Um conto de Rodrigo Luis
Rodrigo Luis (São Paulo, 1997). Estudante de Letras e Assistente Editorial.
Escreve. Conta com poemas publicados na revista eletrônica A MARgem (UFU). Nunca fez nada que alguém não quisesse fazer.
Finge. Escreve.
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35,5 graus celsius
sinto meu corpo quente. não tenho dúvidas de que a febre atingiu meus ossos. começo a imaginar, dentro de mim, o corpo em ebulição. se o calor viesse de fora a dentro, primeiro me derreteria a pele, levando ao chão os pelos e cabelos, alguns dedos, bem como meu pau ou a ponta do nariz, rapidamente, sob a forma líquida, completariam no solo a primeira poça de mim. em seguida, devido a um conhecimento inventado, creio os órgãos serem os próximos a se desfazerem. o corpo queima, o corpo queima e arde, e o suor, provavelmente misturado à pele líquida, escorre pelo meu/com o meu rosto, ainda sinto minhas roupas, encharcadas. talvez esteja de fato em chamas, a hipótese me leva ao possível risco de uma explosão, meu fígado sempre acumulou álcool e gordura, torço para que não aconteça, estou deitado no meu quarto de menino, uma explosão de mim poderia pôr a casa ou o bairro a baixo. no chão, poças coloridas indicam que os órgãos não são mais órgãos, indago um processo contrário, a poça branca, acredito ter sido meus olhos, enxerga-se, forçando a visão (a sua não a minha), algum ponto verde ali no meio, verde, não azul. uma poça cinza e bastante gosmenta deve ser meu novo cérebro, embora tenha aprendido que massa cinzenta não passa de um apelido. algo de colorido podem ser minhas entranhas e os restos de comida. amarelo, o estômago. negro, os pulmões. enxergo uma poça estrelada, beneficio-me da impossibilidade de saber: próstata ou coração. não sinto dor, mas sei que em breve serão meus ossos ali desfeitos, sinto o crepitar, como o carvão na churrasqueira em que costumava grelhar a carne aos domingos. tenho ossos de carvão. tinha, vê-me, essa fumaça e o grosso líquido não são mais meu corpo ou meus ossos, não sinto dor, contudo, reservo-me o direito de ainda ser eu, do contrário dessa invenção, todavia, não poderia estar escrevendo. sinto meu corpo em febre. sinto que estou derretendo. escuto um leve apito como um despertador. pi pi pi. algo agarra-se a minha roupa, é o termômetro! coloquei sob o braço faz alguns minutos, com um pescoço que não é mais meu, movimento minha não-cabeça (lembrem-se, meu corpo derreteu) e alguém, que não sou eu, enxerga a temperatura. 35,5. estou em outra crise de hipotermia.
já faz alguns dias que minha temperatura não ultrapassa os 35,5 graus celsius. pareço estar com febre, sinto frio e derreto, mas, tácito, o termômetro continua a desmentir o meu delírio. torço para que acreditem em mim. os termômetros podem ser grandes mentirosos. 35,5. respiro fundo, junto forças para voltar a ser menino. escuto melhor, como se minhas orelhas estivessem sendo reconstruídas, ou a música gradualmente estivesse aumentando. não a identifico. uma testa quente parece tocar a minha, estou no meu quarto de menino, também estou dançando. seguro as mãos de uma mulher, é ela quem descansa a testa na minha. dançamos. ainda não consigo distinguir a música. penso que não posso beijá-la, embora o queira. tudo bem, meu corpo está derretendo. os lençóis fedem a pele queimada e corro o risco de explodir. sou só um menino. com cuidado. sou só um menino com cuidado, desconfio de termômetros, minha temperatura baixou alguns décimos. sou só um menino com cuidado, desconfiado de termômetros. acho que não é possível ser só alguma coisa. onde foram parar as minhas mãos?
pela janela do carro o vento afaga meu rosto. grito. grito como se soubesse quem grita. é como estar livre, imagino que seja. Victor sorri, melhor do que antes. Thiago e Letícia amam, o amor quando amor parece sempre muito certo. eu grito. chegamos em uma praia em que a cerveja era muito cara, é uma praia bonita, mas a cerveja muito cara. temos algumas latas na geladeira, além de um LSD. ainda não. como alguém sem esôfago pode beber qualquer coisa? ou segurar uma lata com as mãos derretidas? também não deveria estar escrevendo. poderia parar por aqui e ninguém se importaria com a desistência. era só um menino, diriam. Rimbaud também parou de escrever, penso. é que Rimbaud era um menino sem cuidado. e eu, disso, tenho muito. desde que minha temperatura esfriou, dizem os termômetros, sou assim, cuidadoso, calmo e desconfiado de termômetros. confesso, raros instantes, penso acreditar neles, então tenho de volta minhas pernas, sou capaz de me levantar, meio que me arrastando. chego até minha bolsa, tiro dali alguns compridos, abro com alguma cerimônia a porta, estou vestindo uniforme e explicando a diferença entre um sujeito e um objeto. verbo transitivo? essa é fácil, você sabe sim. leva a informação, entendeu? comer. eu comia pão. eu e o pão. isso. agora olha só. eu derreto. basta não é?
tudo isso me cansa. vou arrumar um texto velho, reescrever os trechos. sou um escritor melhor do que era antes. meu corpo está esquentando, meus cabelos começam a colar ou a fundirem-se à minha testa. outra vez o termômetro, confiro. 35. sinto frio, mas meu corpo, definitivamente está derretendo. lembro de ter sentido algo parecido na primeira vez que transamos. o amor ainda está aqui, é que tive ali todas as minhas inseguranças, também um enorme prazer. confiança, seu olhar sempre foi de confiança. tenho um buraco no peito. peito de sapateiro. meus amigos costumavam dizer Rodrigo, sem coração, acho que amigos não deviam dizer coisas assim, mas acreditei. talvez meu coração há muito já tivesse sido derretido, e então a pele amassava-se onde antes um TUM-TUM ditava-me algum ritmo, buraco. levo a mão até esse buraco. uma pequena piscina de pele derretida. uma vez, nadamos na piscina do campus universitário, brincamos de que meu corpo poderia formar outra piscininha. você me repreendeu, disse que eu era lindo. eu estou apaixonado por você. você ganhou uma medalha, eu fazia natação, sabia? peixinhos e golfinhos. alguns golfinhos são tarados. claramente você. rimos. a risada parece fazer meu corpo tremer. como uma pilha velha antes de explodir. assusto-me. dias atrás tomei cervejas, algum vinho e até mesmo vodka. sempre me disseram para não misturar. pensei que não fosse mais te ver. tenho medo de que seja melhor assim. meu corpo está derretendo. odeio os termômetros.
percebe que não saio desse quarto? o típico menino cuidadoso. sem agitações. sem desesperos. e que também não entende poder ser só um menino. lembro de, ontem mesmo, rascunhar algo em meu caderno. havia barulho em volta, também haviam três mãos. a primeira, agora derretida, era de carne e osso, apoiava a caneta azul, ponta fina, entre o polegar e o médio, receava que chocasse-se com a segunda, opaca, uma sombra, parecia sair do papel, também segurava uma caneta, beijavam-se as pontas. a terceira complementava um beijo triplo entre pontas de caneta, era escura, forte, vinha como que numa diagonal, era uma sombra, muito mais independente do que as demais. era minha sombra. um corpo derretido não tem sombra. se juntassem-me, poderiam, talvez, encher uma piscina com meus ossos e pele líquidos, então, num dia de sol, sentariam-se à beira, molhariam os pés, verificariam o líquido quente, fervendo, 35,5 graus celsius, e iriam embora. os pássaros e os cachorros também de mim (mas não me seria mais eu do que sou agora) não se aproximariam. em resumo, penso que não haveria seres vivos ao redor dessa piscina. flor, gente ou bicho. não haveria sequer sombra alguma de corpo. 35,5 graus celsius. sinto frio. 35,5 graus celsius. meu corpo derrete. 35,5 graus celsius é uma temperatura incomunicável. derreteram-me a língua.
converso comigo mesmo, uso livros e poemas. tenho tentado ser só um menino. preciso olhar de perto. enxergar-me um pouco além das poças. estou surtando. outra vez surtei na frente de Nathália. conto pela primeira vez. é que não pude dominar minhas memórias. pensei ter esquecido. queria mesmo era ter esquecido e não lembrado nunca. a memória num corpo derretido continua lá. sólida como memória, claro. acreditem se quiser. disseram que eu deveria era ser prostituto e não professor. senti-me indefeso. foi assim, rápido. gatilho. não sei ao certo minha idade, mas meu irmão já havia nascido. fui deixado sob a tutela dum primo mais velho, na minha casa mesmo. não entendi muito bem, mas lembro que ele usou minhas mãos, massagens assim você não pode contar para sua mãe. tenta com a boca, não é bom? eu nunca contei para minha mãe, eu nunca contei. Nathália sabia. eu desabei ali na frente dela. chorei compulsivamente, soluçava. eu, que sempre me gabei da proteção dada às minhas memórias, revivo em meio às lágrimas, dentro do meu corpo derretido, incontáveis vezes aquela cena de abuso infantil, todos os detalhes agora claros, eu estava me afogando. você não sabia o que estava fazendo, escuto-a dizer. exatamente. eu estava me afogando no meu próprio corpo derretido. sou um menino cuidadoso, frágil. outra vez o termômetro, dessa vez eu não preciso olhar. ainda estou chorando, percebo-me mais quebrado do que imaginei ser. minha boca quase não abre agora. Nathália me abraça, não sei se consigo permitir outro toque.
dói. mas sou obrigado a continuar. sou um menino cuidadoso, quebrado, cansado. com as mãos e os pés forço minha boca a abrir. mastigar minha carne faz com que sangrem meus dedos. com algum esforço, consigo. encaro o fundo da garganta. meu corpo está quente. 35,5 graus celsius é a temperatura do inferno. gostaria de citar a bíblia antes de entrar, mas não conheço passagem alguma. sou um menino prestes a debruçar-se sobre um corpo de menino. não é uma queda se a faço de bom grado. sorrio quase desesperado. gargalho ao perceber a saudade desse desespero. minha língua queima quando dou os primeiros passos sobre ela. o corpo derretido se contorce na cama. sinto frio. calor. culpa. sinto tanta coisa. vasculho-me. vasculhar é um movimento degradante. sou um menino degradante. preciso destruir. transformar meu corpo numa personagem. acreditem, faz dias que o termômetro me conta os 35,5 graus e eu sinto frio e derreto. passo por uma lembrança desgraçada. são tapas, mas penso tê-los merecido. ou penso que nada justifica a violência. estaria mentindo. encontro um menino a ler Tabacaria na tela do computador. os ruins e os péssimos. O livro do céu não faz sentido algum. aplaudem-no junto a todo elenco. um verdadeiro aprendiz. estamos quase lá, em Holambra. coloco uma aliança no seu dedo. estou sorrindo. no meu quarto as mãos do meu primo contornam minha pele e estremeço. tenho medo de começar a chorar outra vez. estou abandonando uma suicida. com raiva. sem culpa. queria mesmo era entender onde começam nossas memórias. pode ser que não seja assim, algo com começo e fim, não mais que um cômodo. mas temos todos nossos cômodos secretos e emperrados. claro, há também os que fazem parte da vitrine. sou um menino de cômodos incendiados, corpo derretido e língua de cinzas.
sou um menino cuidadoso, cansado, entediado. sou um menino vagando dentro de um corpo de menino. também sou um homem, filho de uma mãe. e é somente isso que me difere de deus. também sou escritor. escrever é o que me é possível, sempre. mas nem sempre faz sentido. exercício diário do escrevimento. recusei e xinguei toda uma classe de pessoas: os psicólogos. uma das profissões que mais cresce. tem dias que escreveria um manifesto: o anti-psicologismo, ou como alguns fingem penetrar o caos alheio, ou o desrespeito à entropia, ou qual sentido de buscar ordem num corpo derretido se o mundo apenas capota e ferve? deixe que façam. é que o mundo ferve e não há ritalina ou embriaguez que faça os átomos do planeta em ebulição chocarem-se mais devagar. sou um menino que não desacelera o tempo. sou um menino vagando degradantemente dentro de um corpo derretido a 35,5 graus celsius. sou um menino ciente da própria cela.
detenho-me na queda.
você está pegando amoras, Nathália. é noite. caminhamos, rindo e de mãos dadas. a menina que roubava amoras.
amor inunda. mas não salva.
derretido, verdadeiramente feliz.