Um conto de Neno Moura
Neno Moura é de Florianópolis. Tem textos publicados no Jornal RelevO, Revista Libertinagem, Revista Gueto e Jornal Ô Catarina!
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Dois rodando
Eu não lembro muito bem, mas de repente teve um negócio de vir uma música não sei daonde, de longe, e ela começou a dançar meio dura. Eu sempre achei ela meio dura pra dançar, sei lá, dura e desengonçada ao mesmo tempo, falta naturalidade, não leva jeito mesmo pra coisa. Até aí tudo bem, ninguém precisa saber dançar, e, quando tá todo mundo dançando num lugar, ninguém fica reparando no jeito que os outros dançam. Mas ali não tinha ninguém dançando, e a música tava baixa, tinha que fazer um esforço pra ouvir bem, então a dança dela parecia ainda mais dura e desengonçada, e não tinha nada a ver com a música que tava tocando lá do outro lado, não sei daonde, porque quando começa a tocar alguma música em algum lugar, eu volto minha atenção praquilo, me puxa pelo ouvido mesmo, daí eu tenho que ficar ouvindo aquilo à força, e isso me incomoda, porque geralmente é música que eu não gosto. Então eu falei pra ela que ela dançava mal ou não sabia dançar, não lembro, que ela tinha que ouvir a música e ela nem tava ouvindo direito, porque, enquanto ela dançava, os pés dela faziam fricção com a areia e dava um barulho como de chocalho ou lixa e de vez em quando produziam aqueles apitinhos de quando a gente caminha na areia fina e, além disso, ela dava uns roncos baixinhos quando fazia algum movimento brusco, como se tivesse prendendo a respiração e soltasse o ar de repente. Aí quando eu falei isso, ela ficou puta e me chamou de sabichão, que é como ela me chama toda vez que eu tento ensinar alguma coisa pra ela, ou mostrar que ela não sabe de alguma coisa, ou tá fazendo algo errado, mesmo que eu tenha razão. Ela me chamou de sabichão e saiu pra comprar uma cerveja. Nessa hora não tinha ainda muita gente na praia, mas o restaurante já tava aberto, aí eu aproveitei pra apertar um.
A gente não briga muito, não que aquilo tenha sido uma briga, porque ela só falou e saiu, não deu nem tempo de eu responder. Se eu tivesse respondido, provavelmente seria com sarcasmo e ela odeia sarcasmo, aí ela ia me responder de volta e eu não ia ficar quieto, ia virar discussão. Foi bom ela ter ido buscar a cerveja, porque o assunto morreu ali, quando ela voltou, me passou a cerveja e eu passei o baseado pra ela e a gente ficou um tempo em silêncio até terminar os dois. Depois foi a minha vez de ir pegar uma cerveja e ela me recebeu com um beijo. A gente falou um monte de coisa, não lembro muito bem o quê, mas tinha a ver com signo e essas coisas de astrologia que não me interessam Ela disse que a minha principal característica era a teimosia, eu não aceitar a opinião do outro, querer mudar o outro etc, e eu disse que eu não era assim e ela disse que essa minha negação era a própria característica do meu signo. Eu não tava a fim de discutir, porque esse era o tipo de conversa que ia levar a uma discussão, e a gente já tinha brigado antes, não por causa do negócio da dança, mas antes, quando a gente saiu do bar, antes de decidir ir pra praia. Eu propus da gente ir ver o amanhecer na praia, fiquei com pena porque ela tava chorando, e o meu limite é o choro, não suporto ver outra pessoa chorando, acho que é porque eu próprio não choro, só lembro de uma vez em que chorei, por um motivo bem específico que pode até parecer tolo pros outros, mas pra mim era importante, mas não vem ao caso dizer qual é. Também não é que eu me comova com o choro, não é isso. Ver outra pessoa chorando me põe muito sem jeito, não sei o que fazer, onde ponho as mãos, se enxugo as lágrimas, se digo alguma coisa do tipo não chora, se fujo ou chacoalho a pessoa, mas assim pode ser que o choro aumente. Na maioria das vezes, dá vontade de fazer como os pais, que empurram o bico na boca da criança só pra parar logo com aquilo, então eu tento agradar, falo qualquer coisa pra fazer a pessoa parar, mesmo que depois me arrependa. Quando ela começou a chorar, primeiro eu fiquei com raiva, porque parecia que era teatro, e ela sabe que eu não aguento choro dos outros, mas ela devia ser muito boa atriz pra derramar lágrima daquele jeito, e eu sei que ela não é, então tive que voltar atrás e propor a ida à praia, o que pra ela foi como chupar bico. Eu passei no posto e enchi uma sacola de cerveja, quente mesmo, só pra manter o fluxo correndo.
A gente entrou naquela escuridão da praia, breu quase total, os estouros da água batendo na areia lá adiante. Não sei por que, mas praia à noite dá vontade de trepar, acho que é pelo lugar deserto, um lugar de ninguém, o ritmo das ondas, sei lá, a gente já se despe logo de qualquer coisa. Eu tava mais a fim de ficar deitado olhando o céu rodar, já tava tudo rodando, mas não tinha estrela e fechar o olho era pior, parecia que e eu é que tava rodando muito rápido, eu sentia o corpo se deslocar, de olho aberto eu via a praia rodando, ela rodando, ela em cima de mim rodando, nós dois rodando e o meu pau meio mole dentro da boceta dela meio seca e com areia, mesmo assim eu gozei um pouco dentro antes de tirar e, nessas horas, a gente nem pensa que pode ter acabado de dar início a um filho. Eu sei que a gente apagou depois disso e, quando acordou, já tinha amanhecido e a gente de calça arriada. Tinha duas cervejas ainda e a gente tomou e fumou um, aí o pessoal dos restaurantes e os surfistas começaram a chegar. Um pouco depois disso é que tocou aquela música, acho que de algum restaurante, e ela começou a dançar.
O sol saiu e foi ficando forte, um calor desgraçado e a gente de calça jeans, eu, pelo menos, sem camisa, e ela de blusa preta. Eu disse pra ela tirar, mas ela não queria ficar de peito de fora. Aí eu disse que se foda, tira isso aí e vamo dar um mergulho. Ela não quis tirar, entrou na água de roupa mesmo, aí fomos eu de calça jeans e ela de calça e blusa. A água tava geladíssima. Eu falei pra ela esperar um pouco pra gente se acostumar com a temperatura e me agachei e caí na beira, ela não me ouviu ou fingiu que não me ouviu, aí eu fiquei ali rolando no raso e pensando que ela era louca de mergulhar assim num mar gelado daqueles. Ela continuou indo, tomando pancada de onda, caindo e levantando, a roupa preta molhada dela cintilava no sol e parecia pele de baleia, ela parecia um filhote de baleia e eu achei isso muito engraçado e gargalhava ali rolando na beira do mar e engolia a água que batia no meu rosto. A minha calça grudava na pele e se enroscava e deixava as minhas pernas com o dobro do peso, o tecido parecia feito de milhares de escamas minúsculas e eu parecia um peixe, mas um peixe morto, porque não conseguia me mover dali. Eu não parava de engolir água e não tava mais gargalhando porque, ao mesmo tempo em que engolia, a água voltava com um gosto amargo e cada golfada me afundava a cabeça na água e eu via o líquido escuro que eu tava botando pra fora se espalhar na água clara, um peixe foi conferir o que era e tentou comer, mas acho que não gostou, porque saiu nadando rápido esticando aquele líquido espesso, como se fosse uma linha de pesca, mas feita de algum tipo de material elástico, que me arrastou pela boca antes de eu sentir a fisgada da barba do cara que me beijava na areia, em meio a um monte de canelas e pranchas de surf, e do meu lado tinha um filhote de baleia.