Um conto de Sandra Godinho
Sandra Godinho, nascida a 27/07/1960, é professora de Inglês e Mestre em Letras com foco em Estudos da Linguagem. Já participou de várias coletâneas de contos. Recebeu o primeiro lugar no prêmio VIP de literatura (2018) com o conto “Jogo de damas”. “O massacre” ganhou o segundo lugar no Concurso Literário Internacional Palavradeiros 2018. O poder da fé, publicado em 2016, foi seu romance de estreia. A coletânea de contos O olho da Medusa foi lançada em 2017. E Orelha lavada, infância roubada foi o único livro de contos finalista na Maratona Literária (2018) do Carreira Literária, tendo sido também agraciado com Menção Honrosa no Prêmio Literário Casa de Las Américas (2019).
***
O Jogo de Damas
O tabuleiro.
Mais de dois milhões de pessoas na praia preparam-se para a virada. No palco, montado em frente ao Copacabana Palace, Cidade Negra. Negra como o véu da última noite do ano. Belo. O maior espetáculo do planeta. Anita, com seu ‘Vai Malandra’. A última noite do ano é uma cadela no cio. É uma lacuna a ser preenchida com outras formas. Na areia, copos de plástico se erguem cheios de cidra e cevada para espantar o sono. E o grito, que quer escapar. O mijo também escapa. O alívio é sentido no calcanhar. Cálido. Casto. Feito de urgências. O rio amarelo escorrendo. Nojento. Não há banheiro químico que chegue. Só chega o foguetório espocando. E os rojões que explodem os latidos dos cães na vizinhança na espera infinita que, de repente, finda. 5, 4, 3, 2, 1. Começou!
Dama Branca.
Ariel tem pressa de pular as sete ondas no mar gelado. Prepara a oferenda que vai lhe garantir boas energias e que tudo se realize conforme seus sonhos. Sonho. Corrige-se. Apenas um. Ser gente. Ser uma mulher plena. Solta o barco feito de garrafa de plástico. Leva rosas brancas, gotas de perfume de alfazema e uma vela azul ao sabor da maré. O embalo é igual ao destino. Incerto.Não se preocupa com o lixo que vai criar, nem no risco que vai causar a algum animal devido o material não-reciclável. Mas ela quer se reciclar. Quer ser outra, sendo a mesma, não uma promessa que ainda não se cumpriu. Que ainda não se realizou. Faz uma prece. Iemanjá, purifica meu corpo e abra meus caminhos com chave de ouro. Tudo brilha. Ofusca. O palco ainda montado, os mendigos ainda desocupados, as putas ainda de vigília. E os catadores prestes a limpar a sujeira do cenário em sombras.
Dama Preta.
Marina tem pressa de pular as sete ondas no mar gelado. Também quer fazer uma prece. Que o novo ano abra caminhos com chave de ouro. Não porque deseja, mas porque merece. Merece se dar um tempo da rotina que a engole. Que não a faz viver, mas morrer um pouco a cada dia. Veste-se de acordo com a ocasião. Branco. De paz. É só o que ela quer. Short e camisa amarrada na cintura. Umbigo à mostra. Cara à mostra. Peito aberto. Para o que der e vier. Assim, no meio da multidão, ela é igual a todo mundo. Não importa se é negra. E prostituta. E se seu turno acabou de acabar. Mas ela se engana. Não é igual a todo mundo. Não quer pensar nisso agora. Já basta o dia que teve. Quer a noite para sonhar. Quer a noite para se resgatar ao mundo dos vivos. Ninguém ganha o céu se não passar pelo inferno. Quer voltar a habitar a terra. Terra que não para de rodar sobre seu eixo numa indiferença que machuca. Está em busca de calor. Afeto? Aí já é pedir muito. Não tem ilusão. Não mais. Apesar do verão, a noite está fresca e ela sente frio. Junta-se a todos na areia para se acolher. Ao menos, a sensação.
Dama Branca.
Que tudo se realize no ano que vai nascer. Crédula. De qualquer palavra que alivie sua existência. Uma mulher alienígena. Uma aberração dos desígnios divinos a meio do caminho entre um sexo e outro. Essa imutabilidade entre gêneros que faz seus pensamentos não cessarem de se rever. Uma mulher presa a um corpo de homem. Um erro. Quer pedir. Pedir sempre. A Deus e ao diabo. Agora a Iemanjá. Antes de soltar seus demônios. Antes de gritar para que Ele acorde. Antes de acordar o mundo, sempre cheio de preconceitos. Antes de urrar e rosnar, a mostrar que é gente que também chora e ri. A inexistência a parecer existência. Deus e o diabo na terra do sol. Sol é o que ela queria. E calor. E o dar de mãos. Ariel esbarra no moço à sua frente que lhe dá bola. E um sorriso. E saem. E se embolam na boca de um beco qualquer. E Ariel dá de ombros. E dá um beijo. E dá de cara e de costas. E tudo brilha no cenário em sombras.
Dama Preta.
Muito dinheiro no bolso e saúde para dar e vender. Crédula. De qualquer caminho que alivie sua existência. A tarde foi de desgosto. O gosto foi de amargura, o filete de sangue foi coagulado no canto da boca. Marina aproveita a água da praia para lavar a ferida. Que nunca cura nesse ofício que a obriga a descer, a descer sempre, e que acaba em uma espiral de pânico. Um roteiro de abusos que ela conhece de cor.Os maus-tratos, os animais e a cópula. É só sexo. E ofensa. E opugnação. No beco, o cheiro de bebida. No beco, os gemidos ecoando nas paredes cheias de fendas. No beco, o chão imundo. O bicho de quatro era ela. E o tapa. E o soco. E o nojo. Os gritos também eram dela. Subjugada. Violentada. Impotente. Quem acredita em puta? No escuro, ninguém repara se ri ou se chora. Seu sonho? Conhecer Paris. E a PontdesArts, com cadeados para aprisionar corações. Só os corações. A coleção de recortes de reportagens sobre Paris é seu vício. Ela sonha. E tropeça na areia. E esbarra no moço à sua frente. Ela não dá a mínima. Ele dá um sorriso. E saem. E se embolam na boca de um beco qualquer. E Marina dá ouvidos. E dá um beijo. E dá de cara e de frente. E tudo brilha no cenário em sombras.
Dama Branca.
O cheiro de sangue subiu do chão do beco na manhã seguinte, junto com o cheiro de lixo que os catadores não deram conta de limpar. Sangue com gosto de cerveja. Sangue com gosto de suor. Sangue com gosto de gozo. Mais um encontro arruinado na violência que a cidade não se acanha em mostrar. Estatística, o delegado diz, como se assim explicasse tudo. O corpo parcialmente de bruços, não permite que o rosto se revele. Não de todo. Os pés enormes, expostos nas sandálias de tiras, as unhas pintadas de um rosa esmaecido, a maquiagem barata, um par de brincos pingentes em forma de sol. Dourado e ofuscante. A mãe da vítima surge da multidão, forçando a passagem pelos policiais que teimam em lhe barrar. Chora, grita e se descabela. Confere se está tudo lá: dois braços, dois pés, duas orelhas, dois olhos negros, o pomo-de-adão. Somente o membro foi extirpado, como erva daninha. No lugar, um buraco, um vazio sanguinolento, um sonho realizado. O pênis foi achado adiante, perto de uma lixeira. Ainda rijo. Uma vela azul como oferenda para um mundo que nunca acorda.
Dama Preta.
O cheiro de maresia subiu do chão do beco na manhã seguinte, junto com o cheiro de lixo que os catadores não deram conta de limpar. Maresia com gosto de cerveja. Maresia com gosto de suor. Maresia com gosto de gozo. Mais um encontro forjado na paixão que a cidade não se acanha em mostrar. Estatística, o delegado diz, a cidade é maravilhosa e Cristo está de braços abertos, pronto para amar. O corpo parcialmente de bruços, não permite que o rosto se revele. Não de todo. Os pés expostos nas sandálias de tiras, as unhas pintadas de vermelho, a maquiagem exagerada, um par de brincos pingentes em forma de sol. Dourado e ofuscante. Marina se recosta na parede cheia de fendas. Nas mãos, a carteira do rapaz esquecida entre um gemido e outro. No interior, uma passagem para Paris. E euros. E dólares. Confere se está tudo lá: dois braços, dois pés, duas orelhas, dois olhos negros. Não é um sonho. Ela não se ilude. É tudo real. Somente o azar foi extirpado, como erva daninha. Vai conhecer Paris. E a Pont des Arts, com cadeados para aprisionar corações. Vai pedir. Pedir sempre. Porque a sorte só vem para aqueles que rezam o terço sem medo de se perder no inferno e tornar a habitar a terra. Ainda que se tenha só treze anos.
LuciAna Merley
O conto de Sandra Godinho É um tiro na Cara. Um espanto. Um susto. Coisa de poucos.