Um conto de Pinheiro Rodrigues
Pinheiro Rodrigues é professor e escritor. Reside em Cuiabá, Mato Grosso. Em novembro de 2020 publicou o seu primeiro trabalho no campo da literatura. Infos sobre outros trabalhos do autor (www.pinheirorodrigues.com.br)
***
CHIQUINHA
Chiquinha veio ao mundo para amar e tentar ser amada. Enquanto respirou, foi o amor em estado puro e sublime. Nasceu em uma noite de natal, o segundo filhote de quatro. Herdou as cores da mamãe, corpo com pelos de cores preto e branco. Ainda não sabia, mas também herdaria a sina da indiferença, abandono e dissabores.
A mamãe de Chiquinha havia sido resgatada por Pedrinho, 10 anos. O menino ficara comovido em ver a gatinha revirando lixo perto da escola. Os pais de Pedrinho foram relutantes, mas acabaram aceitando. Como poderiam recusar o nobre pedido de um menino que só pensava em fazer o bem ao próximo, ainda que fosse um animal irracional?
— Tá certo que não é um humano e os mandamentos da igreja só falam de amar o “próximo”, o que presumo que seja o próximo igual a gente. Mas é uma criatura de Deus. E, veja meu bem, nosso filho tem um coração do tamanho do mundo. Com certeza, um dia será presidente do Brasil!
A mamãe de Pedrinho usou esse e outros argumentos para convencer o papai, e conseguiu sucesso. Felicidade! Pedrinho pulava pra lá e pra cá, abraçava a gatinha, corria e jogava ela pra cima. Semanas depois, a surpresa… a gatinha estava prenhe. O papai queria devolvê-la à lata de lixo, mas a mamãe insistiu para que esperassem, em nome do Pedrinho que poderia até entrar em uma depressão profunda.
— Ok, só até o tempo de a gata botar pra fora os filhotinhos. A gente fica com o macho e devolve ela com os outros lá onde o Pedrinho a pegou. A vantagem do machinho é que ele não multiplica! Ninguém vai notar. Conheço um monte de gente que durante essa pandemia abandonou animais pela cidade. E quer saber? Não estão equivocados. Em primeiro lugar, sempre o ser humano e, se sobrar alguma migalha, os outros seres viventes.
— É por ter esse coração tão bondoso e justo que nós te amamos. Obrigada, amor!
Mal a gata nasceu e, em pleno natal, foi devolvida ao lixo. Os pais de Pedrinho não esperaram nem o tempo da amamentação. Precisavam do pretexto do natal para dizer ao menino que o Papai Noel tinha feito uma troca e que ele precisava ser grato, do contrário, não ganharia presentes no próximo ano. Pedrinho não deu um pio. Em nome da narrativa, não importava se o gatinho que ficara pudesse morrer pela interrupção da amamentação. E, de fato, acabou morrendo.
A mamãe de Chiquinha nada entendeu. Tampouco a própria Chiquinha, que, ao abrir os olhos, se deparou com a selva de pedra. Precisou entender desde os primeiros movimentos que, para manter-se viva, precisaria lutar diariamente. Era ela, a mamãe e mais dois irmãozinhos. Do primeiro ao último momento dos primeiros dias de vida, amava a hora da amamentação. Deleitava-se com o sabor do leite materno e o calor da mamãe. Mas também gostava de acompanhar a mamãe na busca por comida. Reviravam todos os lixos da vizinhança e, às vezes, pulavam um muro ou outro em atos desesperados pela alimentação. Chiquinha só se deu conta que precisava estar atenta e cuidadosa no mundo no dia que perdeu um irmãozinho. Depois de pularem o muro de uma casa rente à escola, avistaram um imenso e suculento pedaço de carne vermelha. Sem grandes reflexões, porque, quando a fome aperta, não há tempo pra isso, a mamãe correu em direção à carne, seguida pelos filhotinhos. E, já próxima de abocanhá-la, um enorme cachorro apareceu. Correram como podiam em direção ao muro, mas um dos irmãozinhos de Chiquinha ficou pra trás…
Com o retorno das aulas na escola próxima ao lixo onde diariamente batalhavam pelo sustento, o mundo de Chiquinha ficou mais povoado. Naquele tempo, devido às medidas de contenção ao Covid-19, houve um retorno parcial das aulas em forma de rodízio. Mesmo diante do alto risco de contágio na sala de aula, os pais pressionaram o governo para a criançada retornar. Poderiam se contaminar? Sim, mas o mais importante é que ficassem longe e não atrapalhassem o sossego e o trabalho. Ironicamente, aquele também foi um momento de reconhecimento do importante papel dos professores no país. “Como aguentam tudo isso, recebendo a miséria que recebem? São heróis”. Diziam uns e outros.
Pedrinho foi uma das crianças que voltou às aulas. Apesar da mamãe de Chiquinha correr desesperadamente atrás dele quando o avistava, ele nem se lembrava dela e a espantava com pedras. Para Chiquinha, por sua vez, aquele novo fluxo de gente era mais uma novidade. Além da luta diária pela alimentação e segurança, logo aprendera que também precisava ter cautela com humanos. Causava certa confusão o fato de alguns se mostrarem tão bondosos, oferecerem comida e carinho, enquanto outros, por maldade pura, lançavam pedras apenas para ver a corrida ou ouvir gritos de dor. Em meio aquilo tudo, um humano em especial chamou a atenção de Chiquinha. Ele tinha meia idade, e todos os dias deixava um pouco de comida e água próximo ao lixo onde ficavam.
Ser notada e notar aquele humano foi como ver uma luz ao final do túnel. Para Chiquinha, o mundo passou a não ser mais aquele lugar de dor, indiferença e correria. “O que pode ter lá dentro da casa dele? Comida? Água fresca? Um tapete aconchegante para descansar em segurança e sem preocupações? Amor?” Talvez fossem questões formuladas pela jovem gata, que estava empenhada cada vez mais em chamar a atenção do homem e, principalmente, vivenciar o que chamamos de amor. A gata, que passou a amar o homem, miava duas ou três vezes por dia em frente ao portão da casa. Ao avistá-lo, se jogava em sua frente com a barriga para cima; e, todas as mil vezes em que fez isso, o homem se desviou e seguiu o seu caminho sem olhar pra trás. Chiquinha o seguia para todos os lados, às vezes até corria atrás do carro. Quando não era espantada com pedras e gritos, era vencida pelo cansaço. Ele só a notava quando ela se aproximava com os irmãozinhos e mamãe para comer e beber. Certa vez, ele observou que o miado de alegria dela se assemelhava com o choro de uma atriz de um programa de humor bastante conhecido na América Latina, e, desde então, passou a chamá-la de Chiquinha.
O cansaço e a indiferença não venciam a gata. Durante semanas, ela se manteve firme e resiliente, até que um certo dia uma pedra a acertou de surpresa, enquanto miava em frente ao portão do homem. Foi atingida por meninos que saíam da escola e brincavam com estilingues. Cansados dos alvos imóveis, procuravam um animado, e eis que avistaram a pobre Chiquinha. A pedra havia sido disparada pelo próprio e bondoso Pedrinho, que comemorou, foi cumprimentado pelos amigos e partiu em busca de outro “alvo móvel”. A gata, que não teve tempo para se defender do perigo mortal que se avizinhava, desabou no chão. A pedra havia acertado um dos olhos de cor verde. O mundo girava, enquanto o sangue quente escorria pela face. A pedra a cegara instantaneamente e ela não sabia pra que lado caminhar. Chorava o mais alto que podia, quem sabe alguém pudesse finalmente notá-la… Caminhando de um lado para o outro, decidiu atravessar a rua. De súbito, um carro que seguia em alta velocidade a silenciou para sempre, também não olhando pra trás…
Assim Chiquinha partiu, sem entender ao certo porque estava no mundo, muito menos a razão do amor que não era correspondido. Mas não é isso que chamamos de amor? Devotar-se ao outro sem esperar nada em troca. Chiquinha entendeu perfeitamente o que era o amor, mas partiu sem entender uma parte importante, que é o sentir-se amado.
***
De acordo com Organizações Não-Governamentais (OGNs) e o Conselho Federal de Medicina Veterinária, em 2020, face às crises decorrentes do Covid-19, houve aumento considerável de abandono de animais de estimação nas cidades brasileiras. Este conto é uma homenagem a todos e todas que militam contra isso.
Abandonar ou maltratar animais é crime. Segundo o artigo 32 da lei 9.605/98, a pena pode variar de 3 meses a um ano de detenção e multa. Se souber ou avistar quem tenha cometido esses crimes, registre e denuncie no 0800 61 8080 (Ibama) ou linhaverde.sede@ibama.gov.br