, te pegando desprevenida no meio da rua, ou no trabalho, ou em casa, mesmo. Sem carta de amor decorativa, toda melosa, cheia de coisas imbecis, as mesmas que a gente diz normalmente e que eu te diria ali, nervoso. Se eu me lembrasse, iria de blusa branca e não de preto, como sempre. E então me olharia demoradamente, várias vezes – como se, mudando de ângulo, você visse alguma brecha pra escapar, alguma nuance imperceptível ou mesmo se perguntando se era isso mesmo, se essa era a verdade ou eu não tava escondendo nada além disso. Agora, sim, o beijo, as mãos, as costas, a cena toda como se fosse o final de cinema paradiso, somos todos os casais ao mesmo tempo, e mesmo os que vieram depois. Um beijo roubado, aquela cena final com o beijo mais gostoso do cinema recente, você não acha?, e quem sabe o primeiro sexo, desenfreado, caloroso. Já de cara aquela paz que a gente supunha antiaderente, ou o filme negativo de uma neurose qualquer, os ombros de novo caídos. Um peso a menos nas costas, a proposta de um amor moderninho ao som do Pethit, Vanguart, Los Hermanos, Arctic Monkeys. Acender um cigarro, cruzar as pernas, uma selfie pós-sexo. Não mais procura, o amanhã não precisa virar depois e depois e depois, mas eu vou precisar voltar pra casa, pro quarto, logo a seguir. E quem sabe não volto com um sorriso a esmo, desfilando pelas mesmas calçadas, iluminado pelas luzes de led, saindo triunfante do inferno e ganhando a simpatia enquanto faço o coro de fundo ‘uuh-uuh’. Volto, me tranco de novo, fecho a porta com mais cuidado que de costume, de novo passar um café forte, jogar algum blues lento no som, espiar pela janela o dia terminando, pensando em que tipo de jantar te oferecer.
Você viria.
Não viria?