Um conto de Rafael Mendes
Rafael Mendes cresceu em Franco da Rocha e reside em Dublin, Irlanda. É escritor, tradutor e cursa mestrado em Literatura Comparada na Trinity College Dublin. Tem participações em diversas antologias em português e inglês, incluindo: Arrival at Elsewhere (Against the Grain, 2020), Parem as máquinas (Selo Off Flip, 2020) e Writing Home: The New Irish Poets (Dedalus Press, 2019), entre outras. Seus poemas, contos e traduções já foram publicados na Ruído Manifesto, Gueto, Mallarmagens, Lavoura, The Irish Times, Flare, The Blue Nib, entre outras.
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A Onda
A última vez que nos vimos foi no Natal, dois anos atrás. Estávamos no sítio. Aquele local foi tão importante para a nossa vida, você não acha? Quantos reuniões de famílias nós fizemos ali? Não sei contabilizar ao certo, mas as pilhas de fotos analógicas espalhadas pela casa dos nossos pais e dois tios talvez possam precisar. Cheguei de Barcelona no dia vinte e três, você me buscou no aeroporto. Estava tão cansada, mas me recordo que você trouxe um pacote de pães de queijo, meu maço de cigarro favorito no Brasil, a Folha de São Paulo daquela manhã. Não sei bem dá onde você tirou a ideia do jornal. Gostaria de tê-lo aqui comigo, para recordar todas as notícias daquele dia.
No carro você me contou da separação. Marcelo já não vivia com você há alguns meses, já estava na casa de outra mulher. Júlia dizia com a boca cheia de arroz e feijão que lhe odiava, que você mandara seu pai deixar a casa. Você foi desfazendo o novelo das coisas que eu havia perdido desde a última visita enquanto nadávamos ou nos sentávamos à beira da piscina. Nosso ritual anual, como na infância. O primo Eduardo teve filho, a Joana entrou na universidade, o Bruno foi preso novamente. Você ia atualizando as histórias, reportando as notícias que nunca chegam para quem vive longe. As pequenas coisas, arranhões, quedas, ônibus que não param, o arroz que empapa. As coisas pequenas que, somadas, deixam toda uma saudade.
Contudo, naquele Natal havia algo diferente, não apenas pela ausência de Marcelo. Senti pela primeira vez as amarras que ligavam nossa família sendo expostas, forçadas ao limite. É a política, você dizia. Sim, era a política. Pois mesmo longe, mesmo vivendo na Europa há tantos anos eu era afetada pela vida política do nosso país. Em algum momento, enquanto tio Zé falava alguma maluquice, não me lembro do conteúdo agora, você foi pela fronteira entre água e piso antiderrapante, forçou o deslize e foram ambos para dentro d’água. Mais tarde, você confessou que nem o peru da tia Maria foi tão bom. Quando os mais velhos já se esparramavam pelas cadeiras e colchões, divididos entre cochilos e embriaguez, as crianças fazendo pilhas de papel de presentes, nós saímos para caminhar pela estrada de terra. E só ali, escondida pelas árvores e a estrada de terra, suas lágrimas romperam o dique de seus olhos verdes como bananeiras.
Agora, sentada no portão de embarque do aeroporto, penso se Júlia diz que odeia o pai com a boca cheia de macarrão enquanto jantam. Será? Estou tentando embarcar para o Brasil há uma semana. Meus pais vieram me visitar em Barcelona, acho que você sabe disso. Oito de Maio. Dia das Mulheres. Marchamos abraçadas, minha mãe e eu, mas também caberia você naquele abraço. Depois, passamos alguns dias em Londres. Então, tudo desmoronou. É engraçado pensar em retrospecto em tudo o que ocorreu na última semana. Às vezes, me vejo no espelho e percebo que envelheci dois anos. Você saberia uma máscara facial perfeita para rejuvenescer minha pele.
A onda atingiu a Europa. Como jangadas na tempestade, um a um, os países foram afundando, fronteiras fechadas, o caos desatado. O vírus já caminhava entre nós, repousava nos elevadores, abraços e maçanetas. Foi imprevisto como a ligação que minha mãe recebeu às 4:37 da manhã, a hora mais triste do mundo. Ela colocou o telefone na mesa, num gesto lento e imenso, tentava calcular opções, reiniciar planos, reverter a realidade para algo menos bambo. Falhou. A noite de Camden Town não ouviu o lamento que ela ciciou. Você havia morrido.
Você sabia que estava morrendo? Sabia? O câncer se espalhou pelo corpo, tomou a mama esquerda anos antes, depois os rins, o fígado, o estômago. Como tudo pode mudar em tão pouco tempo? Há dois anos você vivia, eu lhe abraçava, tomávamos caipirinha, fumávamos maconha escondidas na entrada do sítio. E agora, você morta. Morta. Vou repetindo, para que a realidade se assente, para que eu aceite que tudo isso é real. Os médicos lhe enviaram para morrer com morfina, Júlia e seus pais. A morte não tem ética, apenas um método aleatório.
Você nem aparentava ser apenas dois anos mais nova que eu. O computador está aberto. Vejo fotos as fotos de família que digitalizamos há alguns anos, lembra? Sei que você lembra. A ideia foi sua, um projeto para manter viva a memória da família, para que os filhos dos filhos da Júlia soubessem quem fomos nós. Porque fotos, como taças de vinho e pessoas, se quebram, se perdem sem volta. Nossas mães compravam roupas similares para nós. Será que nos queriam irmãs? Estou montada numa pequena bicicleta da Mônica, um tufo de cabelo repousa sobre meu olho esquerdo, levo um abrigo vermelho com botões dourados. Pareço um pirata, um almirante. Você também veste um abrigo vermelho, sem botões dourados — será que caíram? — com punhos pretos, empurra um pequeno carrinho de bebê, a boneca toda de branco, com um cabelo preto azulado. Noutra foto, estamos na praia, Santos, talvez. Estamos vestindo maiôs rosa, estamos na adolescência, os cabelos curtos, as unhas pretas, fazemos gestos de rock and roll com as mãos. A próxima foto você aparece segurando o ultrassom do bebê que seria Júlia. Fecho as fotos.
Espero que esse voo nos leve ao Brasil, mesmo que eu não já nem saiba o que esse país significa. São sete dias com o celular apitando várias vezes ao dia, e-mails da companhia aérea com atualizações sobre o itinerário. O primeiro voo foi cancelado um dia antes da partida, o segundo três horas antes, este fará uma escala em Barcelona, depois rumará para São Paulo. As malas devem estar cansadas de serem feitas e desfeitas, os pijamas confusos entre horas insones e horas na escuridão abafada do compartimento de cargas dos trens e táxis. O sistema de transporte inglês, tão pontual e preciso, foi assolado por incerteza. O mundo sôfrego, pois você partiu. Sei que você teria algo engraçado para dizer, alguma referência aos livros de filosofia que você lera na faculdade, mesmo pães de queijo, abraços, cigarros.
Tive que trocar nossos bilhetes tantas vezes que acabei vidrada no site. Passei horas vendo partidas e chegadas, destinos e conexões, cancelamentos e atrasos. Pensava se outras famílias também estavam presas, se outras primas haviam morrido, se funerais aconteciam sem choro, sem abraços, se é que aconteciam. Só queria que alguém viesse até mim e dissesse: eu também perdi um voo e uma irmã que amo tanto. Que dissesse: vai doer, mas carrega consigo o amor das coisas pequenas. A onda não lhe proporcionou nem isso, uma despedida. Não abracei seu caixão, não chorei sobre suas flores. Você virou um punhado de poeira, armazenada dentro de uma urna de porcelana. Encontrei nas fotos um antigo evento de família, páscoa talvez, em que você quebrou um pote de batatas em conserva. Azeite, óleo, ervas, cebolas pequenas, dentes de alho, batatas, avançando lentamente sobre o piso de cimento queimado, os fragmentos de vidro reluzindo, oleados. Espero que ninguém derrube seu pote de batatas
Quando nosso avião estiver no céu você também estará voando. Suas cinzas serão lançadas no Brasil, no Pico do Jaraguá. Você se espalhará pelo mundo, chegará até Barcelona, para ficar próxima de mim, morando nas minhas flores.
Dentro do trem, enquanto me dirigia para o aeroporto pela última vez, Londres permanecia esvaziada, apenas os guardas reais estáticos em Buckingham, o Big Ben sisudo marcando o compasso do tempo. A cidade não sabe que você morreu. O maquinista não sabe que você morreu. As aeromoças não saberão que você morreu. Escrevo para tornar sua morte real, para torná-la memória. Não vi seu corpo, não garanti que borrifassem o perfume predileto, que os lábios fossem pintados em vermelho, que a orelha esquerda carregasse o único brinco remanescente da viagem para Cuba. Eu não pude lhe perder. A ausência, no processo da perda, é uma porta fechada que não guarda casa alguma, mas quando abro a porta estou dentro da casa pronta, mobiliada com sua ausência.
Naquele Natal, depois de caminharmos, voltamos para o sítio, pegamos cervejas, sentamo-nos à beira da piscina ouvindo Milton. Você disse que se deus existisse e tivesse voz, teria uma voz parecida ao Milton cantando. Estávamos embriagadas, nos abraçamos, choramos dores distintas. Você chorava o fim do casamento, a raiva da filha, o medo do câncer. Eu chorava a vida que perdia no Brasil, de não saber o aroma do perfume de minha mãe, nem qual ônibus tomar para ir à feira. Pouco falei desde que você morreu. Tenho medo da voz vibrar sua perda.