Um conto de Morgana Feijão
Morgana Feijão é cearense, mas mora em Brasília desde o final da adolescência. É graduanda em Letras pela Universidade de Brasília. Publicou três elogios pela Editora Êxito em 2020.
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— o romantismo acabou com a nossa relação com a arte — você me disse, enfiando os livros desajeitadamente na mochila. — mas salvou nossa relação com o mundo.
como de costume, fiquei calada: seus pensamentos, misteriosos, fragmentados, ditos quebrando o silêncio ou interrompendo conversas banais não eram para mim. minha mente não se ocupava das mesmas coisas que a sua – você pensava em arte e literatura, cinema e filosofia; eu pensava em deus e em você.
outro dia, na parada do ônibus, você me olhou de um jeito que nunca olhara antes – eu cataloguei todos os movimentos dos seus olhos em pastas bem organizadas nas prateleiras do meu cérebro – e eu fiquei desconcertada, boba, a mão estendida no ar como um movimento de dança desajeitado, seus olhos espertos e vivazes focados apenas em mim, e eu me senti vista, talvez pela primeira vez, realmente vista, despida de qualquer invólucro, ignorando o suor que brotava na minha testa e o sol que aquecia minha pele. pensei naquele olhar o dia inteiro, a noite inteira, fui um desastre fazendo almoço e janta, distraída, deitei-me para dormir e seus olhos queimavam por trás dos meus olhos fechados, pressionei as palmas das mãos contra as pálpebras a fim de ver explosões brancas se formarem. nada disso, a tirania do seu olhar havia me capturado de vez.
tudo o que fazíamos juntos não era feito juntos. você tinha uma cabeça cheia de sonhos grandiosos, inspirada por tudo o que admirava. eu tinha uma cabeça com um único e modesto sonho, você. juntos, você estava sozinho e eu também.
queria ver o filme e queria ver você vendo o filme, a forma que seu rosto se concentrava. você apontava para a tela e me comentava qualquer coisa que eu fingia compreender, a minha atenção longe demais. eu sabia que tinha que me concentrar, que os filmes e os livros eram parte de você, que tendo um pouco deles eu teria algumas das suas migalhas. mas e se eu não quisesse entender de cores e enquadramentos que não os seus? como seria a cor do seu cabelo debaixo da lua, como seus olhos refletiam o sol, como seria ver seu rosto entre as minhas mãos, ver suas mãos sem precisar usar os olhos?
sabia que você nunca seria para mim, porque sua mente trilhava labirintos e a minha andava em linha reta para você.
depois, comecei a pensar se não víamos tantos filmes para preencher um silêncio incômodo. você dizia tudo em rompantes, eu dizia tudo em sussurros, sentávamo-nos de frente para a televisão e tudo se tornava ritualizado: tirar a fita da caixa, colocá-la no videocassete, depois haveria o tempo de rebobinar, e nesse tempo você me dizia tudo o que achava e esperava ouvir o que eu achava? esperava? ou ficava feliz com uma plateia que não respondia? eu dizia que havia gostado para tudo, a ponto de ser frustrante, talvez você pensasse como eu poderia gostar de tudo? e era tudo o que vinha de você e por isso eu gostava, como não podia entender? no fim, talvez faltasse desafio de minha parte. eu não inspirava você como todo o resto; era feito água, insípida, inodora, incolor. só não era tão essencial quanto (, eu pensava, o coração batendo forte desejando ser, desejando, desejando ser).
de noite, pedia a deus que me enviasse qualquer luz, qualquer sinal. não podia pedir que deus me desse você, embora quisesse e embora ele soubesse de qualquer forma. mas podia pedir calma, paciência, força. e pedia, pedia. todo o conforto que ele pudesse me oferecer, eu pedia para receber. e recebia, recebia. era deus quem me ajudava a encarar você todos os dias sem desabar. sabia que você não acreditava e já havia até revirado os olhos pro terço que estava sempre comigo. isso não era problema, meu corpo havia sido feito para abarcar todas as nossas diferenças.
você falava sobre se mudar, sobre subir num ônibus com nada além de uma mochila e um mapa, sobre aprender o mundo com o toque, e meu coração ficava miudinho, miudinho, pensando em você longe, em todos os lugares inalcançáveis, você que transformava qualquer passeio em jornada, e eu que tinha medo e não fazia parte. olhava para o céu e eu sabia que queria estar entre as estrelas, víamos o mar em revistas e eu podia ver sua ânsia de senti-lo bater nos pés. você e o mundo inteiro; eu e você.
naquela tarde, quando palavras encontraram o caminho forçado para fora da minha garganta – com mãos que arranhavam todo meu interior, nunca fui de dizer muito e, você sabia, falar me era lancinante – você me olhou com olhos curiosos, a mão a meio caminho do meu cabelo, inclinou-se para dar um beijo na minha têmpora – guardei a delicadeza do gesto como se guarda uma pétala de flor dentro de um livro, guardei tão bem guardado que se fechar os olhos agora posso sentir a mesma pressão leve, já indo embora, alguém que não tinha como ficar, o coração andarilho.
seus olhos brilhavam sob o sol quente do meio-dia. sob seu olhar, senti-me como em um filme, como se fosse um filme que você assistia. viva, mais do que nunca.
— a melhor modalidade de paixão é a não correspondida — falou do mesmo jeito que falava tudo: categoricamente. pediu meu terço e eu o entreguei, no dia seguinte sua mãe chorava porque você havia ido embora sem dizer para onde.