Um conto de Neide Silva
Neide Silva é psicóloga e atua no campo artístico em duas frentes. Como artista plástica, empresta seu talento para pequenas esculturas e telas. Como escritora, publicou os livros infantis Cigamiguinho, Sabina, a sapinha bailarina, Kaike e Iribi Sabiá, este último selecionado recentemente em um edital da prefeitura de São Paulo para ser distribuído em bibliotecas públicas e escolas do município. Atua no coletivo literário Maria Taquara/Mulherio das Letras – MT, que promove discussões acerca da literatura escrita por mulheres.
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Enfiando os pés pelas mãos
Olhando para os meus pés, recordo da infância. Lembro da minha avó paterna e da paixão que eu tinha por ela. Analfabeta letrada da vida. Contadora de histórias, eu, a fiel ouvinte. Uma mistura de sentimentos e emoções tomava conta de mim. A cabeça borbulhava como uma panela de pressão. Tantos questionamentos guardados comigo mesma.
Angústias reforçadas com as histórias de princesas. No conto da Cinderela, os pés e mãos pequenos e finos, a suavidade no andar, falar e sorrir, os belos vestidos compridos de cetim com os contornos em que reluz o olhar. Um belo trançado de rendas. Quando narrada a parte em que o príncipe coloca os sapatos de cristais em seus pés, ufa!, meu coração acelerava. Uma respiração ofegante disfarçava-se entre os lençóis.
Bem devagarinho, escondia os pés e mãos. Apesar da vontade de me cobrir inteira. Imaginava que o traçado do meu rosto nada tinha de delicado como o biótipo da Cinderela. Minhas mãos e pés largos como tábuas de mesa. A mim, restava identificar-me com as irmãs más da princesa. Nessa hora, ser princesa era um sonho distante e pensava em como perguntar para a minha avó, qual seria o meu papel na história.
As angústias eram aliviadas com as histórias de aventuras, mistura de ficção e realidade que ela gostava de contar, geralmente de guerreiros indígenas. Ainda sinto o sabor da escuta. No dia seguinte, lá estava eu, correndo com os pés largos, brincando de flecha e índia guerreira. Mas as histórias de princesas não saíam da cabeça e com elas, o coração acelerado no meio dos lençóis.
Cresci ao redor de meninas que tinham o estilo das princesas, imaginava que elas caberiam no papel da Cinderela ou da Branca de Neve, eu não. Por toda a minha infância tive os cabelos curtinhos, iguais os dos meninos, o que era comentado por todos. As manifestações de piolhos eram frequentes, e ainda são, nas periferias. Muitos diziam que a minha voz era grossa e que mais lembrava a de um menino. O comportamento também não ajudava muito para uma menina que tinha um sonho, o de ser Cinderela.
Descalça, de shorts velhos, muitas vezes amarrados com fios que encontrava pelo chão, outras vezes só de calcinha, elásticos já gastos e com furos que tomavam conta da peça. Usar uma blusa era mais difícil e raro. Aquela fita vermelha nos cabelos me faziam uma Branca de Neve, cabelos de cetim.
Nos filmes, revistas, ou nos livros, o mesmo biótipo e comportamento das princesas. Aos dez anos de idade, já mocinha, minha mãe presenteou a mim e a minha irmã mais velha, com um estojo de manicure: continha uma espátula, uma lixa de pé, uma de unhas e um alicate. Disse que era para nós, filhas dela, aprendermos a arrumar as unhas para ficarmos bonitas. Então, comecei a fazer minhas unhas, em especial aos dos pés!
Tive um salão de beleza, fiquei no ramo por mais de vinte anos. Foi como me sustentei e ajudei a sustentar a minha família. Tive momentos bons, clientes que são amigas até hoje. Ganhei dinheiro para realizar várias coisas na vida. Comecei fazendo unhas, depilações, cabelos, maquiagem e administrando tudo. Vez ou outra as pessoas me perguntavam, como foi para eu ter começado a trabalhar na área da beleza. Não sei falar ao certo o porquê nem como tudo aconteceu.
Lembro que aos nove anos de idade, pegava um pedaço de lâmina velha, daquelas que os homens usavam para o barbear, moldava as unhas com ela, afinava os cantos até sangrar, depois que fomos presenteadas com o estojo, continuei a mesma prática, só que não mais em segredo. Sempre desejei ter mãos e pés delicados, dignos de princesas. Acho que é por isso que hoje considero um bom sapato como algo digno de conforto, desde que, sem fivelas, para eu poder tirar quando sentir vontade.
Ou na hora em que me sentir como uma guerreira. Tenho os pés largos e planos como uma tábua de mesa, acho que já te disse. Mas isso é outra história.