Um conto de Paulo Sesar Pimentel
Paulo Sesar Pimentel é um escritor brasileiro, autor dos livros Café com formigas (2004), Diário de uma quase (2010) e O Cão sem penas (2014). Graduado em Letras (UNEMAT), Mestre em Estudos de Linguagem (UFMT), Doutor em Psicologia (UFF), é professor do IFMT Campus Cuiabá – Bela vista.
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A RESSACA, A ESTÁTICA E AS ONDAS SUAVES
Envelhecer dói. Ele descobria isso a cada segundo da existência. Eram pequenos achaques, pequenas dores, contínuos incômodos, reumatismos e faltas de ar. Ele percebia partes do corpo que nem sabia existir, tudo doía. Despertar era sofrido, dormir era penoso e estender-se entre esses dois extremos uma atividade que requeria paixão. Como viver. Ele já não a tinha, não tanto, não com tanta intensidade como se pode pedir a um homem que, de certo modo, já viu tudo, mesmo sem ter falado muita coisa. O que via agora, o resto, era só repetição. Até o dia em que invadiram sua casa. As dores pioraram. Viver se tornou ainda mais perigoso, e mais dolorido.
Ele não sabia que carecia coragem, que viver carecia coragem. Desde menino, ele só vivia, aprendendo no tatear os caminhos distantes do precipício. Agora, nessa manhã abafada e nebulosa, finalmente um buraco se abria à frente, uma onda, outra onda, fardada de ordem, invadia a casa.
– Abra, em nome da lei.
Ao abrir, o ruído do radinho à pilha escapou para a rua, uma marchinha antiga, viola e cavaquinho, chorados, que dançaram no despertar de terra suja e cinza daquele canto do mundo.
– Cadê sua autorização para ter esse rádio? O senhor pagou o imposto devido para possuir em casa esse aparelho eletrônico?
Uma entonação especial, moderna, cosmopolita, acompanhava a pergunta, em especial nas duas últimas palavras, apoteóticas e definitivas.
O rádio era uma herança da falecida esposa, uma espécie de companhia na madrugada morna, bem cedo, com um café, preto, forte, mas adoçado com suavidade, porque, no fundo barroso do copo, devia resistir aquele toque que estalava a língua. Num banquinho de madeira maciça, três pernas, perto da janela ainda fechada, bebia o café, os últimos gritos da noite, o amanhecer já acelerado do subúrbio empoeirado de Cuiabá. Ele ligava aquele rádio, um luxo a pilhas, caras e também luxuosas por isso, que embalava as músicas suaves que ele nunca entenderia racionalmente. Mas gostava tanto…
– O senhor é surdo? Se é surdo, porque precisa de um rádio? Cadê a autorização? Se não tem, levamos a porcaria do rádio e prendemos o senhor por subversão, contravenção e desobediência das leis deste nobre país. Quer rádio, paga o imposto anual e preenche o controle. Se não, o que nos protegerá dos comunistas?
Havia um macete, um truque, com o botão, que devia ser girado firme, apertando um pouco, porque ele geralmente se soltava, revelando um pino rachado. Com jeito, o botão não saía. A estática primeiro, as ondas moduladas depois, vozes, finalmente, as vozes, faladas, cantadas, vindas de tantas partes do mundo, tomavam a sala, chocalhavam suaves o adobe, as palhas do teto, as areias soltas do chão, a poeira flutuante no ar. Nem a sua voz ele ouvia mais e, não fossem as ondas, um silêncio pleno tomaria aquele cômodo, aquela casa. Ele pensava suave no rio Cuiabá, nas águas barrentas, chiadas, avançando suas palavras sobre a terra, recuando suas águas num marulhar de ar sobre a casa, que resistia a um tempo que se propunha moderno, pós-guerra, pós-tudo. Às vezes, um peixe em língua estrangeira saltitava pela casa, sambava sobre o chão batido, um cardume de sons agitava a poeira depositada sobre tudo. Ele fechava os olhos, as dobras caindo sobre os olhos, tantas dobras, um pergaminho de lembranças presas naquele crânio analfabeto e talvez infeliz, e imagens belas eram embaladas pela música chiada que explodia em ondas vindas daquele quadradinho mágico. Tantos sons, de tantos lugares, tudo em duas letras que ele não entendia, mas amava. No AM, estava um mundo que viajava como viajam os sonhos, pelo ar, pelas mentes cansadas de quem vivera tantos anos de guerra.
– Deve ser comunista. Tem rádio, mora sozinho, se recusa a falar, praticamente não tem móveis, não deve ter defendido o Brasil. É claro que é comunista. Eles se comunicam pelo rádio, se organizam para esparramar essa praga soviética sobre o mundo, comer nossas crianças, dividir nossas casas. E mais, comunistas são ateus.
O radinho era quase tudo o que sobrara da falecida esposa. Havia, também, uma imagem de Nossa Senhora pendurada na parede rachada. Ele olhava para ela e sabia que não precisava falar, Nossa Senhora entendia. Uma cama, um criado manco de cabeceira, um armário de cozinha, na frente da cama, algumas panelas pretas, algumas quinquilharias, nenhum livro, nem a bíblia, porque mesmo a religião custa dinheiro, nenhum dente na boca, nenhum pedaço de pele sem pregas, nem um brilho no olhar. E o rádio. Não fora à guerra, à grande guerra, mas a ouvia pelas ondas, não fora também a qualquer escola, mas tinha tanta pressa. Ele ouvira falar que o rádio era um perigo iminente, era a arma ao avanço dos comunistas. Não sabia o que era iminente e temia os comunistas, que deveriam vir vestidos de vermelho e diabo, invadir as casas, invadir as vidas. Mas não ali, distante de tudo, só ondas de rádio chegariam mesmo. Nem comunistas, que ele não saberia o que é, mas reconheceria se visse um, achava, nem mesmo a polícia. Se nem a prefeitura, nem os canos que carregavam água pra uma tal torneira, nem fios que iluminavam a escuridão conseguiam chegar, ele estava em paz para morrer lento.
– Apreende o aparelho! O senhor se levante! Está preso, em nome da ordem e da lei brasileira.
Ele ouviu as três frases, ele ouviu as três ordens, mas sentiu um cansaço grande, tão grande, que as pernas não obedeceram, mesmo a ordem tendo sido dada pelo policial, tendo sido dada pelo seu cérebro. Às vezes a periferia do corpo age como a periferia do mundo, é ignorada e também se vê no direito de ignorar o que vem do alto, o que vem do centro. Ele não sabia o que fazer, o velhinho, nessa hora, não sabia nem falar, língua presa, pastosa na boca, falta de ar, diafragma murcho, pulmão murcho, vida murcha em frangalhos e rugas. Ele não sabia. As pessoas mais velhas não sabem tudo. Mas sabem, por exemplo, que os mais jovens não sabem de nada, mas continuam falando com propriedade. Então ele esperou, sentado, porque não tinha mais pressa.
Envelhecer dói. E é tão confusa essa dor. Ela passava dos ossos cansados, dos músculos alquebrados, das carnes flácidas para outro lugar, outro ponto, parecia o peito, parecia o estômago, parecia um indefinido lugar. Só a dor real. E certa dúvida. Isto tudo se calava agora, com os dedos do policial recolhendo o radinho, ainda ligado, soltando o botão que caía com um estampido surdo no chão de terra, rimando com o brado retumbante, estridente e canoro do tiro, que derrubou o velhinho, num esplêndido berço, em posição fetal, esparramando uma bandeira líquida, vermelho vivo, certamente comunista, chiando uma estática inaudível ao ser absorvida pela terra batida.
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In: PIMENTEL, Paulo Sesar. O cão sem penas. Cuiabá-MT: Carlini & Caniato Editorial, 2014.